O depoente vai falar como testemunha ou perito? Vai usar um computador? Tem uma apresentação powerpoint que não foi distribuída previamente? A apresentação powerpoint vai ser transmitida para todos? É uma apresentação institucional ou um documento de trabalho? É um documento de trabalho ou um guião?
Já João Cardoso Pereira, economista sénior da Autoridade da Concorrência (AdC) se tinha sentado para depor no Tribunal da Concorrência, em Santarém, e teve de esperar por estas questões prévias colocadas pelos advogados. Em causa está o julgamento da AdC à troca de dados sensíveis entre 2002 e 2013 que culminou numa coima conjunta de 225 milhões de euros e esta audição aconteceu depois de banqueiros, como Fernando Ulrich, terem pedido o adiamento dos seus depoimentos para data posterior à do economista.
O economista da AdC foi chamado pelo Ministério Público há cerca de duas semanas para fazer uma análise económica da decisão da Concorrência e dos estudos realizados pelos bancos, mas, quando nesta quarta-feira, 9 de fevereiro, começou a responder às questões iniciais, referentes à sua identificação, feitas pela juíza Mariana Machado, não teve muito tempo, porque logo surgiram mais questões processuais.
“Não compreendo a dificuldade em começarmos esta inquirição”. As dúvidas levantadas pelos advogados dos bancos levaram a juíza Mariana Machado a sublinhar que os advogados estavam “sistematicamente” a impedir a inquirição. “Este depoimento não está a conseguir avançar”. “Há algum incómodo ou receio daquilo que a testemunha vai dizer?”, chegou a questionar-se, dizendo que não notou o mesmo desconforto dos mandatários em relação às testemunhas por eles apontadas como estavam a ter com o economista da AdC. A juíza avisou que tudo poderá ser tido em conta na sua decisão, e que faria sentido ouvir a testemunha chamada pelo Ministério Público. Mas os advogados dos bancos contestaram.
Economista defende Autoridade da Concorrência
O economista – que não trabalhou no processo de investigação mas que é quadro da AdC – foi chamado pelo procurador da República para olhar para os estudos feitos pelo BPI, BCP e Santander que tinham sido entregues em tribunal. Analisou-os durante 15 dias – e acabou por tentar desmontá-los. O que motivou ainda mais a irritação dos mandatários, já descontentes com os contornos do depoimento.
A argumentação foi técnica, mas o economista foi notando que havia contradições nos estudos que analisou. Cardoso Pereira frisou que a partilha de informação entre os bancos na década em causa visou dados que não eram públicos e, se eram, obrigavam a um grande estudo por parte do consumidor, pelo que haveria obstáculos à concorrência.
Por exemplo, as grelhas de spreads nos créditos de cada banco têm combinações com classificações de risco e o montante do empréstimo (e o seu peso face à avaliação do ativo subjacente) que vão muito além do spread mínimo e máximo que constam dos preçários, declarou. E eram essas grelhas que eram partilhadas entre concorrentes, lembrou.
Cartel ou não cartel
A meio do depoimento inicial, que durou mais de duas horas, um dos mandatários questionou o depoimento: “não se percebe qual é a pergunta a que está a responder”. A juiza mandou prosseguir o economista, que defendeu que o mercado português do crédito bancário tem sinais de barreiras à entrada e também barreiras à expansão.
Em cima da mesa, um tema: os poucos casos existentes na Comissão Europeia e na Autoridade da Concorrência em que foi sancionado o intercâmbio de informações fora de um cartel clássico, que é precisamente o enquadramento no caso desta condenação da AdC a 14 bancos: intercâmbio de dados sensíveis, mas não um cartel (apesar de o caso ser conhecido como cartel da banca).
O esbracejar de Fernando Ulrich
Na longa sessão que se estendeu por cerca de oito horas, os mandatários dos bancos defenderam que a informação trocada não era tão privada como é defendido pela AdC e pelo economista, e que o intercâmbio até fez com que o mercado fosse mais eficiente. As comparações dos spreads nos créditos entre Portugal e Espanha e o facto de o primeiro ter vivido a intervenção externa da troika em parte do período foram igualmente relevantes nas perguntas ao economista – Fernando Ulrich até esbracejou e abanou negativamente a cabeça, por discordar das palavras de Cardoso Pereira, e até apartes chegou a fazer.
Ulrich é o atual presidente da administração do BPI e era presidente executivo à data dos factos, recusando a desvalorização do impacto da crise da dívida nos spreads bancários. A ausência de contextualização da AdC dos anos em que foram detetadas as infrações (2002 a 2013) é um dos pontos que une os bancos nas suas defesas.
Advogados apontam contradições (e chovem requerimentos)
Se houve questões prévias dos advogados, também as houve na fase de inquirição das testemunhas, em que tentaram esvaziar a importância do seu depoimento (por não ter histórico de conhecimento do sector bancário), bem como defenderam a sua parcialidade (por exemplo, por trabalhar com instrutores da AdC que levaram a cabo a investigação) e ainda a sua experiência (foi solicitada até qual a carreira e qual a categoria profissional efetiva). Também houve considerações sobre contradições em artigos escritos anteriormente por Cardoso Pereira e aquilo que agora defendeu no depoimento perante o tribunal.
Aliás, a inquirição foi classificada de “sui generis” por um dos advogados, desde logo porque foi chamado pelo Ministério Público (com adesão da AdC) quando já a fase de produção de prova estava a ser concluída – aliás, o mandatário do Santander até anunciou que iria pedir que a audição não fosse tida em conta no processo, mas fez perguntas para o caso de a intenção não ser aceite (requerimento ao qual o BPI aderiu).
Houve um outro requerimento da CGD por não haver cabimento para que João Cardoso Pereira fosse ouvido como perito (por ser funcionário da AdC, e não independente), e pediu a sua nulidade. O BCP considerou que o economista alinhou totalmente nos argumentos da autoridade que deu origem ao processo e quer realizar uma acareação de Cardoso Pereira com um dos autores do estudo que o banco tinha apresentado ou uma nova inquirição a esse autor (o Crédito Agrícola juntou-se à iniciativa) – a juíza recusou a acareação, mas aceitou uma nova inquirição (mas frisou que acredita que vai repetitiva). E, para acontecer, tem de ser marcada rapidamente, para evitar manobras dilatórias, para as quais a juíza disse, neste processo, já não ter grande paciência.
A estes requerimentos, a juíza Mariana Machado respondeu com críticas à postura dos representantes da banca, considerando que não faz sentido pedir a nulidade de uma testemunha chamada em janeiro, bem como defendeu que “não se vê qualquer pertinência na junção” do documento de suporte usado pelo economista. A juíza considerou que “a testemunha foi sujeita a intenso e extenso a contraditório”.
Sessão antecipa três gestores bancários
Em tribunal, está a ser julgada a troca de informação confidencial entre bancos concorrentes, com dados sensíveis sobre os créditos à habitação, a empresas e ao consumo. A AdC aplicou coimas de 225 milhões de euros a 14 bancos, afetando praticamente todo o sistema bancário nacional, por considerar que esse intercâmbio era proibido e feria a concorrência. Os bancos recorreram (o Banif, com coima de mil euros, foi a exceção) e é esse caso que está a ser julgado em Santarém.
Alguns dos bancos apontaram representantes para responder perante o tribunal nestas últimas sessões, mas alguns deles, como Fernando Ulrich, pediram adiamento das respetivas sessões. Pretendiam falar só após a produção de prova – os banqueiros queriam que fosse ouvido primeiro o economista sénior da AdC chamado pelo Ministério Público antes das suas declarações, que foi precisamente a reunião desta quarta-feira, 9 de fevereiro.
As sessões dos banqueiros estão agendadas para a próxima semana (dias 15 para Ulrich, dia 18 para os representantes da CGD e BCP), mas, mesmo assim, Ulrich foi assistir à sessão – queria perceber a razão pela qual tinha sido chamado este economista pelo Ministério Público, explicou ao Expresso.
Alegações finais este mês
Para trás, ficaram já as inquirições a Manuel Preto, administrador financeiro do Santander, que defendeu que as operações em causa nos autos não seriam repetíveis hoje em dia, e a José Mateus, administrador financeiro do Montepio, que deixou claro que, embora o banco tenha aderido ao programa de clemência, afinal não reconhecia ilícitos.
Estão previstas alegações finais ainda este mês, antecipando-se uma sentença para abril. Depois, haverá a possibilidade de recursos.