“A parte positiva do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é que a saúde está presente. A parte negativa é que o PRR tem por de mais a parte pública e por de menos a parte das empresas e da economia real. E assim não vamos lá!”, diz o diretor executivo do Health Cluster Portugal, Joaquim Cunha.
Já Carlos Cruz, partner e life sciences & health care leader da Deloitte, considera que "o PRR olha mais para o passado do que para o futuro”, ao apontar para investimentos em infraestruturas e equipamentos em vez de reformas transformacionais na saúde.
Ambos estarão presentes no sexto debate Expresso/Deloitte dedicado ao PRR. Que desta vez é sobre como parte deste envelope de €14 mil milhões de subsídios europeus pode ser um um motor da transformação para o setor da saúde em Portugal.
Porquê mais privado?
O polo de competitividade da saúde Health Cluster Portugal é uma associação privada sem fins lucrativos que reúne atualmente mais de 180 associados, incluindo instituições de investigação e desenvolvimento (I&D), universidades, hospitais, organizações da sociedade civil e empresas das áreas da farmacêutica, biotecnologia, tecnologias médicas e serviços.
E é no potencial deste motor de desenvolvimento económico do país que Joaquim Cunha pensa, quando refere a necessidade de um maior equilíbrio entre o público e o privado no PRR: “O investimento nos hospitais não está errado. Falta é investimento naquilo a que chamamos a indústria da saúde – das empresas farmacêuticas às empresas de dispositivos médicos – para darmos o salto”.
“Se queremos aproveitar o PRR para fazer o tal “choque” de competitividade, para dar o tal “empurrão” à nossa riqueza, emprego e exportações, acho que tem demasiada parte pública. Queremos ou não usar estes €14 mil milhões da bazuca, bombardeiro ou o que lhe quiserem chamar para provocarmos aqui um abanão?”, pergunta o diretor do Health Cluster Portugal.
Esta plataforma associativa defende uma abordagem global a toda a cadeia de valor e ao sistema nacional de saúde. “A saúde é um motor do desenvolvimento económico e social e deve ser encarada como investimento de médio e longo prazo e não, unicamente, do ponto de vista curto, que a coloca apenas do lado do custo”, lê-se no contributo que fez para a discussão pública do PRR.
Ao governo, pede uma aposta nas áreas de maior atratividade de investimento direto estrangeiro (IDE). É o caso dos produtos farmacêuticos inovadores, que decorrem do desenvolvimento das capacidades para exploração das oportunidades mais diferenciadoras na cadeia de valor. Da chamada saúde inteligente (“smart health") alavancando a base tecnológica existente e posicionando o país no domínio da tecnologia médica digital. Dos medicamentos essenciais, estimulando as capacidades existentes para aumentar a inovação incremental e a diferenciação. Dos dispositivos médicos, capitalizando as valências para a industrialização e a progressão de segmentos industriais adjacentes, como os moldes e plásticos, e os têxteis técnicos. Dos ensaios clínicos, fomentando a atratividade de Portugal enquanto destino preferencial para a sua realização. E da aposta no conhecimento, potenciando a valorização comercial da I&D na saúde.
Do Health Cluster Portugal também faz agora parte a Deloitte que todos os anos publica um relatório sobre os grandes movimentos de transformação no domínio da saúde a nível mundial.
O relatório deste ano - Global Health Care Outlook 2021 – acaba de ser divulgado aqui. E o partner da Deloitte, Carlos Cruz, explica em que medida é que o PRR vem dar resposta aos grandes desafios e forças de transformação previstos para este sector.
Hospital mais caro que hotel de cinco estrelas
“Confrontando os dois documentos, o PRR continua a pensar na saúde de forma tradicional e antiquada sem responder às tendências e desafios do futuro”, diz Carlos Cruz.
Segundo o especialista da Deloitte, “as verbas específicas que existem no PRR para a resiliência do Serviço Nacional de Saúde vão financiar iniciativas que estavam pensadas e adiadas há anos e anos. Apontam para investimentos em infraestruturas e equipamentos em vez de reformas transformacionais. Muito ténue é a dotação ligada à transformação digital da saúde”.
A tendência é fomentar modelos de proximidade de prestação de cuidados de saúde centrados, não nas infraestruturas, mas nas pessoas, com maior integração de cuidados - primários hospitalares e continuados.
“Mas à falta de uma verdadeira rede de cuidados continuados em Portugal, temos hospitais que são locais onde depositamos os nossos idosos, com inúmeras camas ocupadas por pessoas que persistem nos hospitais devido a debilidades socioeconómicas, com custos elevadíssimos para o sistema. É mais caro ter uma pessoa idosa – quando não precisava de estar internada e até preferia estar em casa - numa unidade hospitalar pública do que num hotel de cinco estrelas. Isto é completamente irracional!”, lamenta Carlos Cruz.
A componente SNS - que integra o roteiro vulnerabilidades sociais no pilar da resiliência do PRR - contempla uma verba destinada à rede de cuidados continuados integrados e rede de cuidados paliativos. “Importante, mas manifestamente insuficiente. O futuro da prestação dos cuidados, centrado nas pessoas, passará pela aposta na hospitalização domiciliária”, defende o partner da Deloitte.
Consumidor de bem estar versus paciente
Outro dos problemas é que as verbas continuam a ser canalizadas para o tratamento e não para prevenção. Isto quando vários estudos revelam que é o contexto ambiental, social e económico que determina 80% do nosso estado de saúde.
Neste contexto, Carlos Cruz destaca a emergência do “consumidor de saúde, não por oposição a doença, mas na aceção de bem-estar físico, mental e social de que fala a Organização Mundial de Saúde”.
O papel do cidadão enquanto consumidor de serviços de saúde é cada vez mais influente e está a induzir uma série de transformações porque quer celeridade, proximidade e com a pandemia ficou mais propenso a usar as tecnologias digitais.
“Esta tendência conduz a novos modelos de prestação de cuidados e à entrada de novos “players” no ecossistema da saúde. A chegada das parafarmácias às grandes superfícies ou a entrada da Amazon ou da Walmart no negócio da saúde são reflexo do papel crescente dos cidadãos e da tomada de consciência do papel proativo que podem ter na sua própria saúde”, explica.
Aliás, a saúde é um dos sectores onde poderão ter mais impacto os novos modelos de transformação digital.
“É muito mais do que consultas e prescrições eletrónicas, são novas tecnologias que permitem ter cuidados de saúde mais participativos, personalizados, preventivos e preditivos, ou seja, com capacidade para antever a predisposição para determinado tipo de doenças e ajustar as respostas em saúde às particularidades individuais”, explica o partner e life sciences & health care leader da Deloitte.
Já os modelos de financiamento da saúde devem ser baseados em valor e não no ato médico em si. Isto requer uma mudança de paradigma na forma como os serviços de saúde são remunerados, quer públicos, quer privados.
“O que importa é o valor que resulta da terapia – até pela redução do número de reincidências e reinternamentos – e não a quantidade de atos médicos – número de exames, cirurgias, etc”, remata Carlos Cruz.