A caminho do ateliê reparei, mais uma vez, nas trotinetas caídas no passeio”, confessa o arquiteto Miguel Saraiva, enquanto reflete sobre o papel que os novos meios de mobilidade devem ter na edificação da cidade do futuro que, ponto prévio, já é “a cidade de hoje”. O presidente da Saraiva + Associados defende que “tem que haver mais regras”, o que não é sinónimo de acabar com estas alternativas, antes pelo contrário. “Os novos operadores de mobilidade são todos privados e não devia ser assim. Não criar trotinetas dentro da Carris, por exemplo, é um erro.”
Atualmente, só em Lisboa, existem cerca de 6 mil trotinetas disponibilizadas por oito empresas e que, diariamente, são utilizadas à volta de 13 mil vezes. O que aconteceu em pouco mais de ano. De acordo com os dados da autarquia, a polícia municipal já apreendeu perto de 2200 trotinetas mal estacionadas desde fevereiro, com as multas a já terem chegado aos €17 mil. A atenção é maior, mas as trotinetas mantêm-se como exemplo de um meio elétrico virado para o futuro que se procura enquadrar nas necessidades do presente. Sem esquecer, lembra Miguel Saraiva, que “a ocupação do solo vai ocorrer muito mais na horizontal do que na vertical” e que os planos urbanos devem ser feitos a “20/30 anos” e não a “quatro ou cinco” . É uma “mudança de paradigma” que surge quase como “uma emergência social.”
“A cidade do futuro vai ter que conjugar três fatores essenciais: cultura, inovação e a administração da própria cidade.” Quem o diz é o diretor-geral da CBRE, Francisco Horta e Costa, que reforça a opinião que “a cultura é fundamental para a cidade se manter na vanguarda e para atrair investidores”, enquanto “toda a tecnologia associada à mobilidade vai gerar poupanças e ganhos de eficiência enormes na gestão das cidades”. Numa fase em que a malha urbana começa a sentir a pressão de mais população e da necessidade de a inovação dar uma resposta à sustentabilidade, “é fundamental tomar decisões sobre a melhoria das infraestruturas”. Seja em mais vias pensadas para bicicletas ou meios mais eficientes para o carregamento de meios de locomoção elétricos, por exemplo.
O administrador da empresa Nadlan Partners, Benjamin Katz , acredita que as cidades “terão os mesmos desafios de hoje e do passado”, tais como “oferecer segurança, qualidade de vida e contribuir para quem nelas habitam tenha o máximo de conforto, como didade e mobilidade”. Este último é visto pelo dono da marina de Cascais como “o maior desafio”, sobretudo como forma de contribuir para uma “utilização mais eficaz de recursos, menos poluentes e recicláveis”. Por isso está neste momento um projeto em curso com a autoria da Saraiva + Associados para “aumentar o leque de usos” da marina que “é um polo de atração”, mas que se “pode abrir ainda mais à população”, defende Miguel Saraiva. É um diálogo “entre moderno e antigo” que pode dar pistas para os caminhos a trilhar no processo de renovação das cidades, num campo onde “a arquitetura urbana é essencial para todos estes fatores”.
Moda passageira
“A cidade que vence os desafios do futuro é a cidade capaz de se abrir ao mundo ao mesmo tempo que preserva a sua identidade. É a cidade competitiva mas que não deixa nenhum dos seus para trás”, lança Carlos Carreiras. O presidente da Câmara Municipal de Cascais tem na promoção da cidade inteligente uma das suas grandes bandeiras e tem procurado aplicar esses princípios ao município da linha. O concelho alberga o primeiro veículo totalmente autónomo a operar em Portugal, integrado na rede de mobilidade e com capacidade para levar 12 pessoas, naquela que pode ser uma pequena janela para aquilo que o futuro nos reserva. “Seremos a primeira autarquia do país a ter transportes públicos, internos e rodoviários, totalmente gratuitos em 2020”, lembra, enquanto destaca a importância da “aplicação tecnológica à política local”.
O autarca teme que “em muitos casos, a conversa sobre cidades inteligentes seja mais moda passageira e negócio do que preocupação genuína” e acredita que “não estamos, ainda a lidar com esses desafios como a realidade exige”. Algo que devia preocupar mais, quando 58% dos 308 municípios portugueses têm menos de 20 mil habitantes e, por si só, “não têm recursos financeiros e massa crítica para ganharem a batalha da competitividade”. O que leva Carlos Carreiras a deixar um apelo: “Temos de largar a política de capelinha. Os municípios portugueses serão tão mais fortes quanto mais forem capazes de partilhar recursos e agregar competências.”
Paulo Morgado, administrador da ERA Portugal, não tem dúvidas deque “hoje sabemos que as cidades mais bem preparadas são aquelas que criam condições para a coexistência de habitações, comércio, escritórios de serviços e oficinas de produção” assim como para “uma estrutura de transportes públicos multiplataforma”. A procura de casas também aumentou e, quando a política de rendas acessíveis está em destaque na esfera pública, o responsável acredita que “o futuro passa pela reabilitação urbana, mas também pela criação de novas zonas urbanas interligadas por transportes ultrarrápidos que tornam as distâncias irrelevantes” e permitem a expansão geográfica das cidades como forma de responder à pressão urbana. “Se, por exemplo, tivéssemos Évora e Santarém a 15 minutos do centro de Lisboa através de comboio rápido, rapidamente teríamos o problema de habitação em Lisboa solucionado”, atira.
“A natureza ‘imóvel’ da indústria do imobiliário faz com que ela seja lenta a reagir à mudança mas, por outro lado, mais consciente dos desafios futuros”, diz o sócio-gerente da Cushman & Wakefield, Eric Van Leuven, com a visão que, apesar de tudo, o processo de consciencialização para a mudança já está a avançar. E que se é desejável e expectável que avance para um cenário mais “utópico”, também é possível que se estas preocupações não foram tidas em conta, nos deparemos com uma “versão apocalíptica” para o futuro, em que “a cidade do futuro é altamente poluída, um sorvedouro de recursos, desigual e violenta”.
A burocracia continua a ser muitas vezes “o entrave”
Sensivelmente a meio do IV Encontro Fora da Caixa, Economia = Mercado x (Conhecimento & Cultura), as luzes deixaram a sala mais escura e Katia Guerreiro entrou em palco. Num dos momentos altos da conferência do projeto que junta CGD e Expresso, a cantora deixou o Centro de Congressos do Estoril rendido, até quando cantou um fado sobre um “dia mau”. Expressão que se poderia aplicar ao período que o planeamento urbano e as questões da mobilidade viveram durante muito tempo em Portugal mas que agora parecem finalmente ganhar mais atenção de longo prazo. “Excetuando talvez a ideia da necessidade de apostar mais na construção vertical, que não é muito bem recebida, diria que estamos a lidar bem com as perspetivas do futuro”, garante o presidente da Associação Profissional de Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal, Luís Lima, que acredita que “o maior desafio é o planeamento”. Na opinião de Miguel Varela Gomes, um dos grandes problemas para lidar com o presente é claro: “O legislador tem de legislar a favor da simplificação. A burocracia é muitas vezes o entrave.” O secretário do conselho diretivo da Ordem dos Arquitetos recorda que, “há umas quatro décadas, o espaço público era o que sobrava do que era construído” e que atualmente já é mais claro que as áreas pensadas para usufruto da população “têm de fazer também parte do projeto”. Miguel Varela Gomes abordou igualmente a construção vertical, considerando-a a melhor maneira de “aumentar a densificação urbana e a massa crítica de forma a atrair mais pessoas”. O evento foi ainda assinalado com a gravação de uma emissão especial do programa da SIC Notícias “O Estado da Nação”, moderado por Ricardo Costa e que contou com a participação de Marina Costa Lobo, do ICS da Universidade de Lisboa, António Correia de Campos, ex-ministro da Saúde, Joaquim Miranda Sarmento, professor do ISEG, e João Confraria, professor da Universidade Católica Portuguesa, que fizeram um balanço da legislatura do atual Governo.
Textos originalmente publicados no Expresso de 13 de julho de 2019