Fosse Portugal um país com uma indústria cinematográfica mais abastada e já a maior figura da democracia portuguesa teria tido direito a um filme biográfico, ou vários. Talvez por isso já seja meritório “Soares é Fixe”, com estreia a 22 de fevereiro e antestreia já esta quinta-feira. Mário Soares faria 100 anos no próximo dia 7 de dezembro.
Centrada nas eleições presidenciais de 1986, com flashbacks aos anos 70, a obra de ficção inspirada na realidade marca mais pontos na reconstituição de época do que nas personagens, mormente o protagonista, e mesmo no enredo. Este é um registo de impressões a não confundir com crítica de cinema, que nenhum dos signatários se diz habilitado a fazer.
Realizado por Sérgio Graciano com argumento de João Lacerda Matos — a mesma dupla que assinou “Salgueiro Maia, o Implicado” — este “Soares é Fixe” centra-se na campanha eleitoral para a segunda volta das presidenciais em que o socialista derrotou Diogo Freitas do Amaral. O projeto inclui uma série televisiva que abordará mais longamente a vida do ex-chefe de Estado e do líder histórico do PCP, Álvaro Cunhal.
“Estamos em 1986, passaram apenas 12 anos desde o 25 de Abril. A esquerda está dividida e a direita parece caminhar para uma vitória fácil, que lhe dará um Presidente e um governo. O único capaz de impedir que esse projeto se conclua com sucesso é um homem que lutou, toda a sua vida adulta, contra o Estado Novo. Preso dezenas de vezes, deportado e exilado, foi um dos primeiros a chegar a Lisboa depois da Revolução dos Cravos. Esse homem é Mário Soares”, escreve-se na apresentação do filme.
O que temos, para já, é um filme de gabinete — ou de gabinetes, não raro cheios de fumo, como se usava na década de 80, e onde decorria a conspiração política — com um Soares mais introvertido e menos descontraído do que o homem que os portugueses viram desafiar e enfrentar toda a espécie de combates políticos, até quase ao fim da vida. Interpretado por Tonan Quito, faltam ao então candidato a Presidente os proverbiais otimismo e bonomia, que cultivava sem escapar por vezes à irascibilidade. Em hora e meia não se lhe ouve uma risada. Do elenco fazem parte, entre outros, Tiago Fernandes como Freitas do Amaral, Miguel Mateus como João Soares e Tiago Correia como Marcelo Rebelo de Sousa.
A falha será mais do argumento do que do desempenho, mas é notória, sobretudo para quem, como um dos que subscrevem esta prosa (declaração de interesses), conviveu de perto com o retratado e foi seu amigo, por via familiar. Nervoso até ao fim, sem confiança na vitória, é difícil crer que o homem que ali vemos se atrevesse sequer a entrar na corrida com os 7% ou 8% que as sondagens começaram por atribuir-lhe. Na vida real, até na terceira candidatura a Belém, votada ao fracasso desde o começo, Mário Soares destilava positividade em cada momento.
Pouco ambiente de campanha
Se é certo que há a preocupação de dar contexto histórico sobre o percurso de Soares (daí os salpicos da fundação do PS ou do PREC e certas falas que soam pouco naturais mas são didáticas na boca de intervenientes), sobre a disputa de 86 pouco se diz. Vê-se que o país está dividido e que a polarização preocupa os candidatos, mas nunca fica claro porque partiu Soares para a corrida em clara desvantagem para o adversário conservador — apoiado por um primeiro-ministro popular e em ascensão, Cavaco Silva, aliás ausente do ecrã — nem como escalou a montanha da popularidade e da confiança do eleitorado até aos 51%-49% da meta.
Trilhando o difícil caminho da ficção próxima dos acontecimentos e da memória de muitos, “Soares é fixe” tem bons interiores, mas muito pouco ambiente da campanha. É provável que tal se deva a compreensíveis restrições orçamentais, que explicariam a caracterização de certas figuras. Não é fácil reconhecer personagens tão atuais como António Guterres ou Miguel Sousa Tavares, e há um Proença de Carvalho que mais parece o jovem Marcelo Rebelo de Sousa.
Tendo em conta o título e o interessantíssimo combate escolhido para mote, sente-se a falta das arruadas, dos beijos às peixeiras, do brilho nos debates, armas preciosas para levar Soares a Belém. Se o slogan foi arrojado num Portugal ainda muito cinzento, teria sabido bem ver na tela a dessacralização do poder que já então Soares encarnava ou, pelo menos, ouvir os hinos das duas campanhas, que tanto penetraram o ouvido de adultos e crianças. Até o episódio da Marinha Grande, decisivo na primeira volta, fica limitado a uma referência no telejornal.
Maria de Jesus era mais do que isto
Por falar na primeira volta, o filme aflora a amizade e zanga entre Soares e outro adversário de 1986, Francisco Salgado Zenha, ex-camarada socialista. Teria dado mais tempo a esta intrigante história ou às angústias dos comunistas entre primeira e segunda volta, e bem menos a narrativas colaterais que cedo se extinguem, como a de uma mulher-mistério que salta portões ou a de outra família de apoiantes, que mais bem exploradas podiam ter chegado algures.
A personagem de Maria de Jesus Barroso é bem construída por Margarida Cardeal, mas de novo o argumento não é generoso com aquela que nunca foi apenas a companheira de Soares. As suas falas ficam aquém da mulher que sempre combateu pela liberdade e fez, em 1986, campanha separadamente do marido, por ser uma mais-valia. Aqui parece alguém sem pista própria.
Feitas as contas, aplauda-se a iniciativa e o potencial de o filme despertar curiosidade sobre um período já ilustrado na série “1986” da RTP — cujo arquivo tem muito desta época —, essa mais centrada em jovens e nas referências culturais de então. É bom que haja filmes sobre o nosso passado recente, da guerra colonial aos alvores da democracia. É mesmo indispensável.