Há um rapper que arregaça as mangas numa loja de roupa masculina e, de costas para um expositor de camisas de executivo, canta um 'hip hop' intervencionista, de rua. O estabelecimento está à pinha. O público do Festival Tremor tomara de assalto a 'Londrina', no centro histórico de Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, nos Açores. O momento é inusitado, estranho até, mas acima de tudo fascinante.
Aquele espaço de bem trajar passa também a ser um espaço de bem tocar. Um pequeno instante que é tudo. "Isto está bom. Isto está bom.", deixa escapar o orgulhoso Carlos Sá, o proprietário do estabelecimento há mais de 40 anos neste ramo. Entre fatos de homem, pullovers, gravatas e camisas para cavalheiros a multidão agita-se ao som d´O Gringo Sou Eu, com as letras aguçadas de Frankão (sambista, funkeiro, rapper) a remexerem feridas sociais com o melhor 'beat'. "É tudo falso, é tudo 'fake', é tudo truque. Pessoas só são felizes no Facebook". Show de bola com sotaque brasileiro.
As pessoas saem dali e dividem-se entre os dois concertos que arrancam de seguida, quase em simultâneo. Os Killimanjaro, três rockers de Barcelos com som 'heavy metal' que faz subir às alturas com a sua potente batita atuam no restaurante Casa da Rosa.
E, quinze minutos depois, o restaurante típico "Solar da Graça" tem as mesas e as cadeiras arredadas para acolher a atuação de Julianna Barwick, a americana nascida no Louisiana e descoberta em Brooklyn, Nova Iorque. Os olhos fecham-se. Os corpos embalam-se devagar. O momento convida a silêncio e instrospecção. A voz aveludada de Barwick, cheia de efeitos e reverberações, soa a uma dança de sereias ou a um canto de baleias que ecoa por paisagens belas e longínquas.
A maratona continua por Ponta Delgada. Há que fazer escolhas. Ser salta espaços e salta artistas, porque não é possível ouvir todas as atuações do dia, que começam a cada 15 minutos. Tal como a vida este festival é também feito de opções, para várias sensibilidades.
É sábado e o último dos cinco dias de boa música independente que se faz por cá e lá fora. Durante a semana (de 15 a 19 de março) houve concertos surpresa pela ilha - chamados de "Tremor na Estufa" em locais grandiosos, alternativos às paragens do costume, como o Estádio de Futebol de Sâo Miguel ou as Termas da Ferraria, em que o público fez da àgua quente o melhor lugar para ouvir o concerto surpresa da noite. E, por instantes, parecia estarmos a assistir ao vivo a uma versão rock n´roll do filme "Juventude", de Paolo Sorrentino.
Na semana em que o mundo coube numa ilha, destaque para Zeca Medeiros e para a dupla Joana Gama & Luís Fernandes, com quem estivemos num directo em Sâo Miguel. Medeiros é um figura intelectual da terra conhecido pela voz grave, profunda e rouca que nos atinge, envolve e desconcerta. E a dupla Joana e Luís, que atuou no centro cultural Arquipélago, encantou a plateia como num sonho inspirado. Joana usa um piano como uma mesa de operações, puxando as suas cordas como quem puxa tendões e músculos. Uma cirurgia musical que se ouviu tão bem. Ao lado, numa mesa de mistura e fios, Luís deu-nos o gosto da exploração eletrónica. Uma dupla sem medo que arriscou fazer um encontro entre a erudição de um piano e as sonoridades da eletrónica. Quem não os conhece, deve-os descobrir.
Ouvidos atentos a esses e a tantos outros dos 50 projectos musicais apresentados este ano na 3ª edição do festival em bares, cafés, galerias de arte, lojas, igrejas, museus, restaurantes, e até num estádio e num skate park. Bandas com sonoridades variadas do hip hop ao eletrónico e ao rock mais alternativo.
Qual a origem deste sismo musical que sacode os palcos e a ilha de São Miguel? O Tremor nasceu da um abanão de ideias e vontades entre Luís Banrezes, editor da Yuzin, magazine cultural de Ponta Delgada e o curador, dançarino, cantor e performer António Pedro Lopes. Havia que dar vida, mundo e fôlego à ilha que começava a desertificar-se. António saiu da sua ilha aos 16 anos, viveu em inúmeros países e regressou com vontade de agitar a sua terra. Luís queria o mesmo. Inspiraram-se no festival de arte urbana Walk & Talk (que decorre em Agosto e já vai na 6ª edição), mas criaram uma versão com ADN próprio dedicado ao melhor da música independente que se faz na ilha, no continente e no mundo.
A eles juntou-se a editora e promotora portuense Lovers & Lollypops e, em 2014, arrancou a primeira edição. Dois anos depois o festival cresceu e a ilha mudou. Está mais cosmopolita e vivida. E a invasão dos espaços comerciais feito por este festival contribuiu para essa movida. São Miguel ganhou 'hype' e amor próprio.
São Miguel já não é só uma ilha com paisagens bonitas, bom peixe, lapas (ah, as lapas) e o bom cozido das furnas. É um lugar reinventado de mãos dadas com o seu contexto e tradição. "O Tremor já faz parte do lugar, das suas gentes, é maior do que nós e cria nova cultura independente local e do que chega do mundo. E tem uma relação íntima com a ilha, faz uma parasitagem nos mais diversos espaços, abre as suas portas, e estimula à criação de novos artistas da terra. Este caminho de música independente eclética e transversal vai estender-se durante o ano com residências artísticas e concertos pontuais. Não é um carnaval de uma semana", diz-nos António Pedro Lopes.
Um dos momentos mais emocionantes da noite foi a atuação da dupla catalã Za! com os alunos da Escola de Música de Rabo de Peixe no Auditório Luís de Camões. Este duo que é tudo em si e que cabe em todas as formações musicais, do jazz à eletrónica e ao rock, criou um raro momento de beleza e partilha.
Os olhos de alguns da assistência ficam marejados, sorrisos em todos os rostos, quando sob a batuta de um dos elementos da dupla, jovens e crianças de um dos bairros mais pobres e problemáticos tocam com graciosidade baterias, saxofones, trompetas, clarinetes, guitarras, flautas. O maestro também convoca o o público na assistência a participar. Todos juntos em comunhão. O Tremor é isto. E é, de facto, maior do que a ilha.
A poucos metros, no altar da majestosa Igreja do Colégio ecoam os acordes da guitarra de Rui Carvalho, nome de palco 'Filho da Mãe'. Um homem e a sua guitarra a tirar-nos o fôlego com o redemoinho de emoções que nos passa a cada nota. Ali a missa é outra. Os sons metálicos dedilhados pelo Filho da Mãe a alimentarem-nos a alma. E a noite ainda com tanto para dar.
A banda canadiana Black Mountain, com o seu revivalista rock psicadélico, ou rock cósmico com pitadas de modernidade, rebenta a sala do Solar da Graça com um som a puxar forte e a provocar o agitar das cabeças e dos sentidos. Rock on!
Em seguida, todos os caminhos foram dar ao concerto de Will Oldham, levando consigo a expressão cénica e teatral do seu alter ego Bonnie 'Prince' Billy, de olhos e unhas pintadas, a personagem criada também é música nele, a juntar-se aos sons xamânicos do trio de Chicago Bitchin´Bajas.
Uma ligação certa que nos embala e transporta aos melhores lugares. E aquele ´Prince´ prova que continua a reinar com liberdade e originalidade no reino da música. Se não conhece, aproveite para o descobrir. Um artista sublime.
A noite segue com o hip hop açoriano de Swift Triiga e Fred Cabral no Coliseu Micaelense, canções de rua, de bairro, e línguas articuladas para cantarem o que lhes vai lá dentro e o que os trouxe aqui.
Logo depois as atuações dos Capitão Fausto, uma das bandas mais interessantes do panorama pop rock português com três discos editados ("Gazela", "Pesar o Sol" e "Os Capitão Fausto têm os dias Contados") a aquecerem o público do Coliseu Micaelense.
Os PAUS com as suas baterias siameses voltaram a partir tudo, num terreno entre a eletrónica e o rock levando ao palco o novo álbum, "Mitra", o terceiro da sua carreira. E nesse momento já a plateia ferve.
A madrugada alcança a apoteose com a atuação do norte-americano Dan Deacon e das suas musicas de som saturado e garrido num estilo apelidado de "Future Shock". Só os resistentes ficam. A plateia abre uma grande cratera e dança em círculo. O lado festivo da elétrónica leva à entrega dos corpos. "Isto é São Miguel! Isto é São Miguel!" - Ouve-se várias vezes naquela noite, num misto de êxtase e surpresa. Isto é o mundo numa só ilha.