Economia

De negócio milionário a sector em crise: um retrato das farmácias em números

O travão forte imposto nos gastos do Estado com medicamentos, a liberalização da propriedade da farmácia e a perda da exclusividade dos remédios não sujeitos a receita médica, entre outras medidas, pressionaram o negócio das farmácias. Os resultados continuam no vermelho e pode estar em causa o acesso dos doentes à medicação

David Clifford

Bastaria olhar para a cronologia da despesa do Serviço Nacional de Saúde (SNS) com medicamentos dispensados ao balcão das farmácias para adivinhar como correu (mal) este negócio nos últimos anos.

Os fármacos comparticipados pelo Estado representam 72% do volume de negócios das farmácias e a poupança do SNS com remédios teve um forte impacto no sector, que reclama a alteração da forma como se calculam as suas margens.

De acordo com o estudo “Sustentabilidade da Dispensa de Medicamento em Portugal 2015, 2106 e Projeções 2017”, feito em co-autoria por Avelino Azevedo Antão, da Universidade de Aveiro, e Carlos Manuel Grenha, da sociedade de Revisores Oficiais de Contas Oliveira, Reis & Associados, “a remuneração da distribuição (farmácias e grossistas), com a dispensa de medicamentos em ambulatório, reduziu 286,2 milhões de euros [de 2010] até 2016, decréscimo muito superior ao objetivo de assistência financeira que era um decréscimo de 50 milhões de euros”.

Já a despesa do SNS com remédios em meio hospitalar não sofreu o mesmo impacto, o que motiva descontentamento junto dos representantes das farmácias, que consideram que lhes foi imposto um esforço desigual. “As farmácias estão há mais de dez anos a ser alvo de medidas de austeridade, muitas vezes sem qualquer critério. Um bom exemplo disso é o que aconteceu quando o país foi intervencionado. O Memorando de Entendimento celebrado entre a troika e o Estado português preconizava uma redução de 50 milhões de euros nas margens de farmácias e distribuidores. As medidas de austeridade efetivamente aplicadas pelos governos conduziram a um corte mais de seis vezes superior. Nenhum sector, por mais organizado, pode suportar uma coisa destas”, sustenta o presidente da Associação Nacional das Famácias (ANF), Paulo Duarte.

Segundo dados do Infarmed, em 2017, a despesa pública com medicamentos contraiu 11%, face a 2010, à custa da redução de 26% na despesa com fármacos dispensados nas farmácias, enquanto no meio hospitalar se registou um aumento de 13%.

Em 2016, o total do mercado de medicamentos em Portugal (engloba os remédios não comparticipados) valia 3667 milhões de euros, menos 14,6% em relação a 2010. As vendas das farmácias recuaram 21% para os 2536 milhões de euros, enquanto o valor do negócio em meio hospitalar subiu 5,8% para os 1088 milhões de euros (dos quais 1081,8 milhões de euros foram pagos pelo SNS), em 2016.

Os anos da troika foram particularmente difíceis para o sector das farmácias, mas os constrangimentos que mudaram para sempre as regras (e a rentabilidade) do negócio começaram antes.

À liberalização da propriedade da farmácias e da venda de medicamentos sujeitos a receita médica, a partir de 2005, seguiram-se sucessivas reduções administrativas nos preços dos medicamentos e das margens da distribuição (ambos definidos pelo Estado).

O impacto no negócio foi imediato e, logo, os resultados das farmácias entraram no vermelho. Prejuízos, dívidas e falências passaram a estar a associados a um sector, até então alheio a esta realidades. Aliás, juntas, as farmácias, chegaram a rivalizar em termos de volume de negócios conjunto dos gigantes da distribuição Jerónimo Martins e Sonae.

De acordo com o estudo da Universidade de Aveiro, em 2017, uma farmácia média facturava cerca de 758 802 euros, por ano, com medicamentos comparticipados pelo Estado. A margem bruta ascendia a 165 mil euros e o resultado operacional a 2691 euros. A situação de prejuízo manteve-se tal como em anos anteriores, com um resultado líquido negativo de 1757 euros.

Todos estes indicadores melhoraram face ao desempenho de 2015 e de 2016, segundo os autores do estudo (que calcularam os indicadores da farmácia média com base numa amostra de 1490 estabelecimentos). Porém, o sector, que soma 2942 farmácias e dá trabalho a 8958 farmacêuticos, continua a não ter viabilidade económica, sustentam os investigadores.

"Em todos os anos em análise, o resultado líquido da farmácia média apurado para o segmento de medicamentos comparticipados teve resultados negativos, confirmando que o modelo económico atual para a dispensa de medicamentos sujeitos a receita médica e não sujeitos a receita médica comparticipados não é economicamente viável".

Mesmo assim, no que toca ao acesso ao medicamento, “as farmácias apresentam uma correlação positiva com a distribuição da população, particularmente em relação à população com 65 anos ou mais. Os indicadores de cobertura farmacêutica parecem indiciar uma distribuição adequada às necessidades da população em especial em zonas mais desfavorecidas, como é o caso do interior de Portugal”, frisam os autores do estudo, que foi feito a pedido da ANF. “Em termos de comparação internacional, o número de farmácias em Portugal está em linha com a média europeia e acima da média mundial e também dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico)”, acrescentam Avelino Antão e Carlos Grenha.

Tal não significa que as medidas de austeridade levadas a cabo no sector tenham sido inócuas para os doentes. “Os portugueses deixaram de conseguir aviar integralmente as receitas médicas à primeira. No ano passado, registámos a falta de mais de 48 milhões de embalagens de medicamentos. Esse fenómeno tem várias explicações, entre as quais a crise, as dívidas a fornecedores e a falta de liquidez de muitas farmácias. Com o esforço de todos, esse problema vai-se resolvendo”, relata o presidente da ANF. Aliás, Paulo Duarte, avisa que o retrato da distribuição geográfica de farmácias pode vir a alterar-se. “O pior é que as farmácias mais pequenas, como demonstra este estudo de forma inequívoca, se tornaram inviáveis Essa é uma das grandes questões atuais, não só de política de saúde mas também de coesão territorial. No interior desapareceram escolas, centros de saúde, tribunais e postos de correio. O Estado tem de decidir se também quer fechar farmácias e tornar o medicamento mais distante e de acesso mais difícil por parte das populações mais isoladas”.