Cinema

António-Pedro Vasconcelos (1939-2024): “O meu mundo é a ficção”, revelou o realizador numa grande entrevista

Realizador de cinema, crítico dos mais apaixonados e feros, cinéfilo, adepto do Benfica, lutador de causas públicas, espírito livre e inquieto, o que diz sobre o cinema português não é consensual, mas merece ser ouvido e meditado. António-Pedro Vasconcelos morreu hoje, aos 84 anos. O Expresso republica uma entrevista ao realizador feita em outubro de 2018, semanas antes da estreia do seu filme “Parque Mayer”
Ana Baião

Nasceu em Leiria, em 1939. Quis ser pintor, romancista, mas apaixonou-se pelo cinema quando descobriu que estava aí o grande farol da ficção do século XX. Com onze longas-metragens no ativo, é hoje um dos mais proeminentes cineastas portugueses e um dos que melhor souberam conquistar os favores do público.

No início da década de 70, muitos de nós fixaram o seu nome quando se estreou, em 1973, o seu primeiro filme, “Perdido por Cem”. Foi um dos filmes que me fizeram pensar — cinema português?, interessa-me, e dura até hoje. Esse passado, para si, hoje, é um país muito distante?

Eu sou o mesmo. Sou é um dissidente daquilo em que a minha geração se transformou. O cinema que defendíamos, o cinema de que a gente gostava, mantém-se. Era o cinema como primeira arte pop universal (os filmes do Chaplin eram vistos em todo o lado), uma arte que pega no romance e na grande tradição da ficção ocidental (o Ford não existiria sem o Homero ou sem o Dickens), mas uma arte que não tinha de ficar presa aos grandes estúdios de Hollywood, que se podia transformar, como tinham feito o neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague. Isso é que nos fascinava. E, atenção: os neorrealistas nunca se afastaram do público e a Nouvelle Vague, a princípio, também não.

O Truffaut, o Chabrol ou o Godard não filmam com subsídios, se não tivessem público não filmavam…

Eles afirmam-se na indústria. E, tal como o neorrealismo, criam um star system.

Em Portugal vocês inventaram tudo.

Porque não havia indústria e o que havia estava antiquado. Por exemplo, no “Perdido por Cem…”, a câmara à mão do João Rocha e a cadeira de rodas em que ele se move não é porque eu quisesse fazer à maneira de Godard. O que eu queria era fazer à Preminger, mas não era possível.

Ana Baião

Chega ao cinema muito tarde, não era uma coisa de que gostasse aos doze ou treze anos.

Não. Nessa altura vivia em Coimbra e ia pouco ao cinema. Venho para Lisboa, aos catorze anos e, depois, para o Colégio de Santo Tirso, durante um ano, e só quando volto a Lisboa e vou para a Faculdade de Direito é que me interesso por cinema. Torno-me sócio e, mais tarde, dirigente do Cineclube Universitário e começo a escrever na revista “Imagem”. Mas interesso-me pelo cinema, a princípio através dos atores, o James Dean, o James Stewart, a Brigitte Bardot, o Montgomery Clift. É pelos atores que me começa a apetecer fazer cinema em vez de ser romancista. Tive a impressão de que a literatura, o trabalho solitário, ia trazer ao de cima o meu lado depressivo. E apeteceu-me o cinema porque o cinema filma a realidade. Quando leio “O Vermelho e o Negro” consigo imaginar o Julien Sorel; no cinema o ator esgota o personagem. No teatro cem atores já fizeram o Hamlet, no cinema o Rick do “Casablanca” é o Bogart e não há nada a fazer, está ali, vivo. O céu é um céu verdadeiro e os décors, mesmo quando são fabricados, tu acreditas neles. O meu mundo é a ficção. Comecei por gostar de ficção através do “Mundo de Aventuras”. Mesmo na pintura, o que sempre me atraiu foi a ficção…

... contar histórias...

... contar histórias a alguém. É o que fazia o Homero e o que fazia a Xerazade, é o que nos salva da morte. Sempre quis contar histórias. A primeira coisa que eu fiz foi uma banda desenhada, aos 18 anos, sobre a História de Portugal para o mensário das Casas do Povo. O meu pai era um homem do Regime e arranjou-me maneira de eu fazer isso. Precisava de ganhar dinheiro porque queria ir a Madrid ver o Velázquez.

Entretanto, querer fazer cinema em Portugal, sem indústria e sem escola, é complicado. Depois ganha uma bolsa da Gulbenkian e vai para Paris, no início dos anos 60.

Nós tínhamos um grupo no [café] São Remo, eu, o [Alberto] Seixas [Santos], o [Carlos] Saboga e o [João] César [Monteiro] a que depois, no Vává, se juntaram o Paulo Rocha, o Fernando Lopes e o Cunha Telles. Nesse grupo, o Seixas teve um papel fundamental, foi o primeiro a estar em Paris, a conhecer o André Bazin e o Jacques Becker, foi ele que nos deu a ler os “Cahiers du Cinéma”, foi ele que me fez descobrir o Rossellini.

Ana Baião

Ganharam ao mesmo tempo duas bolsas da Gulbenkian e foram juntos para Paris.

Paris marcou-me muito. As pessoas hoje não fazem ideia do que era o choque de mudar de Lisboa para Paris nos anos 60. Lisboa era uma cidade cinzenta, em Paris, de repente, havia pessoas a beijarem-se na rua, mulheres nos cafés a fumar, todos os livros à disposição, museus, a Cinemateca Francesa — onde vi tudo — foi uma experiência absolutamente incrível. Durante dois anos vi mil filmes por ano. Depois da estada em Paris, ainda nos anos 60, tentei fixar-me lá, fui a Itália tentar ser assistente do Rossellini e, depois, do Antonioni…

Mas acabou por voltar aqui, escrever em jornais, até que aparece a Gulbenkian a subsidiar a nova geração de cineastas, e é assim que faz o “Perdido por Cem...” Logo a seguir, a experiência do “Cinéfilo”, onde é chefe de redação e de que guardo memórias vivas, como a grande defesa do Rossellini de que o João Bénard da Costa, na Gulbenkian, faz uma grande e histórica retrospetiva…

A retrospetiva do Rossellini, em 1973, foi um indício de rutura na nossa geração. Porque o Alberto Seixas Santos tornara-se um straubiano, um fervoroso adepto do Godard pós-68, e ele que era um antifascista, mas apolítico, de repente torna-se um fervoroso maoista. Quando vem a retrospetiva do Rossellini e ele arrasa-o. Do lado do Rossellini ficámos eu e o César.

Há outra intervenção sua no “Cinéfilo” que nunca mais esqueci, um artigo quando “A Promessa” do António de Macedo estreou, em que desanca o filme de cima a baixo num fero exercício de crítica cinematográfica.

É um texto que não devia ter escrito. Não que esteja em desacordo com o que escrevi, mas não devia escrever sobre o filme de um colega — a não ser que gostasse do filme. “A Promessa” revoltava-me um pouco, nunca gostei dos filmes do Macedo, mas não devia ter feito aquilo.

Eu conheci-o, pessoalmente, como um dos líderes do primeiro levantamento contra o Governo de Vasco Gonçalves, na célebre reunião das Caldas da Rainha em que a maior parte do sector cinematográfico disse declaradamente Não! ao poder político em 1975. Depois disso, a sua primeira intervenção marcadamente política é quando você é um dos dirigentes da campanha televisiva de Mário Soares nas presidenciais de 1986. Como é que aconteceu?

Nessa altura percebi que o que a direita queria instalar em Portugal – e que só conseguiu com Passos Coelho — era algo que punha tudo em jogo. E percebi que, dos três candidatos da esquerda, Soares era o único que poderia bater Freitas do Amaral na segunda volta, porque iria buscar votos do centro, coisa que nem Salgado Zenha nem Maria de Lourdes Pintasilgo conseguiriam. Politicamente quem definiu a campanha fui eu, o Vasco [Pulido Valente], o Alfredo [Barroso] e o [António] Barreto. Essa campanha foi, provavelmente, a coisa mais gratificante e importante que fiz na minha vida, porque se viam, todos os dias, os resultados do que se estava a fazer.

Mas o que é que fazia concretamente?

Para um cineasta a coisa mais gratificante é ter um bom argumento e um bom ator. Eu tinha o melhor ator e os melhores argumentos. O que é que decidi? Primeiro, que a campanha fosse em vídeo, porque tínhamos de poder responder diariamente. Se fosse em película, os tempos de produção seriam fatais. Na altura nem havia, teve de vir uma equipa de França. E disse a Soares: o senhor vai tirar da rua os cartazes sorridentes, na Presidência um amigo e essas coisas. Eu vou fazer-lhe um cartaz a preto e branco, como fez o Churchill. Outra coisa que impusemos: escrever-lhe os discursos. Ele é que os aprovava, mas iam escritos. E gravávamos com teleponto. Tudo isto para ele era estranho. Soares reagiu: “Teleponto? Eu sou um homem de improviso”. Disse-lhe: “Na rua, na campanha, o senhor improvisa. Ali, na televisão, são dez segundos, são vinte segundos, tem de ser escrito”. Uma última coisa: “Na primeira volta, enquanto não conquistar a maioria dos votos à esquerda, vai aparecer muito pouco na televisão”. “Não vou aparecer?” — escandalizou-se ele, “mas eu é que sou o candidato!”. “Não, não vai, os outros é que vão falar de si. O senhor vai fazer apenas discursos cirúrgicos”. Só houve um discurso grande, foi no fim da primeira volta, o último tempo de antena. O Vasco é que o escreveu, começava com “eu tenho 61 anos”, fiz isto e aquilo e eu tive a ideia da frase “os portugueses conhecem-me”. Estava tudo muito nervoso no dia da gravação, Soares tinha de ir para o Porto. Começámos a gravar e Soares diz, “tenho 60 anos” e eu “corta!” e paro a gravação. “O senhor doutor enganou-se, tem 61, não pode mentir” — e foi uma luta, ele achava que dizer 61 era ridículo. Depois acabei por convencê-lo com o “mille e tre” do “Don Giovanni”, são mil e três amantes, se ele disser mil está a mentir. Lá começámos a gravar e, mais à frente, havia um momento em que ele dizia “bati-me pelos direitos do Homem” e quando chegou a esse momento diz “bati-me pelos direitos do homem e da mulher”. “Corta!”, já ia meio do discurso. Soares passou-se: “Mas o que é que eu disse mal?!”. “Ó senhor doutor, direitos do homem e da mulher, mas o que é isso?”, e ele respondeu-me “disseram-me que eu tinha falado pouco das mulheres”. “Se quiser, escrevemos-lhe um discurso sobre as mulheres, mas agora não confunda”. Foi uma cena… Mas a experiência dessa campanha foi extraordinária.

Não tornou a fazer uma campanha eleitoral…

Tornei, a pedido dele, a campanha do Constâncio para as legislativas. Eu disse-lhe que não acreditava no candidato, mas Soares achava que o PS não podia ter uma grande derrota e que tínhamos de ajudar o Constâncio. Não serviu de nada.

Entretanto, não tem qualquer cargo de nomeação política por parte do PS, é o cavaquismo que o nomeia…

Nos finais dos anos 80, eu tinha escrito vários artigos a defender uma política integrada para o cinema, o audiovisual e as telecomunicações. É com base nesses artigos que recebo um convite do Pedro Santana Lopes dizendo-me que iriam criar o Secretariado para o Audiovisual, até porque estava em marcha o Programa Media do Comunidade Europeia. Eu disse que aceitava se eles estivessem de acordo com o meu programa. Escrevi-o, o Cavaco concordou, nomearam-me. Trabalhei durante um ano e meio, trouxe para Portugal os programas Scale e Lumière, do Media, mas quando percebi que ele não conseguia juntar os ministros que tratavam da televisão, das telecomunicações e do cinema, demiti-me. Depois trabalhei com o João de Deus Pinheiro que era comissário europeu, que me encarregou de presidir a um grupo de trabalho para fazer o Livro Verde sobre a situação do cinema europeu.

É depois disso que se torna comentador desportivo encartado — pelo Benfica. Com é que acontece?

Comecei por escrever artigos sobre futebol, porque tinha lido um livro do Nelson Rodrigues de crónicas sobre futebol e fiquei entusiasmado. Naquela época, a meio dos anos 90, pensei mesmo que a minha carreira como realizador de cinema tinha acabado. Aconteceu que eu fora convidado pelo Eurimages, na sua reunião anual, em Paris, a fazer uma comunicação — e fui lá dizer que o cinema europeu não podia dispensar a intervenção do Estado, mas que essa intervenção não podia ser sob a forma de subsídios, devia ser com estabelecimento de obrigações e complementos de financiamento, medidas de regulação, incentivos fiscais, etc. O cinema devia ser deixado aos produtores e à sociedade civil. A Zita Seabra [presidente do Instituto Português da Arte Cinematográfica e Audiovisual], que era uma das pessoas que estavam na reunião, quando saímos para o almoço encontrou-me e disse-me: “Gostei muito de saber que você é contra os subsídios, fique já a saber que, se pedir algum subsídio, eu vou chumbar”. Fiquei a olhar para ela uns segundos e percebi que ela estava a falar a sério. Eu tinha tido o azar de, quando ela me foi substituir no Secretariado para o Audiovisual, ter ido almoçar ao Pap’Açorda e ter encontrado a Helena Vaz da Silva e o João Amaral. A Helena perguntou-me se eu já sabia quem me iria substituir e quando eu disse que era a Zita Seabra, ela gritou “e não disseste nada?”, eu retorqui: “Estou muito aliviado. Logo de manhã tinham-me dito que era o Eusébio”. O João Amaral achou imensa graça e pôs o dito em “O Independente”. Lixou-me. A Zita soube e fez-me uma perseguição de morte.

Teve de fazer pela vida…

Primeiro pensei em ir viver para Paris, mas não era fácil, apesar dos contactos que lá tinha. O Vasco [Pulido Valente] estava a dirigir o suplemento de “O Independente” e convidou-me a escrever lá — sobre futebol. Mais tarde publiquei as crónicas em livro — “Porque é que as Mulheres não Gostam de Futebol? [ed. Oficina do Livro, 2001]. Depois fui convidado pela SIC...

... e começa a falar sobre futebol na televisão pelo Benfica. Estava a representar o Benfica, tinha um contacto regular com o clube?

Zero.

Cai em cima da crise Vale e Azevedo…

Na SIC, eu arrasava o Vale e Azevedo e foi dramático, nem podia ir ao estádio. Eu ia à SIC e tinha um carro atrás que me perseguia até Carnaxide. E tinha telefonemas, foi uma coisa horrível. Depois saí e a SIC também não me queria, porque a SIC tinha apostado no Vale e Azevedo. O Rangel dizia que podia eleger um presidente e elegeu — o presidente do Benfica.

Mais tarde, entre 2004 e 2011, vai para a RTP, inaugurar o “Trio d’Ataque”…

Tivemos um programa ultracivilizado durante anos, mas para o fim, quando o Benfica volta a ganhar campeonatos, com o Jorge Jesus, entrou num clima horrível. Nessa altura eu já tinha um contacto maior com a direção do clube, mas sempre falei pela minha cabeça, completamente independente. O comentário desportivo foi uma atividade que, basicamente, foi o meu principal modo de vida durante esse período.

Quando eu vi a intenção do Governo de privatizar a RTP, demiti-me em direto, dizendo que o que o Governo queria fazer era um crime, não há nenhum país na Europa que não tenha um serviço público de televisão e anunciei que ia defender o serviço público da RTP e me ia embora para que não houvesse conflito de interesses.

Entretanto, chega o Governo de Passos Coelho…

Quando eu vi a intenção do Governo de privatizar a RTP, demiti-me em direto, dizendo que o que o Governo queria fazer era um crime, não há nenhum país na Europa que não tenha um serviço público de televisão e anunciei que ia defender o serviço público da RTP e me ia embora para que não houvesse conflito de interesses.

Essa sua intervenção pública a favor da RTP foi apenas uma de várias bandeiras que tem empunhado nos últimos anos. Houve a TAP, a exploração de petróleo no Algarve, o Acordo Ortográfico…

Considero que é uma obrigação que todos os cidadãos têm, mas ainda mais as figuras públicas, de se baterem por causas que não são do seu interesse imediato. Para mim, é natural. O meu sonho era ter uma associação em que todas as pessoas que têm visibilidade pública, cantores, escritores, atores, entrassem — e cada um era a cara de uma causa.

Você tem uma carreira longa, mas só a meio dela começa a rodar filmes de um modo, digamos, canónico…

Sim, com o “Aqui d’El Rei!” [1991]. Foi o primeiro filme com um argumento a sério… E um argumento a sério é essencial, porque facilita o trabalho de todos, da pessoa que trata dos décors, do figurinista, do diretor de fotografia, todos. Os meus primeiros filmes [“Perdido por Cem...” (1972), “Oxalá” (1980)] são filmes improvisados, “O Lugar do Morto” [1984] já tem um argumento, mas não um argumento clássico, porque eu não tive uma formação clássica. Até aí os meus filmes foram sempre aventurosos. E, depois, eu era o meu próprio produtor e não pode ser. Só vi um verdadeiro plano de trabalho com o “Aqui d’El Rei!”.

Com a dimensão de produção, os décors, o guarda-roupa de época, a quantidade de atores, filmado em 35 mm, se não fosse a sério era impossível…

Foi um orçamento que, traduzido para agora, seriam vinte milhões de euros. O cinema é muito caro. Mas acabei de fazer um filme [“Parque Mayer”] que custou um milhão e cem mil.

Sempre num sistema em que os subsídios são essenciais.

Vivemos num país com a aberração de o cinema viver dos subsídios de Estado. Só na Coreia do Norte é que o Estado decide quem é que filma. E as pessoas acomodaram-se a isso, os críticos, a opinião pública, os políticos…

... os próprios cineastas...

Claro! Acomodaram-se. Foi uma coisa criada por Marcello Caetano. A Gulbenkian tinha dado dinheiro ao cinema português, dinheiro e liberdade. A Lei 7/71 veio dar dinheiro, mas tirou a liberdade. Ninguém aceitaria que o Estado dissesse que este ano quem escreve um livro é a Lídia Jorge, o Lobo Antunes só para o ano — ninguém aceitaria, fazia-se uma revolução.

Isso só acontece porque o cinema é caro e, em Portugal, só é possível com dinheiros públicos.

Mas não tem de ser assim. Bastava que, em vez de fazer os operadores pagar uma taxa que o Instituto de Cinema administra, lhes criasse obrigações e deixasse o mercado funcionar. Além disso devia pôr dinheiro do Orçamento do Estado no cinema — que não põe. Para quê? Para pagar a Cinemateca Portuguesa, a estrutura do ICA e complementar financiamentos à produção. Complementar, não financiar em exclusivo. E para apoiar projetos mais difíceis, como primeiras obras, o que seria fácil de contratualizar com produtores, produtores que tenham capacidade de risco.

E há?

Não. Mas não há porque não pode haver.

Ana Baião

Acha mesmo que o mercado pode funcionar para o cinema português e que o público é que é o essencial?

Claro. O mercado impede o Jorge Palma, a Ana Moura ou o Sérgio Godinho? Não impede, porque é que no cinema se acha que o mercado impede a qualidade? E, depois, qual é o grande prazer deles? É ter o Coliseu cheio, é ver que as pessoas sabem as canções de cor, é o público. Eu posso não fazer mais nenhum filme, mas no que acabei de fazer [“Parque Mayer”, estreia em dezembro] há uma coisa que é o meu testamento. É um tipo que leva uma miúda que quer ser atriz ao palco, com a plateia vazia e lhe explica o prazer que ela vai ter quando o teatro estiver cheio. É o melhor diálogo que já escrevi. Escrevi-o a meias com o Tiago [R. Santos], mas é uma coisa muito pessoal. É o Renoir, é o “French Cancan”. Faço filmes para o público? Nem penso nisso. Mas penso sempre: como é que transmito esta emoção? Como é que o público vai perceber? Como é que o público vai estar do lado desta personagem? Eu sou um homem de esquerda, sempre fui. Ando ali na área do PS, mas tenho simpatia por muitas coisas que o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista defendem. E não me canso de dizer à Catarina Martins, com quem até me dou bem: “Vocês no Bloco de Esquerda gostam muito do povo, mas não gostam nada do público. Expliquem-me como é que isso pode ser”. Sem mercado, como é que os meus filmes podem chegar às pessoas? Não é uma coisa pessoal, é porque eu acredito que o que tenho a dizer, sobre o trabalho infantil, sobre o triunfo do capitalismo, sobre os velhos e os jovens que são marginalizados, é importante. Enquanto as pessoas corresponderem, eu sinto que devo continuar a filmar. Não reclamo ter sempre subsídio, mas quero continuar enquanto achar que tenho coisas importantes para dizer.

E qual é, então, o próximo filme?

Chama-se “A Fada do Lar”.

É um título de “Crónica Feminina”...

É irónico. Passa-se num lar de idosos. Eu conheci muitos lares de idosos porque o meu irmão Luís, que morreu, esteve em vários lares, ele tinha diabetes, depois ficou cego, perdeu uma perna, e andou muito entre hospitais e lares, e eu acompanhei isso tudo. E vi o pior e o melhor dos lares, há coisas horríveis e outras extraordinárias. Houve outra coisa que me inspirou, os últimos anos da Milu, que acabou sozinha, ignorada — a maior parte das pessoas até pensava que tinha morrido. Eu peguei nela e levei-a ao palco do Coliseu, num espetáculo dos Xutos & Pontapés, para verem a menina que primeiro cantara “A Minha Casinha”. Não te vou contar o filme, mas há um personagem improvável — eu gosto muito de personagens improváveis — uma rapariga que vai parar a tribunal e a pena que o juiz lhe dá é fazer trabalho social, ir trabalhar para um lar. É a pessoa que menos se espera que se interesse pela situação dos internados, pela maneira como são tratados — e vai fazer uma revolução.

A propósito de velhice, como é que olha para a sua idade?

Nunca pensei em deixar de trabalhar, porque gosto do que faço. Sempre ganhei a vida à minha custa, não tinha meios e sempre prezei a minha liberdade, fazer aquilo de que gostava. Não fiz tudo o que gostava, mas nunca fiz nada de que não gostasse ou que desaprovasse. Portanto, enquanto me sentir capaz física e mentalmente, gostaria de continuar a fazer filmes, que é aquilo que me dá mais gozo na vida. O Mitterrand dizia que a velhice é uma humilhação, mas eu, quando falo com os meus netos ou com tipos mais novos, sinto que não tenho idade, tenho a mesma idade que tinha aos vinte anos. O problema é que o corpo já não acompanha.

Como é que vê o futuro do cinema?

De certa maneira, não me preocupa o futuro do cinema, preocupa-me é o futuro do Ocidente. Estamos perante uma revolução sem paralelo, a revolução do digital e da globalização é brutal. Todas as grandes revoluções anteriores, os Descobrimentos, a da imprensa, a revolução industrial — todas elas tiveram custos absolutamente colossais, séculos de guerras, ditaduras, sangue. Tem-se o sentimento, hoje, de que o mundo está desgovernado e que tudo pode acontecer. E os declínios das civilizações foram sempre acompanhados pelo declínio da ficção. A mim o que me preocupa é o futuro da ficção.