Antes pelo contrário

“No Brexit, sinto-me Corbyn”: ensaio de Daniel Oliveira

A narrativa que se está a construir sobre Brexit ridiculariza a democracia, retoma o discurso suicida de Hillary Clinton sobre os eleitores “deploráveis” e anuncia o Apocalipse. Há uma tentativa de despolitizar o Brexit, ignorando as contradições que ele exibe à esquerda e à direita. Nos trabalhistas, o paradoxo é evidente: apesar de Corbyn ser oficialmente contra o Brexit, o seu manifesto eleitoral é incompatível com o Mercado Único. Não é porque o euroceticismo seja xenófobo que quase só vemos xenófobos a dar-lhe voz. Há excelentes razões de esquerda contra esta União. No Reino Unido o euroceticismo até é uma velha tradição de esquerda. Mas a esmagadora maioria da esquerda debandou desse espaço e entregou-o aos piores argumentos. Corbyn foi a última oportunidade de deixar de o fazer. Como o europeísmo de esquerda foi derrotado há muito, algures entre Maastricht e Lisboa, sobram chavões sobre a paz e a democracia que ignoram o programa ideológico que hoje determina quase todas as políticas fundamentais impostas pela União. Pode estar tudo errado no Brexit, e quase tudo está. Mas não está pior do que esta UE e do que a reveladora altivez com que olhamos para este momento. Sinto-me como Corbyn, entalado entre o debate que devia ter sido feito e o debate que realmente se fez.

A narrativa do Brexit para os europeus concentra-se na “trapalhada”. Não que a confusão seja falsa, com sucessões de votações e sem se saber ao certo o que vai acontecer a poucas semanas do eventual desenlace. Mas não é inocente a despolitização do debate sobre a decisão tomada pelos britânicos de forma democrática e livre. Há até alguma chacota com os procedimentos parlamentares a que qualquer populista poderia aderir com facilidade. Muitos dos países onde tantos se riem do difícil momento que o Reino Unido vive nunca fizeram qualquer tipo de debate democrático e sério sobre a sua adesão à UE. Não referendaram, não discutiram, não votaram. Limitaram-se a estender a mão para receberem fundos e entregarem os seus destinos a terceiros, fazendo figas para que tudo corra bem em Bruxelas, Paris e Berlim. Quanto aos recuos e avanços do Brexit, será necessária uma cronologia sobre o processo que levou a cada novo tratado, referendos feitos e repetidos e trapalhadas em nada diferentes destas? Estamos a rir de quê?

Tudo esteve errado na forma como David Cameron marcou este referendo, tendo como único objetivo encostar os eurocéticos do seu partido a um canto. E tudo está errado na debandada dos que, tendo dirigido a campanha do “leave”, não se responsabilizaram pelas suas consequências. E é natural que não o tenham querido fazer. A direita xenófoba não tinha qualquer projeto para depois. O Reino Unido decidiu sair da União Europeia sem um plano, sem tempo para o que precisava de fazer, sem seriedade política e honestidade intelectual. Mas, é bom dizer, a própria União foi-se construído com a possibilidade de sair expressa no artigo 50º mas sem qualquer roteiro para a forma de o fazer.

Com base no amadorismo dos brexiteers, não podemos tratar a decisão tomada pelos britânicos como um mero capricho de irresponsáveis. O euroceticismo britânico, à direita e à esquerda, é anterior à adesão ao projeto europeu. E tem, historicamente, algumas excelentes razões. O referendo de 1975, imposto pelos trabalhistas dois anos depois da adesão, foi a última vez que esse debate se fez a sério. As razões mais relevantes foram agora expressas numa frase de leitura dúbia que foi usada na campanha do Brexit para um discurso xenófobo mas podia ser usada, com toda a propriedade, na defesa intransigente da democracia: “take back control.”

Com a mais velha democracia parlamentar, os britânicos não se adaptaram com facilidade à informalidade antidemocrática e ao poder dos burocratas de Bruxelas. E tiveram dificuldade em assistir, sem comichões, ao projeto imperial alemão em que a União se transformou, desde a criação do euro e do alargamento da UE a leste. Estes dois incómodos, que muitas vezes foram expressos de forma demagógica e simplista mas que nem por isso perderam razão de ser, podem manifestar-se à direita ou à esquerda de formas diferentes, com exigências mais liberais ou mais sociais, mais cosmopolitas ou mais xenófobas. Mas são incómodos legítimos. E a troça que dele fazemos diz mais da nossa anemia democrática do que do caos britânico. Da Roménia a Portugal não falta quem queira dar lições de democracia aos ingleses. Não deixa de ser irónico.

OS LOUCOS DIRIGEM-SE PARA O ABISMO

A narrativa do Brexit para os europeus também se concentra na demonização dos eleitores britânicos. E não é por acaso que se tenta resumir o Brexit a uma espécie de surto psicótico dos ingleses. De tal forma que que há mesmo quem acredite que, se repetir o mesmo referendo fora da fase maníaca, o resultado será necessariamente diferente. É a velha tática de recomeçar todos os jogos até vencer. Ela deixou um lastro de ilegitimidade que as forças da vanguarda europeísta sempre desprezaram até serem surpreendidas por maiorias cansadas de tanta arrogância. Uma arrogância que nasce da certeza de que quem está do lado do bem não precisa de apoio popular. Lidera a marcha inexorável para o progresso e isso chega. E se os eleitores não o percebem é porque são ignorantes, tacanhos, velhos e racistas. Há uma total coincidência entre o discurso que se fez sobre o referendo francês, em 2005, e o que se faz agora. Com uma diferença: na altura houve uma esquerda que, apesar da chantagem que a colava à extrema-direita, não teve medo de estar do lado do “não”, o que permitiu que naquela campanha houvesse argumentos de esquerda e democráticos. O tempo veio a dar-lhes plena razão, quer no erro óbvio que teria sido o Tratado Constitucional, quer no que veio a ser o seu sucedâneo, o Tratado de Lisboa.

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