(O Expresso publica a partir de 2 de março e até dia 16 uma série de trabalhos sobre os dois anos da pandemia.)
Não há quem duvide: a pandemia teve impacto na saúde mental de toda a gente. Em quem esteve (e se manteve) na “linha da frente”; em quem sofreu de forma mais particular o peso dos sucessivos confinamentos; em todos os que tiveram de lidar com a doença de perto e naqueles a quem a doença impôs perdas insubstituíveis.
As crianças não escaparam. Em plena fase de crescimento, desenvolvimento e descoberta da personalidade, foram obrigadas a permanecer em casa, privadas, por exemplo, de brincar na rua com os amigos e de terem aulas na escola, perdendo as suas rotinas normais.
Meses depois da covid-19 se ter tornado parte permanente das nossas vidas, os primeiros alertas surgiam, em forma de chamada de atenção para o aumento de jovens deprimidos, ansiosos, ou com outras alterações no seu equilíbrio emocional. Dados divulgados esta quarta-feira pela Organização Mundial da Saúde dão conta de que estas patologias cresceram 25% só durante o primeiro ano de pandemia, com os jovens e as mulheres a serem os mais afetados.
Olhando para os mais novos, Renata Benavente, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos destaca os efeitos negativos no que se refere ” às questões da socialização”. Explica a psicóloga que “há evoluções que se vão fazendo ao longo do crescimento e do desenvolvimento, que decorrem da aprendizagem que é feita no contexto das relações com os outros, e que não puderam ser experienciadas”.
Para Renata Benavente e os restantes psicólogos ouvidos pelo Expresso, a principal preocupação recai no grupo de crianças que já apresentavam anteriormente vulnerabilidades, tendo estas sido agravadas pela pandemia. Tornaram-se menos resilientes do que as restantes crianças. Mostram, também, mais dificuldade ao retorno das rotinas normais, muitas por se sentirem desconfortáveis em sociedade.
Aos pais e cuidadores coube um papel fundamental, já que “foram capazes de gerir as suas dificuldades internas e ao mesmo tempo dar o apoio que os filhos precisavam”, destaca Renata Benavente. A especialista afirma também que, quando os pais ou cuidadores estão tranquilos, passam essas emoções para os filhos.
Pacientes sem acesso a ajuda psicológica
Saber quais serão as repercussões a longo prazo é a questão que prevalece.
O que se sabe, a curto prazo, é que está a ocorrer um “aumento de quadros psicopatológicos na linha da ansiedade e depressão”, concorda a vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, cuja incidência se reflete nos centros de saúde e nos hospitais.
Pela própria experiência como psicóloga, Renata Benavente sabe que estão a ser negados ou muito adiados os tratamentos a pacientes que deles precisam: “Para nós é muito frustrante e causador de sofrimento, porque percebemos que aquela pessoa precisa de ajuda, e nós é que estamos olhos nos olhos a dizer-lhes ‘lamento, mas não vamos poder trabalhar em conjunto’” porque – e acrescenta – “há sempre outro utente em lista de espera”.
Impõe-se a questão: que ações estão a ser desenvolvidas para colmatar esta falta de ajudas psicológicas? A vice-presidente da Ordem dos Psicólogos diz que nenhumas. Em termos de serviços públicos não está a ocorrer qualquer tipo de reforço nem medida de exceção, adianta. “Parece não haver realmente uma priorização destas necessidades da população. O que acaba por ser um contrassenso, porque se pensarmos isto não tem só custos em termos de sofrimento, as pessoas estão a recorrer a situações de baixa por doença, aos apoios do Estado, por não estarem em condições de trabalhar.” Admite Renata Benavente.
De volta ao caso das crianças, foi para colmatar as falhas de respostas a este grupo (e já era assim no período pré-pandemia) que surgiu o projeto “Protocolo Unificado para o Tratamento Transdiagnóstico de Perturbações Emocionais em Crianças – Versão Centrada na Criança (PU-C/C)”, mais conhecido por “Detetives das Emoções”. Nele, os psicólogos da Universidade de Lisboa focam-se nas crianças dos 7 aos 12 anos e realizam com elas 15 sessões onde o principal objetivo é abordar a ansiedade e depressão.
Uma rede de estudos que envolve as Universidades de Lisboa e Coimbra tem como objetivo a validação deste programa para a população portuguesa e a exploração da eficácia de algumas versões adaptadas.
Ana Maria Pereira, psicóloga no projeto, diz que uma ação rápida sobre estes transtornos é fulcral para despistar futuras consequências, dado o ritmo de desenvolvimento acelerado das crianças.
O programa, ainda piloto, inserido no serviço à comunidade da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, é uma versão adaptada de um programa desenvolvido pela Universidade de Miami. Procura incluir os pais numa parte de todas as sessões, dada a importância de estes incorporarem os exercícios aí desenvolvidos no dia-a-dia das crianças. Além disso, é-lhes fornecido material para a realização de exercícios em casa, sendo este programa totalmente gratuito.
Para estas crianças, diz Ana Maria Pereira, o projeto visa fazer “uma intervenção específica destes processos comuns da ansiedade e depressão”. Aquilo que se pretende “é mesmo, por um lado, melhorar a regulação emocional, a for como as crianças lidam com estas emoções – que podem ser fortes, intensas e até desconfortáveis -, mas também alterar a própria forma como elas experienciam essas mesmas emoções”.
Para Ana Isabel Pereira, psicóloga, professora e coordenadora do projeto, é preciso “responder a todas estas necessidades de forma inteligente”. Para isso, diz ser necessária “uma gestão mais inteligente dos recursos limitados que temos”: “Isto não é só um esforço dos serviços de saúde mental, isto tem que envolver as escolas e as comunidades locais”.
Efeitos a longo prazo
Segundo o estudo “Parentalidade e adaptação de crianças em idade escolar e adolescentes durante o confinamento devido à pandemia da COVID-19” , realizado no primeiro confinamento em 2020, do qual Ana Isabel Pereira fez parte, a saúde mental da população portuguesa agravou-se de facto com a pandemia covid-19. E a psicóloga chama a atenção “para o facto desta situação, pela sua duração e impactos secundários (como a crise social e económica), poder ter implicações ainda mais substanciais para a saúde mental da população a longo prazo.”
O estudo foi realizado online em 5 países europeus, tendo sido respondido maioritariamente por pessoas com estudos superiores. Os dados portugueses mostram que as crianças apresentavam, na sua maioria, níveis moderados de ansiedade específica à covid-19, sendo a opção “medo de ser infetado ou de infetar outras pessoas” a mais indicada.
Já os pais, apresentavam uma ansiedade global mais elevada e um bem-estar mais baixo quando comparado com valores de referência obtidos em estudos europeus anteriores, que incluem amostras portuguesas. Do grupo de 558 cuidadores, 32,6% relata ter níveis elevados de ansiedade.
Ana Isabel destaca esta questão da elevada ansiedade: “seriam efeitos muito mais gravosos se tivéssemos a falar de pessoas com menos recursos. Foi surpreendente nós ainda assim, com uma amostra mais escolarizada e com mais recursos, captarmos estas respostas.”
Tal como Renata Benavente, a professora defende que as crianças ou adultos que já tinham vulnerabilidades prévias “tiveram muito mais dificuldade para lidar com as adversidades.”
Outro estudo realizado pela JAMA Pediatrics, que resulta de uma metanálise de 29 estudos, onde participaram 80.879 jovens, procurou compreender a prevalência global de sintomas clinicamente elevados de ansiedade e depressão em crianças e jovens durante a pandemia. Os resultados mostram que “as estimativas combinadas de prevalência de depressão e ansiedade em crianças e adolescentes clinicamente elevadas foram de 25,2% e 20,5%, respetivamente.