Economia

Banco de Portugal alega que tribunal esvazia o dever de informação legal das auditoras ao absolver KPMG

O supervisor da banca muniu-se de dois pareceres para refutar junto do Tribunal da Relação os argumentos que levaram o Tribunal da Concorrência, em Santarém, a absolver a KPMG e cinco dos seus associados enquanto auditores do BES. E considera a interpretação do tribunal quanto ao dever de informar "aberrante"

José Carlos Carvalho

O Banco de Portugal quer reverter a decisão do Tribunal da Concorrência, em Santarém, que julgou improcedentes as condenações à KPMG a cinco dos seus associados e no seu recurso para a Relação muniu-se de dois pareceres que atestam a sua tese durante o julgamento. Em causa está o momento em que os auditores do Banco Espítio Santo (BES), a KPMG, deveriam ter partilhado com o supervisor factos suscetíveis de emissão de reservas ou infrações graves, entre outros.

Os pareceres consideram o entendimento do tribunal quanto ao dever de informação dos auditores "aberrante" e referem mesmo que a interpretação do tribunal se afigura "insustentável a vários títulos". Concluem que a ir avante esta decisão do tribunal pode ter como consequência "uma visão desculpabilizante da natureza e relevância das funções de auditoria", esvaziando o sentido que está consagrado na lei nacional e a nível europeu.

Uma resposta à decisão do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, em Santarém, que a 15 de dezembro concluiu pela falta de provas quanto à violação das normas que deveriam ter conduzido a KPMG à emissão de reservas às contas consolidadas do BES, absolvendo todos os arguidos.

O Tribunal da Concorrência discorda do Banco de Portugal quanto ao momento em que a a KPMG deveria ter prestado informação suscetível de gerar reservas às contas do BES.

A disputa entre um e outro entendimento será decida pelo Tribunal da Relação para onde recorrer o Banco de Portugal, mas dependendo da decisão haverá lugar a novos recursos, quer por parte do supervisor quer por parte da KPMG e os seus cinco associados, caso a Relação reverta a decisão do Tribunal da Concorrência que julgou "totalmente improcedentes as condenações do Banco de Portugal.

Os factos neste processo prescrevem em maio de 2002 (sem considerar um eventual período de suspensão do mesmo devido ao novo período de confinamento).

Em causa na condenação do Banco de Portugal está a ausência do dever de informação relativamente ao facto de a auditora não ter alertado o supervisor de que entre 2011 e pelo menos dezembro de 2013 não teve acesso a informação relativa à qualidade da carteira de crédito e risco associado ao BES Angola, assim como a prestação de informação falsa em 2014.

A condenação do Banco de Portugal visa provar que a simples ausência de informação sobre a qualidade da carteira de crédito seria motivo para que o auditor o comunicasse, o que não fez, assim como também prestou informações falsas a respeito do crédito em incumprimento, conhecimento que obteve em 2014.

Porém durante o julgamento não foi essa a interpretação do tribunal que arrasou em todas as frentes a condenação do supervisor e por isso absolveu todos os arguidos.

Em causa estão coimas de quase 5 milhões de euros. À KPMG o supervisor aplicou uma coima de €3 milhões e aos cinco associados, entre os quais o presidente da auditora, Sikander Sattar, uma coima de €450 mil, a Inês Viegas, €425 mil, a Fernando Antunes, €400 mil, a Inês Filipe, €375 mil, e a Sílvia Gomes, €225 mil, por ausência do dever de informação e prestação de informações falsas quanto à qualidade do crédito e risco associado à carteira do BES Angola.

Nos pareceres que acompanham o recurso para o tribunal da Relação pode ler-se, vezes sem conta, que "há um manifesto erro na apreciação da prova" apresentada pelo Banco de Portugal, causada por uma "incorreta leitura hermenêutica dos parâmetros normativos do artigo 121, nº1 alínea c) do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF). O artigo a que diz respeito o dever de informação.

Tribunal concentra olhar no dever de emissão de reservas

Para a juíza encarregada do processo, Vanda Miguel, a interpretação do supervisor sobre o dever de informação colide com o que durante o julgamento apurou ser o dever de informação dos auditores e nesse sentido referiu mesmo que o momento em que devem ser comunicados factos suscetiveis de gerarem reservas às contas de uma instituição financeira "não está de acordo com as 'legis artis' e com o que é normal na vida de uma auditoria", segundo noticiou a Lusa.

O Tribunal considerou que, o auditor só deve comunicar ao supervisor depois de esgotar todos os seus procedimentos de auditoria e não antes disso, referindo, na sentença de absolvição que a função dos auditores não deve limitar-se a um mero "correio" do Banco de Portugal. E não como pretende o supervisor antes de esgotados todos os procedimentos. É neste sentido que o tribunal conclui pela absolvição, atendendo ao facto de o auditor não poder à data dos factos emitir qualquer reserva.

É neste enquadramento, e depois de ouvidas as 11 testemunhas, depois de algumas desistências (o Banco de Portugal apresentou 7 e os arguidos 44 ) e as partes, que o tribunal chega à conclusão de que não foi violado o dever de informação, assim como também não houve prestação de informação falsa ao supervisor relativamente aos factos dados como provados durante o julgamento.

Entre as várias questões que pesaram no veredicto do tribunal, uma delas teve a ver com o conhecimento das atas das duas assembleias gerais do BES Angola, realizadas a 3 e 21 de outubro de 2013, sobre a emissão da garantia soberana do Estado angolano a 31 de dezembro de 2013. Uma garantia destinada a cobrir eventuais incumprimentos da carteira do BES. A este respeito Vanda Miguel referiu que outras auditorias e inspeções feitas ao BES Angola não apontaram a existência de falta de informação relevante, mas que foi precisamente a KPMG Angola que colocou reservas, por "não conseguir contabilizar as provisões para efeitos locais". Sublinhando, ainda, que nem o Banco Nacional de Angola (BNA) reportou qualquer "problema grave na carteira do BES Angola".

Quanto a estas matérias o Banco de Portugal considera que sabendo a KPMG desta garantia deveria ter informado o Banco de Portugal, que existem provas de que quando questionados em 2014, a KPMG não partilhou com o supervisor esta informação.

Interpretação "aberrante"

Os pareceres que acompanham o recurso do Banco de Portugal para o Tribunal da Relação, um da autoria de Luís Silva Morais, enquanto jurisconsulto independente, e Lúcio Tomé Feteira, professores na Faculdade de Direito de Lisboa e da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, respetivamente, e outro de Lúcia Lima Rodrigues, professora Catedrática de Contabilidade na Universidade do Minho, dizem que a interpretação do tribunal "afigura-se em absoluto insustentável a vários títulos".

Consideram "que a mera duplicação da legis artis em matéria de auditoria (...)", defendida pelo tribunal da Concorrência "é aberrante", não só à luz da legislação nacional como europeia, assim como em relação a recomendações e diretivas existentes no que toca à relação entre auditoras e supervisores. Os pareceres tentam, como é óbvio, desmontar os alicerces da absolvição sustentada pelo tribunal.

Entre várias considerações jurídicas e técnicas, as opiniões assentam sobretudo no "momento" em que o dever de informação dos auditores perante os supervisores deve ter lugar .

No parecer de Luís Silva Morais e Lúcio Tomé Feteira, pode ler-se que o tribunal restringe o alcance do artigo 121 nº 1 do RGICSF (dever de informação) à exigência dos auditores externos e revisores oficiais de contas "ao momento a partir do qual houvesse a certeza de que determinado facto ou decisão implicaria a recusa de certificação das contas ou a emissão de reservas". Uma interpretação que, consideram, dá "azo a uma visão desculpabilizante da natureza e relevância das funções de auditoria, ignorando a fundamental dimensão de interesse público (...)".

Mais, acrescentam, que não faria qualquer sentido "aguardar pela concretização de quaisquer destes cenários para concluir pela materialidade relevante do facto". Ou seja, o dever de informação deve ser comunicado pelos auditores ao supervisor com "a maior brevidade possível", de modo a que não se torne tarde demais. Isto porque o dever de informação esplanado no artigo 121 é peremptório ao referir que os revisores oficiais de contas e os auditores externos que "por exigência legal, prestem a uma instituição de crédito serviços de auditoria são obrigados a comunicar ao Banco de Portugal, com a maior brevidade, os factos respeitantes a essa instituição de que tenham tido conhecimento no exercício das suas funções".

E, ainda segundo o mesmo artigo, desde que esses factos sejam susceptíveis de "constituir uma infração grave às normas, legais ou regulamentares, que estabelecem as condições de autorização ou que regulam de modo específico o exercício da actividade das instituições de crédito; afetar a continuidade da exploração da instituição de crédito; ou determinar a recusa da certificação das contas ou a emissão de reservas".

Na parecer de Lúcia Lima Rodrigues a tónica recai sobre saber se o auditor pode ou não, perante os dados a que tem acesso ter uma estimativa de perdas. "Se o auditor não tem forma de obter a prova que necessita, não pode fazer mais nada exceto expressar uma reserva por limitação de âmbito", lê-se no parecer.