Geração E

Na segurança, defesa, desporto ou cultura: estas jovens abrem caminho para a igualdade

Mesmo com passos na direção certa, há áreas que continuam marcadamente masculinas. Felizmente, há jovens mulheres que “desbravam caminho” e mostram que não há setores interditos a nenhum género. Da PSP ao futebol feminino, Ana Carvalho, Raquel Sampaio, Leonor Teles e Maria Luísa Moreira contam-nos como encontraram o seu lugar entre os homens e o que é preciso para mais mulheres lhes seguirem os passos

Em Portugal, as mulheres continuam a receber menos que os homens, a chegar a menos cargos de chefia e a acumular mais horas de trabalho doméstico. Apesar de serem cada vez mais qualificadas, as mulheres têm “salários base 13% mais baixos [que os homens], numa diferença que em 2021 atingiu os 153 euros, em média, mas que entre os quadros superiores rondou os 600 euros”, lê-se no último estudo da CGTP. Quando olhamos para os cargos de topo, as mulheres representam apenas 31% dos lugares nos conselhos de administração e 6% dos CEO, revela o estudo “Women Matter Iberia” da consultora McKinsey. Ainda assim, Portugal tem dado passos positivos na igualdade de género – teve um aumento de 0,6 pontos percentuais em 2022, em relação ao ano anterior, no ranking do Instituto Europeu da Igualdade de Género (com uma pontuação de 62,8 pontos em 100). Este valor mantém-se abaixo da média europeia – de 68.6 – e atira Portugal para o 15.º lugar

Contudo, as mulheres continuam a ter de “trabalhar o dobro” para chegar a alguns cargos ou setores de trabalho – especialmente quando são tradicionalmente associados a homens. É o caso do desporto, da segurança, da defesa ou da cultura. Felizmente, a dificuldade de acesso não impede todas as mulheres. Maria Luísa Moreira, Ana Carvalho, Leonor Teles e Raquel Sampaio são alguns dos exemplos de jovens que ultrapassaram os estereótipos e querem agora facilitar o caminho das mulheres que vêm a seguir.

Ana Carvalho, 31 anos, chefe de área operacional da 5.ª divisão policial da PSP

Ser polícia não era um sonho de infância, mas os testes psicotécnicos abriram os olhos de Ana Carvalho para essa possibilidade. “Nunca tive regime de educação militar nem polícias na família. Mas ser uma profissão maioritariamente masculina atraiu-me ainda mais”, conta a chefe de área operacional da 5.ª divisão policial da PSP ao Expresso. Depois do curso – onde só havia três mulheres em 25 alunos –, esteve três anos a comandar esquadras, passou pelas relações públicas de Lisboa e chefiou os Spotters, a unidade especial da PSP que acompanha as claques desportivas. Em 2022, foi promovida a chefe de área operacional. “Dentro da minha instituição senti e mostrei que sou capaz de assumir cargos primeiramente ocupados por homens. Estou a desbravar caminho para outras mulheres”.

Entre os vários cargos que ocupou dentro da PSP, Ana garante que nunca sofreu “discriminação de género”. Ainda assim, admite que há uma “necessidade de afirmação”, por ser das poucas mulheres na instituição – nas Forças e Serviços de Segurança do Ministério da Administração Interna (GNR, PSP e SEF) as mulheres representam apenas 8% do efetivo, de acordo com os dados de 2020 disponibilizados pelo Ministério da Administração Interna. “Quando chegamos sentimos que os colegas [homens] têm mais atenção connosco, muitos não com má intenção, mas por instinto de proteção. Por isso, sentimos que temos de chegar e mostrar que somos tão boas e iguais a eles e que não precisamos disso”.

Pelo contrário, há características das mulheres que podem ser vantagens na profissão. [Quando era chefe dos Spotters] era eu quem dava as más notícias aos adeptos porque era capaz de amnizar as situações mais tensas e com mais conflito”, começa por explicar. E acrescenta: “Quando é galo com galo, há uma necessidade maior de provar alguma coisa. Galo com galinha, são diferentes e não há nada a provar”. A esta capacidade de “acalmar ânimos”, junta-se a maior “inteligência emocional”. “A grande vantagem de termos entrado nestas profissões é esta capacidade de humanização. As mulheres têm mais tendência de notarem os problemas dos colegas e falarem sobre eles”. Em tom de brincadeira, Ana Carvalho confidencia que chegou a ter uma placa de “psicóloga” no seu gabinete por ouvir os desabafos dos colegas. Estas particularidades, crê a PSP, contribuem para os elogios às lideranças femininas.

Tal como na maiora das profissões, a maternidade é um dos maiores entraves baseados no género. “Olham para nós quase como se tivessemos prazo de validade. Pensam: ‘a partir de certa idade vai querer ser mãe e passar para uma área mais resguardada’. Isso leva a que, muitas vezes, não sejamos vistas como primeira opção [para cargos operacionais ou de chefia]”. O risco, o stress e os horários associados à profissão levam muitas mulheres grávidas a serem transferidas para os serviços administrativos de forma “quase automática”. Quem quer manter uma progressão de carreira numa área operacional, muitas vezes é obrigada a passar o desejo de construir família para segundo plano. “Se almejarmos muito chegar mais longe, vamos atrasando a vida familiar”.

Ainda assim, Ana considera a atratividade da profissão para as mulheres está a aumentar. “A polícia ainda é dos poucos sítios onde recebemos o mesmo e podemos chegar aos mesmos lugares que os homens”.

Raquel Sampaio, 33 anos, fundadora da Teammate Football Management, agência de futebol feminino

Queria ser jornalista, chegou ao desporto “por acaso” e rapidamente percebeu que o seu caminho passava por uma vertente mais técnica. “Era um mercado que estava a evoluir muito [futebol feminino] e sabia que podia fazer a diferença", disse ao Expresso, Raquel Sampaio, ex-diretora desportiva do Sporting. Daí, em 2021, ter fundado a Teammate Football Management, a primeira agência portuguesa exclusivamente dedicada ao futebol feminino. As atletas representadas têm acesso a um conjunto de serviços que vão desde a intermediação com os clubes a uma “consultora linguística” para quem vai trabalhar para um país que desconhece o idioma. “Queremos ajudá-las em todas as fases da carreira, até quando penduram as chuteiras”.

A passagem de atleta a gestora, numa área marcadamente masculina, “foi complicada”. “Senti muita resistência e que tinha de mostrar o dobro, lutar o dobro e mostrar que era competente”. Das 10 federações desportivas com maior financiamento público e nas 10 com maior número de praticantes, nenhuma tem uma presidente mulher. As treinadoras com título profissional válido são apenas 15% do total, baixando ainda mais o valor quanto mais elevada for a qualificação: do total de técnicos em Portugal com o grau IV de treinador, apenas 2,2% são mulheres, lê-se no relatório relatório para a igualdade de género no desporto elaborado por grupo de trabalho criado pelo Governo em 2022.

As desigualdades de género continuam dentro de campo – desde o acesso a oportunidades até aos salários. A área do desporto é a segunda onde existe uma maior desigualdade salarial entre homens e mulheres (17%), só ultrapassada pelas indústrias transformadoras (19%), de acordo com a análise do Gabinete de Estratégia e Planeamento. Esta baixa remuneração das atletas leva a que a grande maioria não consiga viver profissionalmente do futebol. “70% das jogadoras concilia o futebol com o trabalho ou com os estudos. Enquanto assim for, é muito complicado. Não podemos exigir o mesmo de uma jogadora que trabalha”. Para aproximar os salários das atletas femininas dos masculinos, é preciso “profissionalizar” a liga e “gerar receita”. “Neste momento, o futebol feminino depende das receitas do masculino porque não gera receitas por ele próprio”. A falta de "massa associativa", que não enche os estádios nem gera audiências, é uma das razões por detrás da pouca rentabilidade da modalidade no feminino. A ex-diretora desportiva do Sporting reconhece que parte da falta de adeptos é “cultural”, mas também é porque os clubes “não estão a fazer bem o seu trabalho”. “Os clubes têm de comunicar melhor e trazer mais adeptos para a modalidade. Tem de haver presença da equipa feminina onde há a masculina. Não há camisolas com os nomes das jogadoras nas lojas [dos clubes], por exemplo”.

O apuramento da selecção de futebol femina para o Mundial, pela primeira vez, pode ajudar a "olhar" para a modalideade de "forma diferente". "Este era o passo que nos faltava conquistar. Agora, já pode haver mais interesse das marcas, mais dinheiro em publicidade, contratos com valores maiores e as jogadoras portugueses podem conquistar a atenção de clubes europeus”. Esta é, para Raqual Sampaio, mais uma prova da qualidade de quem está em campo. “No futebol feminino aproveita-se melhor o tempo de jogo, [as jogadoras] são genuínas e pouco manhosas. Intensidade não é igual, mas vê-se tática. Quem gosta de futebol, tanto gosta de feminino como masculino”.

Nuno Botelho

Leonor Teles, 30 anos, cineasta e vencedora de um Urso de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Berlim

Quando pensamos na área da cultura, a perceção de falta de mulheres não é imediata. O número de atrizes e cantoras é extenso, mas o mesmo não acontece quando fixamos o olhar em setores como a realização, encenação ou outras áreas técnicas. “[Ser mulher] dificultou-me mais enquanto diretora de fotografia, do que como realizadora. Levavam-me pouco a sério, diziam-me para me ‘concentrar’ mais na realização”, escreve ao Expresso Leonor Teles, cineasta. A jovem natural de Vila Franca de Xira lançou o seu primeiro filme em 2013, "Rhoma Acans", um documentário que explorava as ruas raízes ciganas. Foi este tema, três anos mais tarde, que lhe veio a valer um Urso de Ouro no Festival de Berlim com a curta "Balada de um Batráquio". Desta vez, Leonor Teles explorou o preconceito contra os ciganos explorando o fenómeno de deixar sapos em estabelecimentos para afastar as pessoas desta etnia – desde a idade média que os sapos estão associados a má sorte dentro da cultura cigana. Assim, aos 23 anos, Leonor Teles tornou-se na mais jovem realizadora a receber este prémio. “Foi completamente inesperado e fiquei atabalhoada, nem sabia o que haveria de dizer. O choque é tão grande que mal conseguia articular as palavras", disse na altura ao “Diário de Notícias”.

Leonor Teles é um dos rostos da nova geração de mulheres na realização em Portugal, mas garante que não é a única. "Elas [mulheres na realização] existem e muitas há muito mais tempo do que eu. As oportunidades e o financiamento é que continuam a recair maioritariamente sobre homens". Um dos maiores problemas do setor da cultura passa pela falta de financiamento para os projetos, que muitas vezes dependem de bolsas ou de apoios do Estado. Mesmo com a promessa de aumentar o orçamento da cultura para os 2,5% em 2026, muitos trabalhos continuam a ficar pelo caminho. "As oportunidades de criação têm que chegar a outras pessoas e a outros tipos de criação".

Como seria de prever, Leonor Teles vê "todas" as vantagens em conseguir aumentar o peso femininos na área da realização. "A sensibilidade é outra, o olhar é outro, o cérebro é outro, logo o resultado também será outro. Provavelmente até mais interessante, atrevo-me a dizer". Mas não se trata apenas de serem mulheres, mas de transportarem “perspetivas" alternativas que podem oferecer mais diversidade à oferta cultural existente. "Qualquer perspetiva que seja diferente da norma estabelecida transporta consigo algo de crítico e desafiante que nos põe a pensar".

Entre as “duas paixões”, direção de fotografia e realização, Leonor Teles continua a somar distinções. A última surgiu enquanto diretora de fotografia do filme "Mal Viver", de João Canijo, que venceu o Urso de Prata no Festival de Berlim, em fevereiro.

Maria Luísa Moreira, 25 anos, secretária-Geral da WIIS Portugal

Depois de frequentar o ensino superior no Reino Unido – primeiro com uma licenciatura em Relações Internacionais, depois com um mestrado em Mulheres, Paz e Segurança na London School of Economics –, Maria Luísa Moreira regressou a Portugal com o objetivo de “combater o défice de mulheres nestas áreas [paz e segurança internacional]”, disse ao Expresso. A especificidade do seu mestrado rapidamente a colocou em contacto com figuras femininas reconhecidas como Helena Carreiras, ainda antes de ser ministra da Defesa, e Ana Gomes, histórica socialista e ex-candidata às presidenciais. “O projeto WIIS Portugal já era dela [Ana Gomes] e eu, com a maior lata, desafiei-a a juntar-me". Hoje, Maria Luísa Moreira é secretária-Geral da WIIS Portugal, o ramo português da WIIS Global que foi fundado por Ana Gomes durante o seu mandato como deputada no Parlamento Europeu. "É a única organização da sociedade civil que se preocupa com a agenda Mulheres, Paz e Segurança das Nações Unidas. Serve como veículo para alertar para o papel da mulher nestas áreas e mudar políticas públicas".

Contudo, a jovem tem um objetivo concreto: contribuir para que Portugal passe para a “fase seguinte” e adopte uma “política externa feminista”. Apesar de reconhecer que sente "repulsa" de muitos quando diz a palavra "feminista", Maria Luísa não tem medo de usar o termo. “O papel das mulheres tem vindo a crescer, mas na política externa e ne defesa continuamos a ter um défice gravíssimo. Nas forças armadas, as mulheres são só 13% do efetivo. No MNE são 30% dos diplomatas, mas só 12% são embaixadoras”. Esta "política externa feminista" prevê uma mudança "de raiz" para que as mulheres passem a ser elementos-chave nesta área e não apenas pensadas "posteriormente" numa lógica de cumprir os mínimos de representatividade. "É preciso trazer as mulheres para os centros de decisão, porque também elas sofrem as consequências das escolhas que são feitas". Ao incluir mulheres em campos de trabalho como a NATO ou o MNE, constroem-se políticas públicas "mais resilientes" que "refletem melhor a sociedade" por incluir "perspetivas" da "outra metade da população". "Se tivermos mulheres em missões humanitárias, por exemplo, construir uma maternidade para mães refugiadas pode passar a ser uma prioridade".

Esta mudança é especialmente "urgente" no contexto atual de instabilidade geopolítica. "Se olharmos para a guerra na Ucrânia, as mulheres na mesa de negociações são zero. Há mulheres na linha da frente, mas depois não têm lugar na mesa de negociações. Tens um pico de insegurança e os papéis revertem para o tradicional [homens na liderança]. Se existissem estruturas sólidas, isso não acontecia". Apesar de reconhecer o esforço "louvável" de instituições como a UE ou a NATO, Maria Luísa Moreira acredita que estas mudanças "demoram demasiado tempo". "Se pedalarmos mais rápido, quando existir um caso destes novamente já vai haver mulheres à mesa, que pensem e tragam medidas para as mulheres".

No seu próprio percurso, Maria Luísa confirma já se ter sentido “descredibilizada” por ser “mulher” e “jovem”. “Tento construir pontes e estabelecer diálogo, mas muitas vezes não sou levada a sério. Pensam: ‘o que é que esta miudinha está aqui a fazer?’”. Numa área marcadamente masculina, o género também é um fator que dificulta o acesso à carreira. “Pomos [mulheres] em causa a estrutura e isso vai ser sempre recebido com desconfiança. Quanto ao futuro, não estou muito otimista porque, se calhar, vou sempre ser ultrapassada por um homem, só por ser homem”. Para superar estas dificuldades, a secretária-geral refugia-se noutras mulheres com "perfil e percurso" que admira. "Não tenho medo de pedir ajuda, nem caminho sozinha. Tenho autênticas mentoras como Ana Gomes ou a major Diana Morais [primeira portuguesa a ser eleita para o cargo de presidente do Comité para a Perspetiva de Género da NATO]”.