Dois anos de pandemia

Vítimas da infodemia: “O que faz aceitar teorias da conspiração é igual ao que leva ao terrorismo”

Sofrimento, impulsividade, narcisismo, insegurança, mal-estar e autoestima diminuída são fatores de risco para alguém cair nas teias da desinformação

WASHINGTON, DC – JANUARY 06: Crowds arrive for the “Stop the Steal” rally on January 06, 2021 in Washington, DC. Trump supporters gathered in the nation’s capital today to protest the ratification of President-elect Joe Biden’s Electoral College victory over President Trump in the 2020 election. (Photo by Spencer Platt/Getty Images)

(O Expresso publica a partir de 2 de março e até dia 16 uma série de trabalhos sobre os dois anos da pandemia.)

O paciente zero surgiu em dezembro de 2019, lá longe, num mercado da cidade de Wuhan. Entre nós e os casos de uma misteriosa pneumonia a alastrar na China havia uma muralha de desconhecimento, mas rapidamente a doença provocada por um novo coronavírus derrubou fronteiras e chegou à Europa. Primeiro, Itália. Depois, Espanha. O medo tinha chegado e a 2 de março de 2020 um cenário distópico tornava-se realidade em Portugal: estava confirmado o primeiro doente com covid-19 em território nacional. Nove dias depois, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou oficialmente: a humanidade enfrentava uma pandemia, um inimigo silencioso e invisível, como um sniper que atingiu mortalmente quase seis milhões de pessoas nos últimos dois anos.

A sociedade, entrincheirada em casa, foi obrigada a conviver com o “novo normal” e a agarrar-se à esperança de que “vai ficar tudo bem”. O mal é que o mundo não estava apenas ameaçado por uma pandemia. Havia uma segunda frente de batalha: a desinformação avançava imparável no terreno fértil das redes sociais, onde as teorias da conspiração minavam a confiança na comunidade científica, nas autoridades de saúde, nos decisores políticos e nos órgãos de comunicação social. “Não estamos apenas a lutar contra uma epidemia; estamos a lutar contra uma infodemia”, disseminada pelos “teóricos da conspiração que espalham informações erradas e prejudicam a resposta ao surto”, alertava Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS.

Foto: Guy Smallman / Getty images

As teorias da conspiração “não são uma novidade” e “sempre estiveram presentes nas sociedades”, começa por notar o especialista em comunicação digital Miguel Crespo, à conversa com o Expresso. “Surgem de algo muito comum: os boatos ou os rumores. Os seres humanos têm tendência para acreditar em informações que lhes parecem fazer sentido e são mais recetivos a informações que reforçam aquilo que já pensam. Este é um dos principais motores para a propagação alargada de desinformação”, explica o professor do ISCTE e investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES).

Para desconstruir muitas das teorias que foram surgindo relacionadas com a pandemia, Miguel Crespo foi um dos membros do projeto CovidCheck.pt, dedicado à verificação de factos em torno da covid-19. No site é possível encontrar a secção “Não se deixe enganar”, onde várias teorias são rebatidas. O uso prolongado de máscara pode levar a uma intoxicação por dióxido de carbono (hipoxia)? É incorreto. Bill Gates já tem uma vacina contra a Covid-19 patenteada desde 2014? Adivinhe: falso. A hidroxicloroquina é eficiente contra a Covid-19? Impreciso. Na Austrália é obrigatória a implantação de microchips para controlo da Covid-19? Incorreto. Existe correlação entre antenas de rede móvel 5G e o surgimento de casos de Covid-19? Mentira. Vacinas são feitas a partir de células de fetos abortados? Outra mentira. As vacinas alteram o nosso ADN? Mais do mesmo. Nostradamus previu a pandemia de Covid-19? Não. Já existia Covid-19 em Wuhan desde agosto de 2019? Também não. Obama e Fauci estiveram no instituto virológico de Wuhan em 2015? Nunca aconteceu.

Se nada disto é factual, então por que motivo conseguem as teorias de conspiração colher tantos seguidores? “Todos nós gostamos de histórias. Crescemos a ouvi-las e quando chegamos à idade adulta continuamos fascinados por elas. E, se calhar, gostamos mais de ficção, por ser mais livre, porque quando se constrói uma narrativa com base numa ideia e não num facto ela pode ser tudo aquilo que quisermos. Quando falamos de desinformação, estamos a falar de ficção”, afirma Miguel Crespo, para quem “todos os defensores de teorias da conspiração ou negacionistas têm sempre a ideia de que os outros todos estão a ser enganados e de que só eles sabem a verdade”.

O psicólogo clínico Miguel Ricou, também ouvido pelo Expresso, já teve casos neste contexto pandémico de pessoas que, de alguma forma, “estavam a derrapar nesse sentido”: o das narrativas paralelas, “fenómenos que surgem mais em situações de crise, nas quais as pessoas se sentem mais inseguras, daí uma pandemia ser muito propícia” a estas ‘fake news’.

A experiência diz-lhe que “qualquer pessoa pode embarcar numa teoria da conspiração” e isso “tem muito a ver com momentos de vida ou com dificuldades pessoais”. Por norma, a desinformação infeta quem está mais vulnerável. “Aquilo que temos de perceber é que estas pessoas têm algumas características psicológicas que podem ser comuns: sofrimento, impulsividade, narcisismo, insegurança, mal-estar e uma autoestima diminuída“, identifica o investigador do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS).

Foto: JEFF KOWALSKY / AFP via Getty Images

“Todos precisam de bons momentos para estar bem e a pandemia privou-nos disso. Fomos todos expostos a piores momentos, com dificuldades de adaptação a uma nova realidade”, observa Miguel Ricou, membro do Conselho Nacional de Saúde Mental e presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos.

Mas o que é que alguém obtém das teorias da conspiração? “Segurança”, responde prontamente Miguel Ricou. Além disso, acrescenta, “são pessoas que têm a necessidade de se sentirem especiais, o que revela uma dimensão um pouco narcísica”, pois “há nelas uma grande necessidade de conseguirem afirmar a sua superioridade e de se considerarem melhores do que a maioria das pessoas”. Para estes indivíduos, evidencia o professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, “os outros são todos uma espécie de carneirada e só eles têm a capacidade de saber uma verdade que lhes dá algum conforto”.

De acordo com Miguel Ricou, são pessoas com “dificuldade em gerir as suas próprias emoções, como a raiva, o medo ou o ódio”. E o ser humano é “muito menos racional do que julga e responde sobretudo ao que sente”, frisa o psicólogo clínico. Isso faz com que pessoas mais fragilizadas olhem para o mundo como “um lugar cheio de maldade que elas conseguem desmascarar” e “estas teorias ajudam-nas a identificar um inimigo, porque normalmente culpam sempre grupos poderosos”. No fundo, está sempre presente a “necessidade de acreditar em alguma coisa” e, quando se entra no domínio da crença, “o sentido crítico perde-se”, salienta o especialista.

“As teorias da conspiração são explicações simples para problemas complexos e dão ao indivíduo uma sensação de poder. De repente, sabem mais do que os outros e têm mais poder do que os outros, o que os faz sentir especiais por conseguirem explicar uma coisa, de forma simples, que os outros não sabem. Isso resulta num acréscimo de autoestima e sentem-se valorizados por isso.”

Miguel Ricou, psicólogo clínico e investigador do CINTESIS

“Por serem chocantes e dramáticas, disseminam-se muito mais rapidamente. Estas teorias nunca se verificam e nunca resultam, mas cumprem o seu papel de dar um sentimento de poder e superioridade”, o que leva os conspiracionistas a adotar um “comportamento tribal, como se estivessem numa guerra do bem contra mal”.  

“O processo mental que faz aceitar as teorias da conspiração”, defende o investigador do CINTESIS, “é igual ao que leva ao terrorismo e à radicalização, porque os extremismos nascem do sofrimento e daquilo que está mal na vida”. A partir do momento em que se cai no fanatismo, “cria-se uma espécie de espiral: quanto mais a pessoa acredita naquelas ideias e se compromete com a narrativa, mais necessidade tem de encontrar razões que as legitimam e justificam”, enquadra Miguel Ricou.

E numa guerra, já avisava o dramaturgo grego Ésquilo, «a primeira vítima é sempre a verdade». “A prova é eliminada pela crença e torna impossível uma discussão que só vai servir para polarizar opiniões”, explica Miguel Ricou. Então, quando uma informação contraditória entra em cena, “é preciso atacar o mensageiro”, neste caso “a comunicação social que está a passar uma mensagem contrária à crença destas pessoas”, sustenta o psicólogo clínico. Até porque a lógica é simples, desvela o investigador: “há um grupo poderoso escondido que controla tudo, os políticos estão feitos com as autoridades de saúde e compram a comunicação social”.

Não obstante toda a contra-informação, os dados do estudo “Covid-19 Pandemic: Effect on Confidence Levels of Portuguese Towards People of Different Professions”, da autoria de Miguel Ricou, revelam que os portugueses mantêm níveis de confiança elevados nos profissionais de saúde, na ciência e na educação.

O estudo demonstra que os médicos e enfermeiros são os profissionais que merecem mais a confiança dos portugueses (entre 43 e 44%), seguidos pelos investigadores (37%), farmacêuticos (35%), psicólogos (33%) e professores ou educadores (32%). “Estes resultados podem ser justificados pelo papel desempenhado por estes profissionais durante a pandemia”, sustenta Miguel Ricou.

Em sentido contrário, o nível de confiança nos políticos baixou. As razões apontadas pelos inquiridos passam pela crise socioeconómica e pela impopularidade das medidas adotadas pelos governantes. Também a reputação dos jornalistas baixou durante a pandemia, pois, como vinca Miguel Ricou, “é muito fácil atribuir culpas ao mensageiro”.

Foto: Sean Gallup / Getty Images

As redes sociais vieram servir de incubadora para as mais diversas e criativas teses. Rapidamente a pandemia abriu caminho para grupos negacionistas, como os ditos “Jornalistas pela Verdade”, “Médicos pela Verdade”, “Enfermeiros pela Verdade, “Advogados pela Verdade”, tudo e mais alguma coisa sempre em nome de uma famigerada verdade, a mesma que levou um juiz a vestir a capa de justiceiro para chamar “assassino genocida” a Marcelo Rebelo de Sousa, acusando o Presidente da República de ser o responsável pela morte de milhares de pessoas através de “injeções com substâncias farmacêuticas experimentais”. 

“As pessoas começam a frequentar esses grupos e isso dá-lhes a sensação de que toda a gente acredita no mesmo. A opinião delas está sempre a ser reforçada e portanto não se questionam. Acham que sabem tudo daquilo. Então há a sensação de que é uma coisa muito importante e não aceitar essa teoria é uma burrice”, diz Miguel Ricou, para quem “seria importante criar algoritmos diferentes, que dessem o acesso ao contraditório e à diversidade de opinião”.

Quem se informa nas redes sociais está mais predisposto a aceitar teorias da conspiração

Um estudioso de como as redes sociais favorecem a propagação de informações falsas é Gil Baptista Ferreira, autor do artigo “Teorias da Conspiração em Tempos de Pandemia Covid-19: Populismo, Medias Sociais e Desinformação”. “As redes sociais são isso mesmo: redes. São câmaras de eco que confirmam as nossas expectativas e nos dão aquilo que a máquina pensa que corresponde aos nossos interesses. Há um efeito muito forte das redes sociais na propagação da desinformação”, constata, em declarações ao Expresso. “A comunicação nas redes sociais é direta e chega através de bolhas informativas. Tudo isto deixa os indivíduos muito mais dependentes e vulneráveis a determinados enviesamentos informativos”, completa Baptista Ferreira.

Para este investigador do Labcom, da Universidade da Beira Interior, trata-se de uma “pandemia informacional” e “a infodemia é um perigo para a saúde”. “Não há qualquer dúvida de que há vítimas da infodemia”, atira o professor do Instituto Politécnico de Coimbra, desde logo porque “pessoas mal informadas não têm comportamentos benéficos”.

Foto: Guy Smallman / Getty images

Na opinião de Gil Baptista Ferreira, “o mecanismo de disseminação [da desinformação] é em tudo semelhante à da própria pandemia”. Por outras palavras, as do especialista em sociologia dos media, “as informações falsas espalham-se de forma viral, alargando-se através do contágio e produzem efeitos cognitivos nas pessoas infetadas”.

Ao longo da sua pesquisa, o investigador verificou que “os indivíduos que valorizam mais as redes sociais, enquanto fonte de informação, estão mais predispostos a aceitar teorias da conspiração”. Porquê? “Essa desinformação chega-lhes de uma forma tão simplificada, tão clara e tão fácil de aceitar que acabam por criar a impressão de que perceberam tudo. Por outro lado, quem mergulha nos media informativos é confrontado com uma complexidade de tal ordem que isso só suscita dúvidas e mostra que a realidade não é só preta ou só branca”, esclarece Gil Baptista Ferreira.

Todavia, na mente de um devoto das teorias da conspiração tudo é bastante linear. “Estas pessoas vêem-se como mais honestas e os culpados são sempre os outros. Tudo é fruto de uma grande conspiração. Vêem-se como vítimas da ‘propaganda dos meios do sistema’”, conclui o especialista.