Cultura

João Onofre: “Os artistas sempre se utilizaram uns aos outros”

Nos últimos 20 anos, João Onofre (Lisboa, 1976) criou uma das obras mais desafiadoras do panorama artístico português e uma carreira internacional sólida. No momento em que a Culturgest Lisboa lhe dedica a exposição antológica “Once in a Lifetime [Repeat]”, fala ao Expresso dos meandros do seu programa artístico, do meio português e das referências que animam o seu trabalho como a imagem em movimento ou o princípio performativo

JOSÉ CARLOS CARVALHO

Que importância tem para si uma exposição antológica nesta altura da sua carreira?
Tem alguma importância. A última exposição mais alargada que eu tive em Portugal foi em 2003, no Museu do Chiado. Faz sentido mostrar o trabalho que desenvolvi ao longo destes quinze anos de uma forma mais orgânica. Até agora fiz cerca de 250 exposições, 36 individuais e mais de duzentas coletivas, por toda a Europa e América. Interessa-me encontrar uma visão de conjunto da obra mas não no sentido retrospetivo, o que me parece cedo. Isso ajuda a perceber os seus elementos essenciais, que são transversais apesar da utilização de vários media, como o papel da performance que é um espectro que está em todos os trabalhos: na performatividade da execução dos desenhos; em todos os vídeos de performance delegada; a ideia de pós-produção; os conceitos de repetição e duração. São coisas que se percebem como constantes.

Essa presença da performance com frequência acontece como exercício de inadequação ou de distorção de uma situação prévia...
Os trabalhos partem quase todos de um guião conceptual, chamemos-lhe assim, no qual há uma ação preestabelecida mas depois com o desenrolar dessa ação tornam-se imprevisíveis. Há uma espécie de indeterminação programática. O exemplo claro disto é o vídeo com o abutre [“Untitled (Vulture in the Studio)”, 2003]. Eu largo o animal no ateliê mas não sei o que vai acontecer depois. Interessa-me criar possibilidades em que não sei como essa indeterminação se vai manifestar.

Outra ferramenta recorrente é a tradução. Pensa nela como um motor criativo?
É um pouco a ideia do Paul Ricoeur, a tradução como traição e acolhimento, como é que uma coisa é acolhida quando passa de uma língua para a outra. Não é só o programa da apropriação, é pós-produção. É considerar que há um determinado tipo de objetos que estão no domínio da esfera cultural e que podem ser retrabalhados.

A utilização da linguagem é outro fator importante no trabalho, um pouco à maneira da exploração e análise da linguagem no conceptualismo dos anos 70, sente-se herdeiro desse contexto?
Sem dúvida. No caso da linguagem isso é evidente. Por exemplo, com os desenhos há um pensamento da linguagem como matéria. Aquilo é muito performativo porque vemos o que está lá descrito como no início da série “Pen Running Dry”, que é uma expressão que dá conta da falta de inspiração do artista ou do compositor mas, ao mesmo tempo, vê-se a caneta a gastar-se, vemos o processo, é um objeto performativo. Ou a série dos desenhos “Turbo” em que pego na frase da Gertrude Stein, “five words in a line”, e a estendo além dos limites descrevendo a fonte e o tipo de papel e depois ponho um elemento da cultura popular que é o turbo o que cria um curto-circuito com a lógica muito descritiva do trabalho. Acaba por ser um jogo em linguagem.

Os temas do amor, da atração, da impossibilidade, da perda estão muito presentes no seu trabalho. Às vezes com ironia mas sempre sem cinismo.
É verdade que há um pensamento sobre a finitude e sobre o fracasso. O amor talvez seja mais circunstancial. Essa ideia pode lá estar mas não é um motor que pese na realização dos trabalhos.

A música é um campo com o qual gosta de flirtar, que potencial lhe identifica?
A música surge pelo facto de ela, em termos gerais, já estar no imaginário do espectador. E nesse sentido é uma ferramenta plástica muito interessante, porque ao trabalharmos com algo que já está no imaginário encontramo-nos logo com ele. Isso desencadeia imediatamente uma reação e ajuda a conduzi-lo para o lugar mais especulativo em que quero situar a obra.

Há inúmeras referências e citações a outros artistas como Bruce Nauman, John Cage, ou Tony Smith. Isso corresponde ao desejo de explicitar uma genealogia?
Eu diria que é matar o pai [risos]. É trazer elementos que considero importantes e que me fazem refletir e trabalhar a partir deles, estendendo-os ou acrescentando-me a eles. Como as canções pop, eles já estão no imaginário coletivo da história da arte. São os nossos problemas permanentes. Há aí um diálogo com a história. É uma partilha, uma cultura de uso. Na verdade, os artistas sempre se utilizaram uns aos outros, mesmo antes do século XX.

A imagem em movimento é a sua matéria primordial, tem ideia de porque é que isso é assim?
Eu acho que a imagem em movimento com som é uma das ferramentas plásticas mais fortes que existem. A intervenção que apresentei no MAAT [“Untitled (Orchestral)”, 2017] ou a dos excertos das respirações do Carlos Paredes [galeria Appleton Square, 2016] são também evocativas do ponto de vista visual mesmo não tendo imagem.

E o desenho, que importância lhe atribui no contexto geral da obra?
O desenho começou por ser algo que eu fazia enquanto as condições de produção não se reuniam para fazer obras em vídeo. E por isso era algo que eu tinha mais capacidade de determinar individualmente. Sentia uma pulsão para ir para aí. Devo ter começado em 2005 a fazer coisas em suporte de papel e uns objetos, classificados e fotocópias. Era qualquer coisa que eu podia controlar ou controlar um pouco mais.

O ateliê está muito presente nas obras, até visualmente. Porquê?
O ateliê foi sempre um lugar importante para as vanguardas, é o lugar de produção da obra, que nunca é mostrado. Interessava-me fazer as coisas um bocado fora dessa lógica, quebrar as fronteiras entre o visível e o que permanece resguardado.

Tem mais de 20 anos de produção artística, alguma coisa mudou na sua relação com a arte nestes anos?
Talvez esteja mais criterioso no consumo de arte, mais crítico em relação a certas propostas nacionais e internacionais. Veem-se muitas derivações e muita coisa menos bem conseguida. A partir de 2008, o mercado de arte ficou altamente conservador e como eu considero que a arte ou é experimental ou não é arte vejo isso com muito maus olhos.

E em relação ao meio artístico português, o que mudou nos últimos 20 anos?
Está bastante diferente. Desde 2000 que há muito mais galerias a trabalhar com arte contemporânea. A qualidade das propostas e o nível das galerias subiu, também porque era incipiente até então. E em relação às instituições, havia Serralves, que já era uma instituição de referência. Mas a Gulbenkian tornou-se muito mais profissionalizada com um programa muito mais ritmado, como deve ser; o próprio Museu Berardo, melhorou com o Pedro Lapa. Mas, de um modo geral, tirando Serralves, as nossas instituições não competem com as europeias. As nossas estruturas institucionais estão todas esmagadas financeiramente.