O construtor José Guilherme, conhecido pela liberalidade (oferta) de 14 milhões de euros a Ricardo Salgado, colocou um processo na justiça portuguesa contra o Novo Banco (NB). O montante é elevado: um pouco mais de 94 milhões de euros. Sem ter conseguido renegociar os créditos com o banco, avança agora para tribunal para tentar um alívio nos financiamentos obtidos, segundo confirmou o seu advogado ao Expresso.
A autoria desta ação judicial é não só de José da Conceição Guilherme como também da sua mulher, Beatriz da Conceição Veríssimo, sendo que só há um réu: o Novo Banco. A informação consta do portal Citius, consultado pelo Expresso, sendo que a distribuição do processo data desta terça-feira, 22 de fevereiro.
José da Conceição Guilherme é um construtor civil da Amadora, que fez negócios (e fortuna) em Angola. Era com o BES, antecessor do Novo Banco, que tinha uma relação privilegiada, ainda que também tivesse ligações com o Banco Montepio (hoje na mira da justiça). Em 2015, após a queda do BES e a crise em Angola, pediu uma renegociação ao Novo Banco. Conseguiu, mas não foi cumprida na totalidade até aqui.
“O Sr. José Guilherme e a mulher interpuseram uma ação contra o NB com vista à modificação do acordo de reestruturação e pagamento de dívida com fundamento na alteração anormal das circunstâncias em que o NB e o Sr. José Guilherme e a mulher o celebraram em 2015, depois de terem tentado desde o segundo trimestre de 2020, sem sucesso, chegar a um acordo extrajudicial para o efeito”, explicou ao Expresso o advogado do construtor, Mário Costa Pinto.
Os números à volta da dívida
Os números sobre a exposição do Novo Banco a José Guilherme variam nos vários documentos públicos (ou noticiados): era de 266 milhões de euros em junho de 2015, segundo uma auditoria feita pela EY (mas a dívida seria de cerca de metade seis meses antes, segundo relata o recente relatório da comissão de inquérito ao Novo Banco, elaborado em 2021).
Mas o próprio José Guilherme facultou números na carta que assinou a partir de Luanda a 28 de março de 2015 e dirigia à comissão parlamentar de inquérito à gestão do BES e GES: “No final de 2012 era devedor do BES, a título pessoal, de 85 milhões de euros”, dizia, mas notando que não ficava por aqui: “No final do ano de 2012, a dívida pessoal somada à dívida e responsabilidades de entidades por mim dominadas ou de terceiros, mas que avalizei ou garanti pessoalmente, era de cerca de 204 milhões de euros. Em agosto de 2014, antes da resolução, o montante em dívida era de cerca de 121 milhões de euros, tendo o remanescente sido pago, e servida a dívida à razão de cerca de 12 milhões”.
A resposta que deu por escrito então à comissão de inquérito à gestão do BES e GES por escrito – na altura, alegara motivos de saúde e o facto de estar em Angola para não prestar depoimento presencial, sendo que nesses dias o Expresso encontrou-o em Portugal; houve queixa na justiça, mas o caso foi arquivado pela justiça.
Seja como for, nessa carta do início de 2015, o construtor assumiu que precisava de uma reestruturação de dívida: tanto por compromissos que falharam do lado de parceiros, devido à resolução do BES, como pela situação económica em Angola. Além disso, esperava que o Novo Banco determinasse quanto é que efetivamente tinha de pagar. O acordo chegou, mas não foi cumprido na totalidade. Veio outra crise.
Alteração das circunstâncias
“Entre 2015 e 2021, o Sr. José Guilherme e a mulher regularizaram/libertaram-se de responsabilidades de cerca de 97 milhões de euros, entre capital e juros. O sério agravamento da situação económica e cambial em Angola, onde o Sr. José Guilherme exerce a sua atividade, e a eclosão da pandemia impõem, segundo princípios de boa fé, a adaptação do acordo às atuais circunstâncias que se vivem, de modo a que o mesmo possa continuar a ser cumprido”, explica o mandatário de José Guilherme ao Expresso.
Daí que o processo seja agora apenas de 94 milhões: “O valor da ação é o valor atual do contrato cuja modificação por alteração de circunstâncias se pede”, diz o advogado.
Não foi possível obter uma reação do Novo Banco, que colocou estes empréstimos protegidos pelo mecanismo de capital contingente, que levaram o Fundo de Resolução a colocar no banco 3,4 mil milhões de euros desde 2017 (e que poderá subir já este ano).
Venda de créditos abortada
Segundo foi noticiado pelo Jornal Económico, o banco da Lone Star esteve para vender a dívida de José Guilherme, calculada em 121 milhões de euros, no fim do ano passado, no meio dos grandes créditos integrados na carteira de malparado denominada Harvey.
A operação concretizou-se, mas alguns créditos foram retirados, incluindo o do construtor civil. O travão foi colocado pelo Fundo de Resolução por conta do desconto que estava associado na operação: 97%, já que seria vendida por 3,9 milhões, segundo noticiou o Correio da Manhã.
Muito mais que cliente
A relação de José Guilherme com o antigo BES não era apenas de cliente, e foi o próprio a dizê-lo na referida missiva à comissão de inquérito, em 2015: “Para além da relação de banco/cliente, estabeleci, muitas vezes a pedido do BES e do GES, relações de negócio com diversas entidades, algumas do próprio GES e com entidades terceiras. Via o BES e o GES como verdadeiros parceiros de negócios e sei que era assim que estas entidades também me viam”.
Uma relação que levou o construtor da Amadora a dizer que perdera 25 milhões com a queda do BES (investira em ações e obrigações). Dizia, na altura, que era pelo menos esse o valor da perda. Anos depois, também houve envolvimentos em fundos imobiliários, que nem sempre correram bem: o Invesfundo II, que o juntou ao BES e Montepio, foi declarado insolvente.
Houve também ligações ao Montepio e ao BNI Europa, banco português com capitais angolanos, das quais a justiça suspeitou, tendo realizado buscas em 2020. A proximidade entre José Guilherme e António Tomás Correia (antigo homem-forte do grupo Montepio) é um dos pontos sob investigação, mas também os financiamentos ao filho do construtor.
Paulo Guilherme chegou a ser um dos principais titulares de unidades de participação do Banco Montepio (uma espécie de ações que não davam direito a dividendo, mas que ajudavam a capitalizar a instituição financeira), posição que conseguiu, noticiou a RTP, por via de financiamentos do Finibanco Angola, detido pelo próprio banco português.
“Amigo de longa data”
O construtor civil deu 14 milhões a Ricardo Salgado, justificando-o com o facto de dele ter recebido conselhos de investimento em Angola, sendo que foi noticiado também a entrega de 1,5 milhões a Tomás Correia. Salgado referiu-se a Guilherme, no Parlamento, como “amigo de longa data”.
“O Sr. José Guilherme, em Angola, conseguiu realizar uma fortuna muito considerável e era mais credor do Banco Espírito Santo do que devedor”, foi o que afirmou no Parlamento o banqueiro que esteve à frente do BES por 22 anos – e que hoje enfrenta processos judiciais pelos últimos anos desse período. A liberalidade não foi comentada de forma mais extensa na comissão de inquérito porque, justificaram ambos, se integrava no processo judicial Monte Branco que, em 2022, continua ainda à espera de acusação ou arquivamento por parte do Ministério Público.
O advogado do construtor da Amadora assegura ao Expresso que as relações com os restantes bancos com que trabalha – em 2015 identificara o Banco Montepio, o BCP e o Banco Económica (ex-BES Angola) – estão regularizadas.
Esteve para sair do Benfica
José Guilherme é ainda um dos acionistas da SAD do Benfica, sendo que entrou no seu capital aquando da sua cotação em bolsa. No ano passado, acredita o inspetor tributário Paulo Silva na investigação Cartão Vermelho, Luís Filipe Vieira, ex-presidente da SAD, queria que o construtor vendesse a sua parcela.
O construtor ainda tem 3,73% do capital, mas tinha até chegado a acordo com o empresário José António dos Santos (acionista da Valouro) para alienar a sua posição, para que este pudesse vender depois 25% do capital a John Textor. Porém, o contrato promessa de compra e venda desta participação de José Guilherme, assinado em abril de 2021, caducou.