ARQUIVO Mês do ambiente do Expresso 2013

Vamos alimentar linces e abutres

No Alentejo prepara-se o terreno para que duas espécies em risco encontrem o habitat ideal para regressar. Veja o vídeo no final do texto.

Dois abutres-pretos esperam a sua vez de comer, na Herdade da Contenda. Em baixo, crias de lince num cercado, em Silves
José Ventura

Carla Tomás

Desconfiados, os abutres voam alto, atentos ao que se passa em terra. A batida de caça na Herdade da Contenda, na zona de Moura-Barrancos, despertara-lhes a atenção pela manhã e prometera-lhes um festim. O dia já vai a meio quando os homens descarregam três carcaças desmembradas na sala do repasto - um cercado de meio hectare numa das maiores herdades alentejanas. Meia hora depois, uma nuvem de abutres ataca o banquete. Contam-se duas centenas de grifos e apenas três abutres-pretos. Digladiam-se entre bicadas na carne putrefacta. Mas não comem tudo. A tarde outonal vai longa e está na hora de recolherem. Vão repousar nas encostas vizinhas até que a luz volte a raiar forte e o ar quente os faça levantar voo. O que sobra fica para o pequeno-almoço seguinte.

O salão de festas - tecnicamente definido como campo de alimentação para aves necrófagas - é um dos quatro espaços do género criados na zona alentejana de Moura-Barrancos e de Mértola, no âmbito do Programa Life "Habitat do Lince Ibérico e do Abutre-preto". O projeto de conservação destas duas espécies em perigo de extinção está a ser desenvolvido desde 2010 (até 2014), no sudeste do Alentejo e do Algarve, pela Liga para Proteção da Natureza (LPN), em parceria com a Flora e Fauna Internacional e o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). O objetivo é criar as condições para que os linces possam ser reintroduzidos em Portugal e os abutres-pretos por aqui recomecem a procriar.

"O abutre é um predador de topo que tem uma função de limpeza sanitária do ecossistema", explica Eduardo Santos, biólogo e coordenador deste projeto da LPN. Porém, as alterações na paisagem agrícola, a fragmentação do habitat e a redução de alimento disponível - já que a legislação europeia proíbe o abandono do gado doméstico que morre no campo - fazem com que seja necessário encontrar alternativas para tornar a região novamente atraente para estas aves necrófagas, que por aqui deixaram de nidificar nos anos 70.

"Os abutres são filopátricos, ou seja, para nidificar voltam ao sítio onde nasceram. E os que por aqui aparecem vêm de colónias dispersas em Espanha", esclarece Eduardo Santos, realçando a importância de aqui lhes permitir encontrar um bom berço. Para isso, além dos campos de alimentação (estão previstos nove ao todo), têm sido construídos ninhos artificiais nas copas de árvores nas encostas de várias herdades da região. Só na Contenda foram erguidos 12 ninhos. Mas ainda nenhum foi ocupado.

Todos saem a ganhar

Mas não pensemos que só os abutres saem a ganhar. Também os proprietários das terras e os criadores de gado têm benefícios: livram-se dos animais (vacas, ovelhas, cabras, porcos) que morrem de doença, de ataques de outros predadores ou de velhice (e que não poderiam ser vendidos para a cadeia de alimentação humana); promovem as suas propriedades para turismo da natureza e poupam nos gastos com o sistema de recolha e incineração de carcaças.

Só esta batida de caça, que serviu para "eliminar fêmeas de veado a mais" na Herdade da Contenda, rendeu à empresa municipal da Câmara de Moura perto de três mil euros, depois de descontados os custos. "Cada caçador pagou €100 para abater um veado (50 ao todo) e dois mil quilos de carne foram vendidos para Espanha", conta Miguel Ramalho. O responsável operacional pela herdade indica também que estão a apostar no turismo da natureza, recuperando casas antigas dos guardas florestais e abrindo as portas a observadores de aves.

Também o jovem agricultor Francisco Fialho cedo percebeu que a colaboração com o projeto lhe trazia vantagens. Na Herdade da Russiana, em Barrancos, onde se cria gado e se faz caça grossa, foram construídos abrigos e comedouros para o coelho-bravo e os proprietários serão recompensados por manterem os matagais e o montado adequados para o lince ibérico. "Quando reintroduzirem o lince, ele afasta outros predadores, como as raposas e os saca-rabos, o que é bom para nós", afirma Fialho. E acrescenta: "Além de que atrai turistas". E já está a pensar na recuperação dos montes da herdade.

"Só é possível alcançar bons resultados com a colaboração dos agricultores, dos proprietários das herdades e dos caçadores. Se as pessoas desaparecessem daqui, a qualidade do habitat também decairia", sublinha o biólogo Eduardo Santos.

Esta é igualmente a convicção de João Madeira, 41 anos, que explora uma propriedade de 890 hectares em Mértola, com gado, pastagens e forragens. "O projeto Life Lince Abutre enquadra-se na abordagem que temos de um ecossistema produtivo em equilíbrio", afirma convicto. Não tem dúvidas de que "uma população saudável de abutres permite a eliminação de outros animais selvagens que morrem nos campos (e podem ser transmissores de doenças) e a possibilidade de reintrodução do lince ibérico significa que temos o campo em bom estado e só pode valorizar o nosso território".

Mas nem todos os caçadores estão convencidos e há quem tema a concorrência dos linces na caça ao coelho-bravo. Eduardo Santos esclarece: "A época de caça não coincide com a época de reprodução do lince e é sobretudo nessa altura que é preciso haver controlo de atividades que causem perturbação, como a caça ou a silvicultura". E lembra que "a Andaluzia é a capital da caça maior e lá a população de lince quase duplicou numa década, tendo os caçadores como aliados".

Linces: para já só em cativeiro

Por cá, apesar de surgirem alguns relatos de avistamento de linces na natureza, só é certa a entrada de "Caribu" na zona de Moura-Barrancos, em 2010. O passeio luso do jovem lince que vivia do lado de lá da fronteira, na Serra Morena, foi denunciado pela coleira de telemetria que trazia ao pescoço. A reintrodução, na natureza portuguesa, dos linces que fazem parte do projeto ibérico de criação em cativeiro não acontecerá antes de 2014.

Ainda este mês, os técnicos portugueses e espanhóis vão reunir para decidir que emparelhamentos vão acontecer na próxima época de reprodução em cativeiro, em janeiro ou fevereiro. Os especialistas vão também definir quais os animais criados nos centros de reprodução de Portugal e d\e Espanha que serão introduzidos na natureza e onde. Certo é que o serão em 2013 e o mais provável é que fiquem em território espanhol, onde levam uma década de avanço com trabalho no terreno.

Em Portugal ainda há muito a fazer no campo da gestão de habitats, reprodução de coelho bravo e sensibilização das populações. Apesar de a Liga para a Proteção da Natureza se dedicar ao lince ibérico desde os anos 80, com a famosa campanha "Salvem o lince e a serra da Malcata", e ter desenvolvido vários projetos de conservação desde 2003, o Estado só aprovou o Plano de Ação do Lince em 2008. Este Life Lince-Abutre "é uma das peças do puzzle que se está a montar para a reintrodução do lince no meio selvagem em Portugal", sustenta Lurdes Carvalho, a bióloga do ICNF que coordena o Plano de Ação. Há dez anos já pouca gente acreditava que fosse possível recuperar esta espécie no país. E não faltava quem falasse na extinção do lince.

€2,6 milhões de euros (75% comparticipados por Bruxelas) é o valor investido neste projeto (2010-2014), que visa criar as condições para conservar e recuperar a paisagem mediterrânica do sudeste alentejano e algarvio, considerada ideal para que o lince ibérico e o abutre-preto voltem a encontrar o habitat adequado para se reproduzirem em Portugal

CNRLI
Lynx pardinus É um mamífero, carnívoro da família dos felídeos e considerado o felino mais ameaçado do mundo

Características Animal de pelagem amarela acastanhada, salpicada de manchas negras, com orelhas terminadas em longos pelos em forma de pincel, longas patilhas brancas e negras, cauda curta com a extremidade preta

Longevidade 10 a 18 anos (em cativeiro)

Dieta alimentar Um coelho-bravo por dia, de preferência. Mas o facto de ser um gourmand tão esquisito quase lhe ditou a extinção, já que os coelhos foram (e ainda são) afetados por doenças como a mixomatose e a doença hemorrágica viral

Habitat ideal Matagal e bosque mediterrânico onde se misture a agricultura e a pastorícia. Existe em espaço selvagem em Espanha e apenas em cativeiro em Portugal, no Centro de Reprodução de Silves (na foto). As zonas de Moura-Barrancos, Vale do Guadiana e Serra do Caldeirão são locais de possível reintrodução

História No princípio do século XX, o lince ocupava toda a zona sul de Portugal. A campanha do trigo, nos anos 40; a eucaliptização gerada pela indústria da celulose, nos anos 70; e o abandono da agricultura foram reduzindo o seu habitat. Era um troféu de caça até 1967

 

Aegypius monachus É a maior ave de rapina da Europa e uma das maiores do mundo.

Existe sobretudo em Espanha, Portugal, França, Grécia, Bulgária, Turquia e Macedónia. Atualmente há cerca de dois mil casais na Península Ibérica, a maioria em Espanha. Por cá, as últimas contagens na Zona de Proteção Especial de Moura-Barrancos (na foto) e do Vale do Guadiana não vão além dos 40 indivíduos

Características Pesa entre 7 e 13 quilos e, de asas abertas, pode atingir uma envergadura de 2,80 metros. Tem uma plumagem uniforme castanha escura e a cabeça coberta por uma penugem que vai aclarando com a idade

Longevidade Pode viver até aos 20-25 anos

Dieta alimentar Consome mais de 200 kg de carne por ano, mas não tem de comer todos os dias