Primeiro, o segundo volume de "Quinta-Feira e Outros Dias", publicado em 2018. Depois, o primeiro volume, editado um ano antes. São eles, com a indicação das páginas de onde são retiradas as citações, que protagonizam as oito páginas de resposta do ex-Presidente da República Aníbal Cavaco Silva à comissão parlamentar de inquérito às perdas do Novo Banco. Ainda assim, há algumas conclusões a tirar: que José Eduardo dos Santos nunca respondeu a uma carta saída de Belém sobre a garantia angolana; e que, para Cavaco, é o supervisor bancário que tem competências para decidir sobre o sector. Não há resposta sobre se o Grupo Espírito Santo financiou as suas campanhas políticas, apenas a indicação de que não pedia dinheiro: tinha "forte aversão".
“Tendo presente que o Presidente da República, nos termos da Constituição, não possui poder executivo nem exerce qualquer função no âmbito do sistema financeiro e que, sendo um órgão unipessoal, não dispõe de serviços que lhe permitam recolher e processar informação motu proprio, o que foi por mim referido sobre o assunto no exercício da minha atividade como Presidente da República e que então considerei relevante o que, passados mais de seis anos, posso transmitir a essa comissão de inquérito com o rigor que se exige a um ex-Presidente da República, consta do 2.º volume do livro ‘Quinta-feira e Outros Dias’ (Porto Editora, 2018) e que seguidamente transcrevo”, é o que anuncia Cavaco Silva no arranque da resposta enviada ao presidente do inquérito parlamentar, Fernando Negrão.
Chegada esta quinta-feira, 22 de abril, ao Parlamento, a carta centra-se em citações dos livros em que o antigo Presidente fala das reuniões que tinha com os primeiros-ministros, precisamente neste dia da semana, as quintas-feiras. Mas, embora autocitando-se, Cavaco Silva vai deixando algumas passagens que não constam dos livros.
José Eduardo dos Santos não deu resposta a carta de Cavaco
Em relação a Angola, o antigo Presidente lembra a incerteza do final de julho, a poucos dias da intervenção do Banco de Portugal no BES, relativamente à garantia soberana de Angola sobre os créditos concedidos pelo BES Angola a clientes desconhecidos.
Cavaco Silva revela que, naquela altura, contactou Angola. “Em 25 de julho de 2014, conforme pedidos do Governo e do governador do Banco de Portugal, escrevi uma carta ao Presidente da República de Angola, Eng.º José Eduardo dos Santos, em que considerava fundamental que a autoridade de supervisão angolana confirmasse publicamente com urgência que não estava em causa o reembolso dos créditos que o BES tinha concedido ao BESA pelo seu valor nominal, carta cujo conteúdo fora sugerido pelo próprio Banco de Portugal”.
“Esta carta não teve qualquer resposta”, escreve Cavaco Silva.
Apesar de não ter tido resposta a essa carta (e de Angola até ter cancelado a garantia soberana posteriormente), nesse mesmo ano, a 11 de novembro de 2014 (Dia Nacional de Angola), o Presidente português enviou uma missiva a José Eduardo dos Santos, congratulando-o, sublinhando o bom relacionamento entre os dois países e querendo aprofundar as relações: “O nosso relacionamento, estruturado tanto ao nível dos nossos cidadãos e empresas, como ao nível político e diplomático, tem sido reciprocamente benéfico”.
José Eduardo dos Santos saiu da presidência angolana em 2017, sendo eleito posteriormente João Lourenço, que continua no cargo.
A exposição do BES ao BES Angola custou em perdas mais de 3 mil milhões de euros.
Banco de Portugal é que sabe
Nas respostas que dá aos deputados da comissão de inquérito, Cavaco Silva também fala – e aqui sem autocitação – sobre quem tem efetivamente capacidade para saber sobre banca. A mensagem vai na carta ao Parlamento, que tem vindo a desenhar legislação relativa ao sector, nomeadamente para uma maior transparência, e quando está em funções um Governo que foi um ator envolvido em várias das movimentações no sector, desde logo no processo de venda do Novo Banco, em 2017, e que, antes dele, teve em funções o Executivo de Passos Coelho, que sempre considerou que o Banco de Portugal é que tinha competências para lidar com o caso BES.
“No exercício das funções de diretor de departamento de estatística e estudos económicos do Banco de Portugal, de ministro das Finanças e de primeiro-ministro, confirmei a convicção que tinha de que só os bancos centrais, detentores, nos termos da lei, da competência em matéria de regulação e supervisão bancária, dispõem de serviços específicos equipados tecnicamente para recolher e processar informação aprofundada sobre o sistema bancário e, consequentemente, para tomar ou propor aos Governos medidas para assegurar a sua estabilidade”, escreve Cavaco Silva.
O também antigo primeiro-ministro disse, em relação à banca, ter adotado a prática de “receber os presidentes dos conselhos de administração dos bancos que pedissem audiência e do que relevante ouvia dava conhecimento ao primeiro-ministro na reunião da quinta-feira seguinte". "Da mesma forma procedi em relação ao governador do Banco de Portugal”, continuou. Cavaco reuniu-se várias vezes com banqueiros, nomeadamente na altura da assistência financeira internacional, mas sem identificar quais as reuniões com cada um deles.
E justifica: “esta prática era por mim considerada a mais correta e mais adequada para um órgão de soberania, como o Presidente da República, que não tem poder executivo e não exerce qualquer função no âmbito do sistema financeiro e que não dispõe de serviços que permitam recolher e processar informação, muito menos em domínio com particular complexidade e sensibilidade como o sistema bancário”.
Falou sobre BES pelo “superior interesse nacional”
Aliás, nas citações que faz do seu livro, deixa claro que a sua atuação foi muito ditada pelo Banco de Portugal. “Na reunião de quinta-feira, 10 de julho de 2014, comecei por manifestar ao primeiro-ministro a minha preocupação face ao contágio ao sistema financeiro português da crise do Grupo Espírito Santo”. “Disse-me que a situação estava a ser acompanhada em permanência pelo Banco de Portugal, como lhe competia”. “Na manhã seguinte, o nível das minhas preocupações reduziu-se”, declarou, com base no “esclarecimento” então emitido pelo supervisor.
No mesmo livro, falou também de uma viagem à Coreia do Sul em que foi surpreendido por perguntas de jornalistas do país sobre o BES, onde salvaguardou que o Banco de Portugal "tem vindo a atuar muito bem para preservar a estabilidade e a solidez" do sistema. No livro, adianta que o seu papel foi explanar as diferenças entre Banco Espírito Santo e o grupo da família sua acionista, e que não quis alimentar “alarmismos”. Cavaco Silva recusa que nessas declarações tenha dado qualquer incentivo ao investimento no BES, algo que diz que lhe foi imputado por quem tinha “intuitos pouco honestos”.
Agora, explica – e aqui sem citar a sua obra – que respondeu na Coreia do Sul “com o objetivo de defender o superior interesse nacional no plano externo”.
Aversão a pedir financiamento para campanhas
Sobre o financiamento da campanha por parte do BES, de que tinha sido questionado, nomeadamente sobre eventuais donativos recebidos do GES, Cavaco Silva não responde diretamente. Cita o seu primeiro volume da “Quinta-feira e Outros Dias”, em que diz que “sempre” teve “forte aversão a pedir dinheiro para as campanhas eleitorais”, e que não contou com dinheiro dos partidos. Mas deixou trabalho aos deputados.
“As contas das minhas campanhas eleitorais relativas à eleição para Presidente da República, apresentadas em devido tempo à Entidade das Contas e Financiamentos Políticos nos termos da legislação em vigor, estão disponíveis e podem ser consultadas pelos membros da comissão de dinheiro”, aconselha, antes de concluir que os deputados podem também visitar o arquivo do site da sua Presidência.
Cavaco podia não responder
Como ex-Chefe de Estado, Cavaco Silva poderia não responder ao inquérito parlamentar, de acordo com a legislação em vigor. Na comissão de inquérito ao BES e GES, em 2014 e 2015, nem chegou a ser questionado pelos deputados, já que a maioria parlamentar de então PSD e CDS não permitiu. Agora, isso não aconteceu.
Foi o PS que mostrou vontade de fazer perguntas a Cavaco Silva, por escrito, no âmbito que dúvidas que colocou às autoridades políticas em funções em 2014, ano da queda do Banco Espírito Santo. A par do ex-Presidente da República, foram colocadas questões a Passos Coelho (em que os socialistas tentam fazer uma ligação entre as perdas do banco e uma decisão tomada durante o seu Governo) e foi realizada uma audição a Carlos Moedas, então secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro e hoje candidato à Câmara Municipal de Lisboa.
Além dos socialistas, tanto o Bloco de Esquerda como o PAN colocaram questões a Cavaco Silva.