São dois temas chave na vida diária dos portugueses e duas faces fundamentais desta crise provocada pela covid-19. Dois pratos que se querem em equilíbrio, numa balança fortemente pressionada pela maior crise de saúde pública dos últimos 100 anos. De um lado, o trabalho. Do outro, a saúde. Com o confinamento, a paralisação da economia não podia ser prolongada, sob pena de um crescimento ainda mais exponencial do desemprego e do fecho de muitos negócios. Com o desconfinamento, a saúde ficou sob pressão e levantaram-se novas questões sobre a gestão do SNS (Serviço Nacional de Saúde).
Tecnologia é, precisamente, o meio que, quer na área do trabalho quer na da saúde, tem funcionado como facilitador de uma certa normalidade em tempo de pandemia. Sem esta ferramenta não teria sido possível, por exemplo, manter quase metade do país em teletrabalho durante praticamente três meses. Sem a tecnologia não teria sido também possível assegurar consultas à distância, como aconteceu em alguns hospitais públicos e privados, nem, tão-pouco, garantir um mínimo contacto entre família e doentes (de covid e de outras patologias).
“Acredito que a crise sanitária possa ter incutido, em todos os agentes políticos e sociais, a importância da proteção da saúde em termos estratégicos”, disse ao Expresso Adalberto Campos Fernandes, ex-ministro da Saúde. Na sua opinião, “nenhum país sairá desta crise, de forma sustentada, sem reorientar as prioridades no que diz respeito ao reforço dos meios em saúde, ciência e tecnologia”.
Os patrões e a pólvora sem fumo
O paradigma do trabalho tal como o que conhecemos já tinha os dias contados antes da chegada da covid-19. Contudo, em poucos meses, a evolução verificada na forma de trabalhar foi tão rápida que, dizem os especialistas, está dado o primeiro passo para as mudanças que já se anteviam para a próxima década. Mais do que o aumento do trabalho remoto, esta crise veio demonstrar a importância da formação e requalificação de recursos para novas tarefas e áreas de trabalho e para as mudanças que a automação de processos impõe ao mercado. “A competitividade não se atinge com mão de obra mal paga e com baixas qualificações. É uma ideia errada e vem de políticas que não acompanham a evolução do mercado de trabalho”, alerta o advogado António Garcia Pereira.
Nadim Habib, professor na Nova SBE, reforça que não há competitividade sem um aumento da produtividade (que, em Portugal, decresce sistematicamente desde a década de 90), apesar da introdução de ferramentas tecnológicas. “Não foi pensada a organização do trabalho. É preciso alterar os tipos de contratos e reimaginar o trabalho em geral”, aponta. Para fazê-lo, acrescenta Garcia Pereira, será necessário alterar a legislação, nomeadamente no que diz respeito ao regime de teletrabalho, garantindo os direitos dos trabalhadores, que são sempre o ‘elo mais fraco’ nesta equação.
Neste período de pandemia, “muitos patrões descobriram a pólvora sem fumo com o teletrabalho”, atira o advogado. Antes, o mito instalado fazia crer que o trabalho remoto não seria benéfico para a entidade patronal. Agora, a experiência veio demonstrar que há elevadas poupanças para os patrões — redução do custo com o trabalho, menos absentismo, maior quantidade de horas trabalhadas, maior controlo sobre os movimentos do trabalhador e, cereja no topo do bolo, despesas com equipamentos e internet maioritariamente pagos pelos funcionários. Aliás, segundo um estudo recente da Regus, em 71,5% dos casos de teletrabalho, foram os trabalhadores a pagar as despesas. “A regulamentação tem que ser muito precisa, com uma definição bem clara da responsabilidade sobre os equipamentos de trabalho”, conclui Garcia Pereira.
Fatura das famílias com a saúde é excessiva
O SNS tem sido a figura principal no combate à pandemia. Até ao momento, o esforço dos profissionais de saúde conseguiu evitar o colapso do sistema, mas, segundo os especialistas, à custa de elevados danos colaterais, sobre os quais só teremos verdadeira noção no futuro. Para os próximos meses é fundamental planear uma resposta organizada, otimizar recursos e custos. “Vão existir mais patologias, mais procura, o que exige uma necessidade muito elevada de planeamento. É tempo de o Ministério da Saúde refletir e liderar o processo sobre a forma de programação dos próximos meses”, diz Carlos Cortes, presidente da Ordem dos Médicos do Centro.
No entanto, a par da gestão operacional desta crise e do dia a dia de centros de saúde e de hospitais, a questão do financiamento do SNS continua a ser um assunto prioritário ao qual, muitas vezes, não se dá suficiente relevância, como acredita Ricardo Raminhos. O presidente da MGEN Portugal recorda que a parte pública desta despesa (66%) é inferior à média europeia, sendo os pagamentos diretos das famílias (28%) e sistemas voluntários de seguros de saúde (cerca de 5%) no seu conjunto superiores à média das nossas congéneres, o que faz de Portugal um dos países onde o out-of-pocket (esforço das famílias) é mais elevado. “O peso excessivo dos pagamentos diretos na saúde reduz a acessibilidade e contribui para o empobrecimento geral dos agregados familiares. Trata-se de um elevado risco para as famílias e com desigualdades sociais gritantes”, salienta.
Solução? Ricardo Raminhos acredita que o caminho não é aumentar a dívida pública: “Os seguros de saúde privados também têm de assumir a sua parte de responsabilidade.” O que, na sua opinião, não estão a fazer. A maioria dos custos do sistema de saúde está relacionada com a prestação de cuidados a pessoas com patologias crónicas, reflexo de uma população envelhecida. “As seguradoras tradicionais privadas recusam a proteção dos mais idosos nestas situações e, no caso da covid, também viraram as costas aos segurados.” E conclui: “Se todos os atores da saúde estivessem sujeitos às mesmas regras e obrigações, a sustentabilidade do SNS poderia ser, no futuro, otimizada.”
Novos tempos de trabalho e saúde
A pandemia veio acelerar a adoção do trabalho remoto. Agora é preciso legislar para proteger os direitos e deveres de patrões e funcionários. Vários especialistas apontaram tendências, desafios e soluções na conferência do ciclo “Parar para Pensar” sobre “Novo Trabalho”: Nuno Cavaco, da Universidade Nova de Lisboa, António Garcia Pereira, advogado, Teresa Carla Oliveira, da Universidade de Coimbra, Pedro Paiva, da Samsung Portugal, e Nadim Habib, da Nova SBE. Mas, esta semana, o estado da saúde em Portugal e a resposta do SNS à crise provocada pela covid-19 também estiveram em debate, naquela que foi a sexta conferência do ciclo: Adalberto Campos Fernandes, ex-ministro da Saúde, Julian Perelman, da Escola Nacional de Saúde Pública, Carlos Cortes, da Ordem dos Médicos da Região Centro, e Ricardo Raminhos, da MGEN Portugal, foram os convidados.
Artigos originalmente publicados no Expresso de 11 de julho de 2020