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Mario Vargas Llosa (1936-2025): "A literatura cria cidadãos críticos, que não se deixam manipular", disse ao Expresso em 2020

Há cinco anos, o escritor peruano Mario Vargas Llosa, Nobel da Literatura em 2010, conversou com o Expresso longamente a partir da sua casa em Madrid, Espanha. O livro “Tempos Duros”, que então editava, serviu de pretexto a uma entrevista sobre a paixão da literatura e a História da América Latina, que dizia ter começado a compreender quando o passou a ver de longe
Marcos Borga

Entrevista publicada originalmente a 30 de outubro de 2020

Encontrou um tema que o fez perder a cabeça, um puzzle no qual se misturam democracia, golpe de Estado, militares, a CIA, assassínios, conspirações e amores proibidos. E não pôde deixar de o escrever. Quatro anos depois de “Cinco Esquinas”, Mario Vargas Llosa regressa com “Tempos Duros” (Quetzal), um romance histórico situado na Guatemala de 1954, aquando do golpe de Estado de Castillo Armas ao governo democrático de Jacobo Arbenz. Neste livro, que recorda a estrutura narrativa complexa de “Conversa na Catedral”, os Estados Unidos conspiram em plena Guerra Fria para depor um presidente eleito e substituir uma democracia por uma ditadura na América Central, com o apoio de uma empresa tentacular e não em vão apelidada de “Polvo” — a United Fruit. A partir deste microcosmos, o escritor peruano, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 2010, aproveita para falar da História latino-americana, do destino daquele continente, do modo como as fake news — que sempre existiram — podem destruir um país.

Mario Vargas Llosa conversou com o Expresso longamente desde a sua casa em Madrid. Explicou o livro escrito com o fôlego invejável dos seus 84 anos. Confessou ter muitos projetos, ele que gosta de organizar a vida como se fosse viver eternamente. Contou como a literatura ainda o apaixona, como nunca deixou de o apaixonar, mesmo na altura em que não podia viver dela. E decifrou a sua América Latina, o continente que tantas vezes descreveu nos seus livros e que começou a compreender, diz, quando o viu de longe.

Escreve sobre a Guatemala na altura em que o país era uma ilha democrática no meio de ditaduras. Porque é que este tema lhe interessou?

Tenho memórias sobre esta fase. Estava na universidade, em Lima, e o caso da Guatemala era muito falado entre nós, porque Jacobo Arbenz, que era um coronel, tinha sido eleito Presidente da República democraticamente, numas eleições limpas. Ele iniciou de imediato uma série de reformas, seguindo todos os procedimentos legais — as leis eram aprovadas no parlamento. Um dos pontos fundamentais do seu programa era uma reforma agrária, mas não de tipo comunista, nem sequer socialista. Era uma reforma agrária capitalista. Destinava-se a nacionalizar aquilo a que chamavam as ‘terras vazias’, ou seja, a terra que não estava a ser cultivada nem era usada pelos latifundiários e, em especial, pela United Fruit. Esta era uma empresa norte-americana que possuía grande parte dos terrenos da América Central, das ilhas do Caribe e, inclusive, da Colômbia. Portanto, a lei da reforma agrária de Arbenz referia-se só a estas terras sem uso, que foram nacionalizadas pagando aos proprietários o valor que eles próprios haviam declarado nos impostos. A United Fruit, sediada em Boston, ficou preocupada com o efeito de contágio que esta medida pudesse ter noutros paí­ses da sua órbita. Então, incorporou no conselho executivo da companhia uma personagem incrível: Edward L. Bernays, sobrinho de Sigmund Freud, que se autoproclamava o “rei das relações públicas”. Era um homem elegante e poliglota, que seduziu reitores universitários e donos de jornais e de revistas, e que, numa apresentação — tudo isto está hoje publicado nos EUA — aos acionistas da United Fruit, disse: “Nos EUA, ninguém sabe onde é a Guatemala, por isso, precisamos de educar o povo para que o Governo acredite que, naquele país, existe um problema. Porém, como o problema não existe, vamos inventá-lo.”