Eu não sabia. Quem me falou do assunto foi o Professor Adel Sidarus numa viagem que fizemos até Coimbra para um encontro do Bloco de Esquerda, a convite do amigo José Manuel Pureza. Pelo caminho aprendi imensas coisas com este islamólogo cristão-copta nascido no Egipto.
O compromisso chama-se 'Mut'ah' - é um tipo de "casamento temporário" Na realidade, contou-me Adel, a prática permite impedir o sentimentento de solidão que alguns homens possam experimentar quando têm de passar períodos mais prolongados longe de casa e da familia em virtude da sua actividade profissional. Nessas circunstâncias procuram a companhia de uma mulher por quem sintam uma maior afinidade, evitando assim, o recurso à prostituição. A relação legalmente aceite que pode durar entre uma hora e 99 anos é uma prática pré-islâmica da Arábia e legalmente ainda aceite entre os shiitas duodécimanos do Irão.
John Esposito tem na sua Modern Islamic world um artigo que explica detalhadamente os principios de jurisprudência islâmica que regulam estes compromissos. Entre elas, que um homem pode ter vários 'mut'ah' em simultâneo e uma mulher só um de cada vez, mas que ela pode assumir este compromisso sendo ou não virgem, viúva ou divorciada. Não há procedimentos de divórcio neste tipo de casamento, e o homem não tem a obrigação de providenciar o sustento da mulher, como teria se fosse casado; reciprocamente, a mulher também não é obrigada a nada relativamente ao marido a não ser por vontade própria. Como a mulher só pode ter um 'mut'ah' de cada vez, ou seja, não pode ter ligações sexuais com outros homens durante o tempo da sua 'mut'ah' corrente, se houver filhos dessa união temporária (que pode até durar a vida toda), cabe ao progenitor perfilhar e garantir o sustento da criança até à maioridade.
A prática não foi continuada pelos sunitas, sobretudo pelos que foram seguindo principios tribais e costumes locais e as foram integrando dentro da jurisprudência islâmica (variada e distinta de acordo com as várias escolas de pensamento que foram surgindo no Islão); mesmo o regime da dinastia iraniana Pahlavi (1925-1979), apesar de não ter legislado negativamente a prática, nunca viu a 'mut'ah' com bons olhos. A ambivalência moral e emocional face à 'mut'ah' ainda existe em grande medida por parte da classe-média urbana iraniana, a qual não retirou a importância e aprovação inequívoca do casamento permanente entre os Iranianos.
Parece-me interessante partilhar este facto num mundo que considera, na generalidade, que a emancipação sexual e a permissão do sexo sem casamento é exclusiva das sociedades ocidentais modernas.
Não pretendo posicionar-me a favor ou contra a 'mut'ah' mas a prática parece interessante também porque deixa de haver a tão controversa questão do divórcio no islão onde prevalece a posição do homem sobre a mulher (onde a palavra 'talaq' usada 3 vezes seguidas pelo esposo significa a rejeição da mulher;sendo que o inverso não tem equivalência qualquer!) . Por outro lado, o adultério, qualquer que seja a sua interpretação, parece ser contornável porque afinal o compromisso existe apenas enquanto ambos quiserem. E a obrigatoriedade de ter um só companheiro de cada vez permite à mulher salvarguardar o sustento e o perfilhar de provável progenitura
Não me interessa formular aqui juízos de valor sobre a 'mut'ah', até porque venho de uma tradição shiita onde esta seria uma prática inaceitável. Tabu mesmo! O que importa aqui é apenas mostrar que o Islão não é tão linear e monolitico como muitas vezes se quer fazer crer. Há nas populações que praticam esta fé, um mundo de coisas ainda por descobrir. E é por isso que muito muçulmanos se irritam quando não se revêm nas representações sociais com que a sociedade e a opinião dominante os rotula.