Economia

Um economista da Concorrência foi a tribunal, a banca atacou, a juíza anotou (e Fernando Ulrich assistiu às oito horas da sessão)

Banqueiros queriam que economista sénior da Concorrência, chamado sem grande antecipação, falasse antes de deporem. Fernando Ulrich até foi à sessão para escutá-lo. A audição, técnica, foi marcada por ser “sui generis”, e acabou com os bancos a pedirem que não conte para nada

Foto: Getty Images

O depoente vai falar como testemunha ou perito? Vai usar um computador? Tem uma apresentação powerpoint que não foi distribuída previamente? A apresentação powerpoint vai ser transmitida para todos? É uma apresentação institucional ou um documento de trabalho? É um documento de trabalho ou um guião?

Já João Cardoso Pereira, economista sénior da Autoridade da Concorrência (AdC) se tinha sentado para depor no Tribunal da Concorrência, em Santarém, e teve de esperar por estas questões prévias colocadas pelos advogados. Em causa está o julgamento da AdC à troca de dados sensíveis entre 2002 e 2013 que culminou numa coima conjunta de 225 milhões de euros e esta audição aconteceu depois de banqueiros, como Fernando Ulrich, terem pedido o adiamento dos seus depoimentos para data posterior à do economista.

O economista da AdC foi chamado pelo Ministério Público há cerca de duas semanas para fazer uma análise económica da decisão da Concorrência e dos estudos realizados pelos bancos, mas, quando nesta quarta-feira, 9 de fevereiro, começou a responder às questões iniciais, referentes à sua identificação, feitas pela juíza Mariana Machado, não teve muito tempo, porque logo surgiram mais questões processuais.

“Não compreendo a dificuldade em começarmos esta inquirição”. As dúvidas levantadas pelos advogados dos bancos levaram a juíza Mariana Machado a sublinhar que os advogados estavam “sistematicamente” a impedir a inquirição. “Este depoimento não está a conseguir avançar”. “Há algum incómodo ou receio daquilo que a testemunha vai dizer?”, chegou a questionar-se, dizendo que não notou o mesmo desconforto dos mandatários em relação às testemunhas por eles apontadas como estavam a ter com o economista da AdC. A juíza avisou que tudo poderá ser tido em conta na sua decisão, e que faria sentido ouvir a testemunha chamada pelo Ministério Público. Mas os advogados dos bancos contestaram.

Economista defende Autoridade da Concorrência

O economista – que não trabalhou no processo de investigação mas que é quadro da AdC – foi chamado pelo procurador da República para olhar para os estudos feitos pelo BPI, BCP e Santander que tinham sido entregues em tribunal. Analisou-os durante 15 dias – e acabou por tentar desmontá-los. O que motivou ainda mais a irritação dos mandatários, já descontentes com os contornos do depoimento.

A argumentação foi técnica, mas o economista foi notando que havia contradições nos estudos que analisou. Cardoso Pereira frisou que a partilha de informação entre os bancos na década em causa visou dados que não eram públicos e, se eram, obrigavam a um grande estudo por parte do consumidor, pelo que haveria obstáculos à concorrência.

Por exemplo, as grelhas de spreads nos créditos de cada banco têm combinações com classificações de risco e o montante do empréstimo (e o seu peso face à avaliação do ativo subjacente) que vão muito além do spread mínimo e máximo que constam dos preçários, declarou. E eram essas grelhas que eram partilhadas entre concorrentes, lembrou.

Cartel ou não cartel

A meio do depoimento inicial, que durou mais de duas horas, um dos mandatários questionou o depoimento: “não se percebe qual é a pergunta a que está a responder”. A juiza mandou prosseguir o economista, que defendeu que o mercado português do crédito bancário tem sinais de barreiras à entrada e também barreiras à expansão.

Em cima da mesa, um tema: os poucos casos existentes na Comissão Europeia e na Autoridade da Concorrência em que foi sancionado o intercâmbio de informações fora de um cartel clássico, que é precisamente o enquadramento no caso desta condenação da AdC a 14 bancos: intercâmbio de dados sensíveis, mas não um cartel (apesar de o caso ser conhecido como cartel da banca).

O esbracejar de Fernando Ulrich

Na longa sessão que se estendeu por cerca de oito horas, os mandatários dos bancos defenderam que a informação trocada não era tão privada como é defendido pela AdC e pelo economista, e que o intercâmbio até fez com que o mercado fosse mais eficiente. As comparações dos spreads nos créditos entre Portugal e Espanha e o facto de o primeiro ter vivido a intervenção externa da troika em parte do período foram igualmente relevantes nas perguntas ao economista – Fernando Ulrich até esbracejou e abanou negativamente a cabeça, por discordar das palavras de Cardoso Pereira, e até apartes chegou a fazer.

Ulrich é o atual presidente da administração do BPI e era presidente executivo à data dos factos, recusando a desvalorização do impacto da crise da dívida nos spreads bancários. A ausência de contextualização da AdC dos anos em que foram detetadas as infrações (2002 a 2013) é um dos pontos que une os bancos nas suas defesas.

Fernando Ulrich, presidente do conselho de administração do BPI. Patrícia de Melo Moreira/AFP via Getty Images.

Advogados apontam contradições (e chovem requerimentos)

Se houve questões prévias dos advogados, também as houve na fase de inquirição das testemunhas, em que tentaram esvaziar a importância do seu depoimento (por não ter histórico de conhecimento do sector bancário), bem como defenderam a sua parcialidade (por exemplo, por trabalhar com instrutores da AdC que levaram a cabo a investigação) e ainda a sua experiência (foi solicitada até qual a carreira e qual a categoria profissional efetiva). Também houve considerações sobre contradições em artigos escritos anteriormente por Cardoso Pereira e aquilo que agora defendeu no depoimento perante o tribunal.

Aliás, a inquirição foi classificada de “sui generis” por um dos advogados, desde logo porque foi chamado pelo Ministério Público (com adesão da AdC) quando já a fase de produção de prova estava a ser concluída – aliás, o mandatário do Santander até anunciou que iria pedir que a audição não fosse tida em conta no processo, mas fez perguntas para o caso de a intenção não ser aceite (requerimento ao qual o BPI aderiu).

Houve um outro requerimento da CGD por não haver cabimento para que João Cardoso Pereira fosse ouvido como perito (por ser funcionário da AdC, e não independente), e pediu a sua nulidade. O BCP considerou que o economista alinhou totalmente nos argumentos da autoridade que deu origem ao processo e quer realizar uma acareação de Cardoso Pereira com um dos autores do estudo que o banco tinha apresentado ou uma nova inquirição a esse autor (o Crédito Agrícola juntou-se à iniciativa) – a juíza recusou a acareação, mas aceitou uma nova inquirição (mas frisou que acredita que vai repetitiva). E, para acontecer, tem de ser marcada rapidamente, para evitar manobras dilatórias, para as quais a juíza disse, neste processo, já não ter grande paciência.

A estes requerimentos, a juíza Mariana Machado respondeu com críticas à postura dos representantes da banca, considerando que não faz sentido pedir a nulidade de uma testemunha chamada em janeiro, bem como defendeu que “não se vê qualquer pertinência na junção” do documento de suporte usado pelo economista. A juíza considerou que “a testemunha foi sujeita a intenso e extenso a contraditório”.

Sessão antecipa três gestores bancários

Em tribunal, está a ser julgada a troca de informação confidencial entre bancos concorrentes, com dados sensíveis sobre os créditos à habitação, a empresas e ao consumo. A AdC aplicou coimas de 225 milhões de euros a 14 bancos, afetando praticamente todo o sistema bancário nacional, por considerar que esse intercâmbio era proibido e feria a concorrência. Os bancos recorreram (o Banif, com coima de mil euros, foi a exceção) e é esse caso que está a ser julgado em Santarém.

Alguns dos bancos apontaram representantes para responder perante o tribunal nestas últimas sessões, mas alguns deles, como Fernando Ulrich, pediram adiamento das respetivas sessões. Pretendiam falar só após a produção de prova – os banqueiros queriam que fosse ouvido primeiro o economista sénior da AdC chamado pelo Ministério Público antes das suas declarações, que foi precisamente a reunião desta quarta-feira, 9 de fevereiro.

As sessões dos banqueiros estão agendadas para a próxima semana (dias 15 para Ulrich, dia 18 para os representantes da CGD e BCP), mas, mesmo assim, Ulrich foi assistir à sessão – queria perceber a razão pela qual tinha sido chamado este economista pelo Ministério Público, explicou ao Expresso.

Alegações finais este mês

Para trás, ficaram já as inquirições a Manuel Preto, administrador financeiro do Santander, que defendeu que as operações em causa nos autos não seriam repetíveis hoje em dia, e a José Mateus, administrador financeiro do Montepio, que deixou claro que, embora o banco tenha aderido ao programa de clemência, afinal não reconhecia ilícitos.

Estão previstas alegações finais ainda este mês, antecipando-se uma sentença para abril. Depois, haverá a possibilidade de recursos.