Europe Talks

Europe Talks. Milhares de europeus com ideias contrárias em conversa. "Expressar emoções tornou-se um ato político"

Numa altura em que qualquer tema parece criar cisões impossíveis de dissolver, milhares de europeus escolheram voltar a encontrar-se em salas virtuais para discutirem com alguém com ideias totalmente opostas às suas. Antes da edição de 2020 das "Europe Talks", várias personalidades europeias falaram sobre este momento único na história do equilíbrio político-social da Europa. Entre outras coisas, descobrimos que as emoções são armas políticas - para o bem e para o mal

Está provado cientificamente que duas horas de conversa, frente a frente, é tempo suficiente para que o nosso cérebro consiga incorporar uma opinião com a qual não tinha ainda tido contacto antes. Não quer dizer que esta opinião se torna a nossa, mas torna-se familiar. O que pode ter um irlandês residente numa vila com 1500 pessoas - que perdeu um emprego durante a pandemia e que se senta no seu carro às voltas durante o antigo horário de trabalho - para aprender com uma jovem sueca que já viajou por todos os continentes. e é neste momento gestora de redes sociais de um empresa que produz comida biológica? E vice-versa? A resposta é tudo porque as linhas das suas vidas estão em momentos totalmente opostos e provavelmente não houve nenhum ponto na vida de ambos em que tivessem sido próximas.

Que Europa queremos? Queremos todos a mesma Europa? Há algum ponto em que todos possamos concordar e partir daí para uma discussão mais alargada na procura de coisas que, mesmo que poucas, nos possam unir na vontade de preservar os valores que nos tornam europeus? Esses valores estão a sobreviver ao populismo? E mesmo que estejam, sobreviverão a esta pandemia?

Foi à volta destas perguntas e das muitas ramificações que suscitam que se deu início a mais uma edição das conferências “Europe Talks”, um evento que começou na Alemanha em 2017 e que pressupõe um encontro entre pessoas em campos políticos opostos como forma de mostrar que por trás de opiniões totalmente antagónicas à nossa está um rosto e um cérebro e um humano que é necessariamente um acumulado de experiências que o levaram a formar essas tais opiniões tão distantes das nossas.

Durante este ano pandémico, muito mais do que em outros anteriores, a comunicação fez-se nas redes sociais, onde as discussões são tantas vezes binárias, extremadas, até violentas. Há menos de 48 horas ainda parecia possível que toda a ajuda económica destinada a ajudar os vários Estados-membro pudesse ficar retida por bloqueios da Polónia e da Hungria, que têm um entendimento mais utilitário da União Europeia, menos federalista.

Este ano, mais de 16 mil pessoas inscreveram-se para falar com desconhecidos, sabendo apenas que a pessoa que iriam encontrar do outro lado do seu ecrã, escolhida por um algoritmo mediante análise de um questionário a que todos os participantes respondem, teria pouco em comum consigo. Em Portugal, através da página do Expresso, meio de comunicação escolhido em Portugal como parceiro iniciativa, inscreveram-se 234 pessoas para passarem o seu domingo a discutir com estranhos.

Estas conversas, interessantes de certo, não são públicas, mas antes de um misterioso código informático emparelhar estas mentes distantes em várias salas virtuais, algumas personalidades europeias, umas mais conhecidas que outras, juntaram-se, durante cerca de três horas, para expor as suas preocupações em relação ao momento único, em tanto incompreensível, que estamos a viver.

“Expressar as emoções é um ato político”

Em apenas um mês, de março a abril de 2020, uma análise à movimentação das pessoas por todo o mundo com base nos mapas da Google mostrava que, a nível global, ficámos em casa quase mais 40% do tempo do que antes da pandemia. Nos países industrializados, a visita a superfícies comerciais caiu 90% nesse mesmo mês. A alteração nas nossas vidas foi tão grande que é impossível passarmos por isto tudo sem um desarranjo qualquer ao nível emocional.

Foi em redor dessa (sua) certeza que falou Francesca Melandri, documentarista, dramaturga e escritora italiana, uma das intervenções mais interessantes de todo o programa. Estamos numa segunda vaga, as pessoas estão outra vez doentes, outras vez a morrer, as economias estão de novo em stress, há muito sofrimento e todas estas emoções estão a tirar-nos o chão: fatiga, medo, dor, perda, tristeza, ansiedade, preocupação, confusão, um perda de perspectiva, parecemos prisioneiros nas nossas pequenas vidas”, começou por dizer como introdução para o tema das divisões quase sectárias que hoje parecem formar-se seja qual for o assunto em discussão.

“As pessoas não veem as pessoas que têm opiniões diferentes das suas como pessoas que têm opiniões diferentes das suas mas como inimigos para odiar e é por isso que somos tão facilmente manipuláveis por pessoas que não têm uma ideia de sociedade democrática”. A grande mensagem da intervenção desta autora italiana pode resumir-se na frase que disse logo a seguir: “O mais importante nesta pandemia é falar de emoções porque expô-las já não é um ato emocional, é um ato político. Se as deixarmos apodrecer na solidão e na vergonha elas vão ser usadas por políticos antidemocráticos para nos colocarem uns contra os outros”.

Como disse o historiador Joseph Paxton “o fascismo é provocado por emoções, não pela racionalização dos factos”, o que explica, em certa medida, a razão do seu sucesso: as doutrinas autoritárias não oferecem razões para os medos das pessoas, não tentam oferecer caminhos, por exemplo, para começar a atacar as razões para o aquecimento global ou para a crise migratória, apenas lançam combustível em forma de palavras garridas e simplificações retóricas para uma redoma de pessoas desiludidas com um sistema que lhes falhou. “Acho mesmo fundamental lembrar um facto muito importante da natureza humana: debaixo de todos os ressentimentos e ódios há medo e por baixo de cada medo há dor, a dor da perda, da incerteza, da insegurança, de sermos afastados do nosso normal por algo que é demasiado grande para conseguirmos lidar”, disse Melandri.

“E ainda por baixo disso tudo está o medo da morte que pode ser expressado de forma direta ou, mais comummente, de forma indireta. Somos mortais e não podemos mudar, mas podemos escolher como usar esta noção de que vamos morrer, como utilizar a nossa fragilidade. Podemos usá-la como uma ponte para os outros, pois temos a certeza de que os outros também têm essa mesma fragilidade, ou podemos deixar os autoritários ocuparem esta ponte e tornar este medo uma fonte de ressentimento e ódio contra os outros”, conclui Melandri não sem deixar a pergunta para as conversas que seguem: “Como é que podemos usar esta noção renovada que todos temos da nossa fragilidade inerente?”.

Desenraizar quem não encaixa no modelo

Também seguindo o tema do populismo, dos alicerces em que se apoia para continuar a crescer, o jovem escritor britânico Jonhy Pitts escolheu contar a sua história pessoal, que diz muito sobre o declínio - e a raiva e a incompreensão geradas por ele - da atividade industrial da cidades inglesas, principalmente no norte e centro do país. Pitts começou por dizer que “nos anos 90 Sheffield parecia uma carcaça da vida pós-industrial, uma cidade a tentar reencontrar-se e redefinir-se na era do mercado livre e da globalização”.

Muitas fábricas, onde a sua família e as famílias dos seus amigos trabalhavam, fecharam e atividades um pouco extemporâneas para a maioria daquela gente - os restaurantes, os ginásios, as viagens, o consumo nos centros comerciais - tomaram o seu lugar. “Pareço um pouco hipócrita a falar desta transformação mas como criança que viu tudo isso a acontecer, lembro-me de sentir um certo alívio ao ver os prédios cinzentos de repente a dar lugar a edifícios pós-modernos pintados a cores primárias”, admite o escritor que pouco depois dessa primeira onda de entusiasmo foi abalroado por outra de pessimismo.

O seu grupo de amigos - “um jogador de rugby com mais de um metro e noventa, branco, britânico, um muçulmano iemenita craque da bola, um jovem da Tanzânia apaixonado por rock clássico e um outro britânico, branco, rapper, com conhecimento de criolo” - eram o multiculturalismo todo que ele conhecia e precisava mas depois do reinado da primeira-ministra mais odiada por estes lados, Margaret Thatcher, que, nas palavras de Pitts “esmagou os alicerces industriais” da sua cidade, os trabalhistas de Tony Blair não fizeram um melhor trabalho.

Pitts, que é negro e diz que Thatcher é racista e não sente necessidade de explicar o porquê nesta intervenção apesar de não haver de todo o consenso sobre as crenças de Thatcher em relação à distinção entre cores, continua a sua cronologia pessoal até ao “New Labour” de Blair, um “novo” Partido Trabalhista mais virado para o mercado livre do que as suas encarnações anteriores. “Ele foi uma desilusão. Por trás da cortina, os seus conselheiros andavam a propagar retórica anti-imigrantes, diziam que os requerentes de asilo estavam a invadir as nossas escolas. Comecei a entender que o multiculturalismo do ‘New Labour’ não estava associado às classes trabalhadoras, era uma espécie de multiculturalismo feito nas empresas e impresso em grandes cartazes nos centros urbanos, que apenas vingava em espaços dedicados à elite internacional: o átrio do hotel, as portas de embarque dos aeroportos, a rede global de empresários”.

O neoliberalismo, no entender de Pitts, tomou para si a bandeira do multiculturalismo, enquanto ao mesmo tempo o destruía criando “uma elite global, uma enorme classe trabalhadora mal paga, uma exigência por cada mais imigrantes para alimentar a indústria rápida e o abandono das ex-classes trabalhadoras fabris que supostamente deveriam formar laços com quem vem de fora enquanto ao mesmo tempo tem de levar com a imprensa que vilipendia os estrangeiros e os seus sotaques estranhos mas não diz nada sobre os donos das empresas que causam desigualdade com os salários baixos”.

Quem mais perdeu ficou excluído da narrativa do desenvolvimento global, das maravilhas da tecnologia e dos benefícios da educação superior. No círculo eleitoral de Pitts, 80% dos eleitores escolheram o ‘Brexit’ e apenas 9% da população concluiu um curso superior.

A exclusão, embora de outro tipo, foi também o tema escolhido pelo célebre filósofo alemão Julian Nida-Rümelin - um homem que além de pensar a política e a democracia é físico e matemático, um cientista como ele próprio começou por dizer. “A democracia não é apenas uma forma de governo, é uma forma de vida”. Esta foi a primeira frase da sua intervenção, que parece mais poética do que realmente é. Na verdade, a lógica da democracia assenta em princípios específicos, tal como a lógica da ciência, e Nida-Rümelin quis usar a suas duas áreas de conhecimento para chamar a atenção para o apagão de vozes supostamente contra a ciência que o consenso científico está a provocar durante esta pandemia.

Talvez para a maioria das pessoas que leem este texto, seguir a ciência seja, claramente, a única forma de encontrar alguma paz no caos da pandemia mas o filósofo coloca-nos do lado do outro, é uma provocação porque a cabeça dos europeus instruídos tende a pensar que qualquer pessoa que esteja contra um cientista está errada. “A lógica da ciência é explicar o que empiricamente conseguimos ver, devolver teorias que liguem dados que começaram por estar muito longe uns dos outros. Tanto na política como na ciência há faltas de consenso, há dissidentes. Se numa crise como esta pandemia nós explicamos os nossos objetivos políticos através unicamente daquilo que os virologistas dizem vamos ter um problema se alguma coisa corre mal, e já correu muita coisa mal. A ciência não pode decidir tudo sobre o que é certo ou errado numa democracia: é perigoso se assim for ou que assim seja”, começa por dizer.

E porque não? “Porque numa democracia, toda a população é relevante o que significa que todas as decisões políticas têm de ter uma justificação que se sustente nas opiniões destes cidadãos. A democracia tem de ser qualquer coisa além da mera aplicação da ciência. Isto é verdade para as medidas todo-poderosas que são tomadas com vista ao crescimento económico, a austeridade, é verdade para as medidas de proteção ambiental, e é verdade para as medidas de combate à pandemia”.

O filosofo finalizou com mais um exemplo que está ou pode estar na origem de mais uma divisão social nesta nova década do século XXI. “O problema com esta pandemia é que mesmo que tenhamos 80% da população que pensa que tudo o que for decidido de acordo com a ciência é aceitável e legítimo, 20% têm a sensação de terem sido deixados fora da conversa e da decisão e são tratados como idiotas e aí temos um problema porque quando isso acontece não estamos em uma democracia, uma democracia é sempre inclusiva”.