A empresa alemã de serviços financeiros Wirecard apresentou um processo de insolvência no final da semana passada, depois do colapso provado pela deteção de um “buraco” de 1,9 mil milhões de euros nas suas contas. E entre 2018 e 2020 teve entre os seis elementos do seu conselho de supervisão Susana Quintana-Plaza, que é, desde o ano passado, administradora executiva na Galp Energia.
A gestora espanhola, que na Galp assume o pelouro das energias renováveis, abandonou a Wirecard em abril deste ano, quando já estava em curso uma auditoria externa às contas da empresa, mas ainda antes de o resultado dessa análise revelar que o balanço da Wirecard escondia um “buraco” de 1,9 mil milhões de euros, que veio a provocar, já em junho, o colapso da empresa em bolsa e a demissão do seu presidente executivo.
No seu currículo, Susana Quintana-Plaza teve passagens pela Boeing (depois de se formar em tecnologia aeroespacial) e (já depois de um mestrado em gestão) pelos grupos GE e E.On. Em 2016 a gestora trocou a E.On pelo braço de capital de risco da também alemã Siemens. Em 2018 passou a ocupar um dos seis lugares do conselho de supervisão da Wirecard, cargo que manteria mesmo após ser escolhida, em abril de 2019, para ser administradora executiva da Galp. Na Wirecard Susana Quintana-Plaza integrava ainda o comité de remunerações e de recursos humanos.
Os conselhos de supervisão, compostos por elementos sem funções executivas, servem habitualmente para representar os acionistas de referência de determinada empresa, fiscalizando a atuação da respetiva comissão executiva. Através da Galp Energia, o Expresso tentou esta segunda-feira questionar Susana Quintana-Plaza sobre se considera que o conselho de supervisão da Wirecard falhou nas suas obrigações, e sobre se o que aconteceu na “fintech” alemã põe em causa o cumprimento das suas funções na Galp.
O Expresso questionou ainda a presidente (e maior acionista) da Galp Energia, Paula Amorim, sobre se mantém a confiança na gestora que esteve na supervisão da Wirecard, mas não obteve resposta da empresária.
Fonte oficial da Galp, contudo, declarou ao Expresso que "a Galp desencadeou já os procedimentos de governance aplicáveis, em face da informação recentemente divulgada sobre a Wirecard, não se registando qualquer informação suscetível de pôr em causa a idoneidade da sua administradora executiva Susana Quintana-Plaza".
A petrolífera acrescenta que "Susana Quintana-Plaza havia terminado anteriormente a sua colaboração com a Wirecard de forma amigável, para se dedicar em exclusivo às responsabilidades e desafios no âmbito do processo de transformação da Galp".
O colapso
A Wirecard, fundada em 1999 em Munique, entrou em bolsa em 2005 e internacionalizou-se nos anos seguintes, entrando em Singapura em 2007 e apostando, no ano seguinte, nos pagamentos com cartões de crédito virtuais. A expansão levou-a mercados tão diversos como os Estados Unidos da América, Nova Zelândia, Austrália, Turquia e Brasil. Em 2018 entrou no principal índice bolsista alemão, o DAX, ocupando o lugar do então despromovido Commerzbank.
O crescimento foi explosivo e a Wirecard chegou a valer mais em bolsa do que o Deutsche Bank. Mas este mês em apenas uma semana a cotação em bolsa da empresa alemã afundou-se 98,8%, de 104,5 euros para apenas 1,28 euros por ação (na passada sexta-feira). Para isso contribuiu o colapso resultante da deteção de uma manipulação do balanço da empresa, que conseguiu esconder insuficiências de 1,9 mil milhões de euros.
Há vários anos que a empresa estava sob suspeita. Em 2015 o “Financial Times” começou a levantar questões sobre alegadas inconsistências contabilísticas na Wirecard, apontando o que parecia ser um “buraco” de 250 milhões de euros no balanço da empresa, que então contestou as alegações. Para se defender, a Wirecard contratou o escritório de advogados britânico Schillings, com o qual já trabalharam conhecidas figuras, como Cristiano Ronaldo (no Football Leaks) e, mais recentemente, Isabel dos Santos (a propósito dos Luanda Leaks).
Em novembro de 2015 a J Capital Research escrevia que as operações da Wirecard na Ásia eram significativamente menores do que as reportadas pela empresa, mas a “fintech” alemã acusou a empresa de produzir um relatório encomendado e pago por investidores que estavam a apostar na queda da cotação da Wirecard (“short-sellers”).
Já em 2016 começam a surgir acusações de branqueamento de capitais, que são refutadas pela Wirecard e levam o supervisor alemão dos mercados financeiros a investigar uma suposta manipulação de mercado pelos autores dessas acusações.
Segundo o “Financial Times”, em março de 2018 o departamento jurídico da Wirecard começou a investigar internamente três elementos da sua área financeira depois de um denunciante ter exposto um alegado plano da Wirecard para enviar fundos para a Índia numa operação fraudulenta.
Neste ano as ações alcançariam um máximo histórico de 191 euros, que davam à Wirecard uma capitalização bolsista de 24 mil milhões de euros.
Em janeiro de 2019 o “Financial Times” volta a escrever sobre a Wirecard, para reportar uma investigação às operações da companhia alemã em Singapura, logo negadas pela “fintech”. Também o jornal britânico passou a ser investigado pelo supervisor financeiro alemão por suspeitas de manipulação de mercado. Mas logo em fevereiro as autoridades de Singapura fazem buscas nos escritórios locais da Wirecard. Na Alemanha o supervisor do mercado de capitais proíbe o “short-selling” de ações da Wirecard. A venda a descoberto ocorre quando investidores pedem emprestadas ações que não são suas: vendem esses títulos imediatamente, quando a cotação está mais alta, e compram igual número de ações para as devolver (e fechar o empréstimo) quando a cotação está mais baixa; se de facto a cotação baixar nesse período o investidor ganha a diferença; mas se as ações valorizarem o “short-seller” fica com o prejuízo.
Ao longo do ano passado o “Financial Times” escreveu várias vezes sobre a Wirecard. Nas Filipinas, por exemplo, o jornal descobriu que uma das empresas subcontratadas pela Wirecard tinha como morada a casa de um pescador reformado que desconheciam a relação com o grupo alemão.
Apesar das dúvidas sobre o grupo, em abril de 2019 a Wirecard ainda recebeu um investimento de 900 milhões de euros do poderoso grupo japonês Softbank.
Em outubro de 2019 o “Financial Times” publica documentos que indiciavam que os lucros da Wirecard no Dubai e em Dublin estavam inflacionados, e que a empresa tinha facultado à auditora EY listas de clientes que não existiam. A Wirecard contrata então a KPMG para uma auditoria especial.
O relatório da auditoria da KPMG é concluído em abril de 2020, com a auditora a admitir ter enfrentado vários obstáculos no seu trabalho. Ainda assim, o presidente executivo da Wirecard, Markus Braun, informou então os acionistas que a EY assinaria as contas de 2019 “sem problemas”.
A 18 de junho a Wirecard assume publicamente que há um "buraco" de 1,9 mil milhões de euros nas suas contas de 2019.