A vida real sempre alimentou a arte de Kanye West. ‘Through the Wire’, o seu primeiro êxito, capitalizou na traumática experiência de um acidente de viação em 2002 que resultou na fratura do maxilar que teve que ser, muito literalmente, cirurgicamente unido com arames. De igual forma, “Donda 2”, o seu novo álbum, parece centrar-se no descarrilamento do seu casamento com Kim Kardashian. Esses dois exercícios de transformação de episódios reais em arte foram ambos pretextos para apresentações públicas. No primeiro caso, o videoclipe realizado por Coodie & Chike — a mesma dupla que agora assina o tríptico “jeen-yuhs”, documentário exibido internacionalmente na Netflix — mereceu em 2003 estreia numa sala onde se reuniram 150 pessoas que o viram num simples ecrã de televisão.
Já o novo álbum teve no final de fevereiro de 2022 uma sessão de audição antecipada no LoanDepot Park em Miami, perante milhares de pessoas que esperam a chegada da estrela ao som de um batimento cardíaco difundido através do sistema de som... durante duas horas. Depois, o rapper, integralmente vestido de preto, entrou em palco enquanto uma réplica da casa em que cresceu, em Chicago, ardia. Ao seu lado estiveram estrelas como 2 Chainz, Pusha T, Jack Harlow ou, entre outros, o controverso Marilyn Manson. O que separa os dois eventos e o que justifica as respetivas escalas são duas décadas de intenso crescimento que viram Kanye West tornar-se um dos maiores fenómenos culturais do globo. Os dois episódios já estreados de “jeen-yuhs” focam-se no início dessa retumbante história de sucesso e têm o mérito de recordar ao mundo que o mesmo homem que hoje canta “keep the flowers, sent a hundred thousand” (num tema com o nada romântico título ‘Fuck Flowers’, referindo-se ao camião de flores que enviou a Kim Kardashian no Dia de São Valentim) é o mesmo que em ‘Through The Wire’ questionava: “How do you console my mom or give her light support/ Tellin’ her her son’s on life support?”