Geração E

Há perguntas que não se devem fazer a pessoas trans

Regra geral, as pessoas trans só são mencionadas nos media internacionais quando são vítimas mortais ou com rótulo de perigo, focando-se em questões como “que casas de banho devem usar”; a rotular as pessoas trans como perigosas por “não se saber o que são”. Pouco se fala de como são constantemente vítimas de preconceito em locais de trabalho, escolas e vida familiar e de como a taxa de tentativas e efetivo suicídio são estrondosamente mais altas na comunidade trans

Esta crónica é uma introdução à realidade das pessoas trans. Infelizmente, não lhes é dado lugar de fala, comparando com pessoas cisgénero, como eu. Aproveito esta exposição que me é dada para falar da realidade das pessoas trans. A grande referência desta crónica é o livro “The Transgender Issue”, de Shon Faye, escritora, mulher trans. Falei, ainda, com pessoas trans e contei com a revisão do texto por Odete, artista multidisciplinar, nos campos da música, artes visuais, performance e teatro. Aquando a publicação deste artigo, foi feito um donativo à Casa Qui, que dá apoio a pessoas LGBTI em situação de risco, com o valor equivalente à escrita deste.

Antes de avançarmos, para que não haja dúvidas na terminologia: pessoas cisgénero são pessoas que se identificam com o género que lhes é atribuído à nascença; pessoas trans são pessoas que não se identificam com o género que lhes é atribuído à nascença. Assim, por exemplo, uma pessoa que quando nasce é denominado do sexo masculino e se identifica como homem é um homem cis; pessoa que nasce com vulva e se identifica como homem é homem trans. Ser trans não é uma doença mental nem um distúrbio, é uma característica de identidade de género.

Ser trans não é uma moda de agora, existe desde sempre. (Mais sobre este assunto no capítulo “Right and Wrong Bodies”, com as devidas referências bibliográficas). Felizmente, hoje em dia, há mais liberdade — na maior parte do mundo, com largas excepções — para se viver como trans. Mesmo assim, a taxa de tentativas de suicídio é escandalosa na comunidade. A tentativa de suicídio entre pessoas trans vai dos 32% aos 50% por todo o globo. Por exemplo, na Dinamarca, uma notícia da CNN já deste ano, refere um estudo realizado a mais de 6.6 milhões de pessoas dinamarquesas, que concluiu que aspessoas “que se identificam como trans têm 7.7 vezes mais probabilidade de tentarem o suicídio e 3.5 vezes mais probabilidade de se suicidarem. A probabilidade de tentativa de suicídio é bem maior se não houver a aceitação por parte da família. Em 2022, foi reportado pelo The Guardian, graças a um estudo, que mais de 50% das pessoas jovens trans e não-binárias dos Estados Unidos consideraram o suicídio nesse ano.

Depois desta introdução, resta-me aferir ao intuito desta crónica: indicar as perguntas que quase sempre vêm à cabeça das pessoas cis quando se fala de pessoas trans e clarificar por que razão não devem ser, de todo, o centro da discussão. Estas perguntas colocam o rótulo de perigo nas pessoas trans, ao invés de mostrar como são elas que realmente correm mais perigo, numa sociedade que ainda as julga, põe de parte, persegue e mata, somente por serem trans.

A obsessão pelos genitais

“Como são os teus genitais?”

Tendo em conta que as pessoas trans são uma minoria, é compreensível que haja curiosidade em saber mais sobre alguém que não se identifica com o género que lhe foi atribuído à nascença. Mesmo assim, não é aceitável perguntar a alguém de forma aleatória sobre os seus genitais. Imagine o que seria um estranho perguntar a uma mulher cis: “como são os seus lábios internos?” ou a um homem cis: “qual é a proporção de tamanho entre o seu escroto e o seu pénis?”. Da mesma forma, perguntar sobre os genitais de alguém trans só por curiosidade, não é aceitável. Só é válido em questões médicas que envolvam genitais. Se se tem uma ferida no braço ou uma entorse no pé, não é relevante, mesmo assim, que genital se tem.

“Já fizeste a operação?”

Ser trans não pressupõe “ter de” se fazer a operação para mudar de sexo (genital). Cada pessoa trans faz o seu caminho. Pode passar por hormonas, pode passar ainda pela cirurgia de redesignação sexual, por cirurgias plásticas para combater a disforia de género, ou, então, não. Um homem trans que não fez a operação não é menos homem por causa disso, e o mesmo para uma mulher trans.

A curiosidade do “antes”:

“Qual era o teu nome antes?”

“Posso ver fotos tuas de antes?”

O nome do “antes” e as fotos não são a pessoa que tens à tua frente. As pessoas trans têm de combater todo o status quo da sociedade para se expressarem tal e qual como são. Respeita a sua jornada e aprecia a pessoa à tua frente. Só essa pessoa existe, a que “era antes” não existe.

A confusão sobre identidade de género:

“Que casa de banho usas?”

Uma pessoa trans deve usar a casa de banho com a qual se identifica.

A verdade é que a divisão de casas de banho de forma binária, como existe na maior parte dos locais, já comporta em si, a meu ver, vários problemas. Uma das questões que coloco quando se fala neste assunto é “Por que raio há-de um homem cis ter de estar à vontade em urinar à frente de homens que, a maior parte das vezes, não conhece de lado nenhum?”. Um homem cis não tem de estar à vontade para mostrar o seu genital à frente de outros homens na casa de banho. Imagine o que seria uma fila de mulheres de cócoras, apenas com um separador, a urinar num wc sem portas. Ainda, há muitos locais que só têm muda de fraldas no wc feminino. Além disso, já vi várias vezes homens pais com meninas pequenas sem saber bem o que fazer: entre o pudor de entrar com ela na wc feminina; pedir a mulher estranha para ir com a filha ao wc; ou entrar com ela no wc masculino, correndo o risco da filha pequena ver pénis alheios.

Além disso, há um medo generalizado, potenciado pelos media internacionais, de que ter mulheres trans em casas de banho femininas é perigoso para mulheres cis. Este argumento é pintado como uma forma de “proteger as mulheres”, quando, na verdade, é um medo desinformado das mulheres trans, que as põe, mais uma vez, com o rótulo de perigo, como se, de repente, por causa de ser permitido mulheres trans nos wc, homens predadores disfarçados de mulheres pudessem entrar nas casas de banho para assediar/ violar mulheres. O mesmo medo generalizado não é apresentado para homens trans nas casas de banho masculinas.

Um violador não é impedido por uma burca, muito menos por uma porta destrancada de wc feminino. Aliás, há uma realidade de assédio muito transversal contra mulheres trans, tendo como agressor o homem cis. Há uma enorme procura de porno com mulheres trans, por parte de homens cis, como referido no ponto seguinte, fazendo com que homens cis hetero objetifiquem sexualmente mulheres trans a um nível muito alto. (Ler capítulo “Sex Sells”).

Homem cis para mulher trans/ Mulher cis para homem trans: “Eu achar-te atraente faz de mim gay?”

Orientação sexual e identidade de género são conceitos independentes. Um homem cis que esteja com uma mulher trans está numa relação hetero. E quanto à pergunta, ela em si só é relevante no sentido de transparecer desinformação ou um possível preconceito de quem pergunta: autopreconceito, tendo em conta algum receio de não ser hetero; e preconceito contra pessoas trans e homossexuais.

A verdade, é que há imensa procura de porno com pessoas trans, especialmente homens cis hetero a procurar porno com mulheres trans. Os números não mentem: em Janeiro de 2018, as estatísticas oficiais do PornHub revelaram um aumento global de 36% de procura de pornografia trans, categoria que estava no top 10 das mais populares em diversos países, incluindo Argentina e Rússia (Faye, pág. 138).

“E não te vais arrepender? [de fazer o processo de transição]”

A taxa de arrependimento em relação à cirurgia de redesignação sexual é residual (0,6% para mulheres trans e 0,3% para homens trans). Uma pessoa trans sabe de que género é, independentemente do seu órgão genital. Se este assunto do possível arrependimento preocupa a/o leitor/a de alguma forma, deixo a informação de que o acesso a bloqueadores de puberdade e a terapia hormonal dá espaço para que a pessoa trans possa deliberar sobre a sua decisão e que tenha tempo para decidir fazer, ou não, mais alguma alteração ao seu corpo ou se quer continuar com a terapia hormonal. Se decidir não continuar com a transição, pode pará-la.

O papel dos Media na demonização das pessoas trans

Regra geral, as pessoas trans só são mencionadas nos media internacionais quando são vítimas mortais ou com rótulo de perigo, focando-se em questões como “que casas de banho devem usar”; a rotular as pessoas trans como perigosas por “não se saber o que são”. Pouco se fala de como são constantemente vítimas de preconceito em locais de trabalho, escolas e vida familiar e de como a taxa de tentativas e efetivo suicídio são estrondosamente mais altas na comunidade trans.

As perguntas que realmente importam pôr na mesa para discussão

Para que a discussão de assuntos relativos a pessoas trans tenha realmente frutos na procura de uma realidade mais justa, sugiro, tendo em conta a leitura do livro de Shon Faye e conversa com pessoas trans, as seguintes perguntas abertas:

— Quais são os impedimentos que a caracterização dos media impõe à integração da comunidade trans?

— Quais as medidas que podem ser tomadas para que deixe de haver um “pânico moral” (pág. 35-36) em relação às pessoas trans?

— Como podemos desmistificar mitos de que ser trans é contagioso ou um distúrbio mental?

— Quais são os desafios que as/os jovens trans têm de ultrapassar em ambiente escolar?

— Quais são as consequências para a pessoa trans na sequência da rejeição dos seus próprios familiares?

— Como podemos garantir estrutura social que dê resposta à necessidade de acolhimento de pessoas trans?

— Como a capacidade económica das pessoas trans dita a sua qualidade de vida e a probabilidade de terem mais problemas a nível laboral?

— Como podemos preparar a sociedade para integrar a população trans envelhecida e os cuidados que acarretam?

— Como reduzir o tempo de espera para tratamentos hormonais e bloqueadores de puberdade?

— Como oferecer formação a profissionais de saúde sobre cuidado de pessoas trans e atendimento?

— Quais são os problemas encontrados por pessoas trans no acesso a cuidados de saúde primários?

(...)

As perguntas relevantes poderiam continuar infinitamente. Pena as perguntas postas em discussão pelos media sobre a realidade trans continuarem a ser mais prejudiciais para a discussão informada sobre o tema, do que profícuas para a compreensão da realidade trans, e (quase) nunca incluírem pessoas trans.

Bibliografia

“The Trans Issue — an argument for justice”, de Shon Faye.

A referência a estudos e notícias encontra-se em formato de link nos dados apresentados.

Pode, ainda, ler o artigo “Há perguntas que não se devem fazer a lésbicas, gays e bissexuais” aqui.

Odete é uma artista multidisciplinar, nascida em 1995, no Porto, que desenvolve trabalho no âmbito da música, artes visuais, performance e teatro. A artista apresentou as suas criações em diferentes espaços e contextos, tais como Teatro São Luiz (Lisboa), Teatro Municipal do Porto, malavoadora.porto, TNDMII , CAPC - Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, Festival Iminente, Rua das Gaivotas 6, entre outros. Recentemente, Odete ganhou o prémio ReXform em Artes Performativas, com o projeto "On Revelations and Muddy Becomings", apresentado no MAAT, em colaboração com a bienal BoCA. Na área da música, a artista editou EPs e albuns, pela Genome (China), New Scenery (UK), Rotten:Fresh or Naivety (PT). Integrou a "SHAPE platform" durante 2021 e 2022. Apresentou a sua primeira exposição a solo n’ O Bardo e, mais recentemente, a exposição LYSIS, com Diana Policarpo no espaço Quéréla (Lisbon). Ainda, Odete lançou o seu primeiro livro de poesia intitulado "The Elder Femme and other Stone Writings", editado pela Pântano Books. Entre 2022 e 2024, a artista integra o projeto europeu ‘Future Laboratory’ de investigação performativa, do CAMPUS (Porto).

Contacto: site; instagram.