ARQUIVO Marcelo Caetano: a transição falhada

"Marcelo Caetano foi um homem excepcional"

O último colóquio "Tempos de Transição" foi dedicado à intimidade de Caetano. Marcelo Rebelo de Sousa disse que ele "chegou tarde demais ao poder" e a filha Ana Maria recordou os tempos em que foi a primeira-dama.

José Pedro Castanheira (texto) e Tiago Miranda (fotos)

Marcelo Rebelo de Sousa não se esqueceu de sublinhar que Caetano "traçou a vida de meu pai". E revelou que chegou a aconselhá-lo a não ir para o seu próprio Governo - conselho que Baltazar Rebelo de Sousa não seguiu, já que desempenhou vários cargos governamentais, entre os quais o de ministro das Corporações e do Ultramar.

Marcelo explicou com detalhe as suas relações com a família Caetano: com Marcelo, com a esposa Teresa (sua madrinha de baptismo) e com alguns dos filhos, especialmente Ana Maria e Miguel, ambos presentes no colóquio. Para que não houvesse confusões por causa dos nomes, ele era habitualmente tratado por Marcelo Nuno, reservando-se o de Marcelo para o futuro Presidente do Concelho.

"Chegou tarde demais ao poder"

Rebelo de Sousa falou durante quase uma hora. De improviso, mas sempre a recorrer às notas que preparara. O discípulo teve palavras de grande elogio para o mestre.

Referiu a vastidão da sua cultura (histórica, literária e, claro, jurídica), "a inteligência completa", o seu "forte sentido do dever", a "curiosidade perante a mudança". Acentuando as suas diferenças com Salazar e outras figuras cimeiras do Estado Novo, definiu Caetano como "tipicamente urbano", "muito viajado", adepto da "liberdade económica" e de um "corporativismo de associação". Francófono, tinha "uma secreta simpatia pela Inglaterra" e admirava Churchill.

Em sua opinião, Caetano "chegou tarde demais ao lugar". Em 1951, quando Craveiro Lopes foi eleito Presidente, seria "avant la lettre". "O momento natural" teria sido 1958, "antes da guerra em África, da evolução do projecto europeu e da mudança das ideias políticas".

Dez anos para liberalizar

Ana Maria Caetano. A filha que acabou por ser a primeira-dama de Marcelo Caetano
Quando chegou ao poder, estava norteado por três "ideias" fundamentais. Para África, tinha uma "ideia regionalista e tendencialmente federalista ou mesmo confederalista", para cuja concretização necessitaria "de dez a quinze anos". A segunda ideia era introduzir "mudanças na economia e na sociedade". Por fim, "queria mesmo a liberalização, primeiro com pluralismo interno e, depois, no plano externo" - projectos a serem concretizados num "horizonte de dez anos". Na opinião do professor e ex-líder do PSD, "1968 e 1969 foram anos de idílio entre Marcelo Caetano e a sociedade portuguesa - e vice-versa".

"Seria Marcelo Caetano um homem excepcional?" Foi esta a pergunta a que Rebelo de Sousa tentou dar resposta na última parte da sua exposição. A resposta acabou por ser afirmativa. "Em termos gerais, era um homem excepcional. No quadro histórico em que viveu, não é fácil encontrar figuras" com projecção e qualidades semelhantes. Só que "chegou tarde ao último encontro com a história". E enfatizou: "O que há de mais impressionante é a constância de Marcelo Caetano no regime".

"A pessoa que suceder a Salazar é para abater!"

A última oradora foi Ana Maria Caetano, filha de Marcelo e que, em virtude da doença e morte da mãe, acabou por ser a primeira dama durante os anos que o pai exerceu as funções de Presidente do Conselho. Numa intervenção de 40 minutos, escrita e muito bem preparada - que mais parecia um ensaio do que um simples testemunho filial -, Ana Maria chamou a atenção para a necessidade de "a história não ser contada apenas pelos vencedores". E advertiu: "Não vou defender nem justificar o meu pai, vou talvez tentar ajudar a entendê-lo".

Referiu-se com detalhe ao drama da doença da mãe e ao sofrimento que isso sempre provocou no pai. "Para mim, a minha razão de viver desapareceu", confidenciou Caetano à filha, após a morte da esposa. Também à filha chegara a prever: "A pessoa que suceder a Salazar é para abater!". E assim pensava, por que razão aceitou Caetano suceder ao ditador de Santa Comba Dão? Foi o que Ana Maria tentou explicar, dando elementos sobre uma relação que foi tudo menos linear, marcada até por "muitas zangas" com Salazar. "Seria Marcelo Caetano o filho que Salazar desejou e nunca teve?" - foi uma interrogação que deixou no ar.

Uma assembleia com partidos mas sem o PC

Miguel Caetano, um dos filhos de Marcelo Caetano, esteve entre a assistência
Na opinião da filha, Caetano defendia uma "liberalização, mas com algumas regras". Inclusivamente na área da liberdade de Imprensa, mas onde não era adepto de uma "total abertura". No plano do pluralismo político, admitiria "uma assembleia com alguns partidos", mas não com o Partido Comunista. Aqui, não se furtou a mencionar os governantes de Caetano que mais tarde vieram a pertencer ao PS. Quanto aos comunistas, lembrou os tempos em que "Pedro Ramos de Almeida passava as tardes em nossa casa". Quanto a África, frisou que "o meu pai tinha uma grande utopia: descolonizar de forma diferente dos outros países". Com o correr do tempo, Caetano acabou por se isolar. Ana Maria recorreu a uma caricatura: "O meu pai parecia uma ilha rodeada de oposição por todos os lados. Teve o condão de não agradar a ninguém - a não ser, quem sabe, ao Portugal profundo..."

Quartel do Carmo foi uma "ratoeira"

Entre Rebelo de Sousa e Ana Maria Caetano, falou Pedro Feytor Pinto. Colaborador íntimo de Caetano na área da comunicação social, relatou alguns episódios relacionados com a censura, mas também com a DGS. Quanto à guerra, fez questão de dizer que "nunca lhe ouvi uma palavra de apoio a uma independência unilateral branca de tipo rodesiana. Nunca. O seu projecto era o de criar novos Brasis, através de uma autonomia progressiva e participada".

Pedro Pinto, que assistiu ao diálogo da rendição entre Caetano e Spínola, na tarde de 25 de Abril de 1974, classificou o quartel do Carmo como uma "ratoeira". "Ainda hoje continuo sem saber quem o levou para lá".

Este foi o último colóquio do ciclo "Tempos de Transição", dedicado à governação de Marcelo Caetano (1948-1974). Ao todo, foram oito colóquios, realizados regularmente desde Setembro do ano passado. Os organizadores tencionam publicar um livro, com as intervenções produzidas.