Geração E

A comunidade internacional não pode esquecer o Camboja

A comunidade internacional tem uma responsabilidade histórica e vinculativa no que respeita ao Camboja. Muitos dos seus membros foram signatários de um compromisso, quando se realizaram as primeiras eleições livres e justas em junho de 1993, que procurava apoiar a democracia no Camboja. Nos termos dos Acordos de Paz de Paris, têm a responsabilidade de defender os direitos humanos e de denunciar os abusos contínuos do Partido do Povo do Camboja, de Hun Sen e Hun Manet

As eleições do mês passado no Camboja deveriam ter dissipado qualquer ilusão de que a democracia está viva e de boa saúde no país. A campanha e o escrutínio subsequente foram um processo rigorosamente controlado e encenado, que privou os 9,7 milhões de eleitores registados de uma alternativa política. Foi um mero golpe de teatro para um resultado totalmente previsível. Hun Sen e o seu Partido do Povo do Camboja (PPC) obtiveram a sua predeterminada "vitória esmagadora", numa disputa em que não enfrentaram qualquer oposição credível.

O objetivo das eleições era abrir caminho a uma transmissão do poder de Hun Sen para o seu filho, Hun Manet, e consolidar uma ditadura que governa o país há trinta e oito anos.

Mesmo antes do fecho das urnas, a 23 de julho, já se sabia que o PPC de Hun Sen seria "vencedor". E assim foi, com o PPC a conquistar 120 dos 125 lugares disponíveis na Assembleia Nacional do Camboja. A repressão foi generalizada. Os eleitores que se atrevessem a tornar nulo o seu boletim de voto enfrentariam a perspetiva de serem presos ou de terem de pagar uma pesada multa. E os órgãos de comunicação independentes foram amordaçados para não se pronunciarem sobre Hun Sen, evidenciando-se, mais uma vez, o desprezo pela incipiente democracia do Camboja. Foram, pois, umas eleições mais voltadas para a obsessão de Hun Sen pelo totalitarismo do que para os desejos do povo cambojano.

Eu e dezenas de outros opositores políticos exilados ilustramos os resultados daqueles que optam por participar na interpretação cada vez mais soviética da democracia do Camboja. O meu antigo partido, o Partido da Salvação Nacional do Camboja, obteve mais de 43% dos votos nas eleições de 2013, 2015 e 2017, apesar da corrupção aberta e da interferência de Hun Sen e do seu governo. A nossa presença, bem como a crescente concorrência ao governo em exercício, seria saudável em qualquer outro país democrático. No entanto, para Hun Sen, representávamos um risco demasiado grande – e, tal como outros partidos na sombria história do meu país, fomos dissolvidos por alegadamente orquestrarmos um "golpe estrangeiro" contra o governo. Desta vez, um destino semelhante coube ao Candlelight, um novo partido da oposição, que estava em vias de derrotar o PPC de Sen até à sua abrupta suspensão, em maio de 2023. Foram impedidos de apresentar candidatos porque "apresentaram um documento fotocopiado em vez de uma cópia original", como parte da sua constituição, tendo os seus membros e ativistas sido subsequentemente visados e detidos pelas forças governamentais.

Ainda assim, mesmo neste contexto, a oposição pacífica encontrou uma forma de se manifestar. As contagens nacionais revelam que mais de meio milhão de cambojanos apresentaram um voto nulo, apesar das ameaças de multas ou de detenção. Este número representa um em cada dezoito votos expressos nas eleições e, juntamente com o nascimento consistente de novas forças da oposição, sugere que a vontade de uma alternativa democrática ao PPC não será refreada, independentemente da corrupção e da intimidação por parte do governo. Também evidencia, sem dúvida e mais do que nunca, a necessidade de a comunidade internacional – e, em particular, os líderes democráticos do Ocidente – chamar a atenção para os abusos deste governo e de intervir perante Hun Sen e o seu filho, Hun Manet.

Ainda que isso aconteça, teme-se que o processo seja tardio. É que, como parte do plano de sucessão em curso, já estamos a assistir a uma solidificação da elite cambojana em destacadas posições de influência. Para além da transferência elementar do cargo de primeiro-ministro para Hun Manet, que decorrerá no final deste verão, muitos ministérios estão agora a ser preenchidos com filhos de partidários leais, lamentavelmente inexperientes, que continuarão o legado dos seus pais. Esta triste realidade foi já evidenciada pela nomeação de Say Sam Al como ministro do Ambiente – uma figura que, apesar de ter mostrado algum interesse inicial na cooperação com jovens ambientalistas, rapidamente cedeu à tradição governamental de deter e prender aqueles que procuram defender o mundo natural.

Outras nomeações, como a do novo ministro da Defesa, Tea Seiha - filho do atual ministro da Defesa, Tea Banh – e a do ministro do Interior, Sar Sokha, também parecem manifestamente desadequadas. Este último, em particular, parece partilhar a falta de bases de Hun Manet e Tea Seiha para o cargo, suscitando preocupações de que não seja capaz de impedir o crescente poder da máfia chinesa e o seu papel no tráfico de seres humanos e noutros crimes contra os cambojanos comuns. Estas maquinações estão a acontecer ao mesmo tempo que muitos jovens emigram à procura de novas oportunidades no estrangeiro, sob pena de arriscarem ser presos por tentarem proteger os mais vulneráveis da sociedade.

A comunidade internacional tem uma responsabilidade histórica e vinculativa no que respeita ao Camboja. Muitos dos seus membros foram signatários de um compromisso, quando se realizaram as primeiras eleições livres e justas em junho de 1993, que procurava apoiar a democracia no Camboja. Nos termos dos Acordos de Paz de Paris, têm a responsabilidade de defender os direitos humanos e de denunciar os abusos contínuos do PPC.

Devem deixar claro, tanto a Hun Manet como a outros membros do novo regime, que a comunidade internacional insiste numa mudança democrática positiva no Camboja, a começar pela libertação de todos os presos políticos e por uma amnistia para todos os exilados que pretendam regressar ao país onde nasceram. Não devem procurar dividir a população, como fizeram as gerações anteriores, nem silenciar os seus opositores. E, no caso de Hun Manet, deve ser exigido que este seja um governante legítimo. O povo cambojano está sedento de democracia, de cuidados de saúde e educação de qualidade, de liberdade e de três refeições por dia. A comunidade internacional tem a obrigação de reagir, exigir mudanças e, se necessário, coordenar sanções em matéria de vistos e de bens contra os membros do PPC que querem destruir o futuro democrático do meu país.

Tradução de Nelson Filipe