Crónicas de uma Muçulmana

Angola no feminino

Faranaz Keshavjee (www.expresso.pt)

Luísa veio a casa substituir por 3 dias a empregada que teve de ficar a cuidar da filha doente. Chamou-me "mamã". No primeiro dia tentámos coordenar as necessidades da casa com a experiência que tem. As domésticas dizem sempre que sabem, que têm experiência...mas tudo é relativo. Pedi para ir buscar o aspirador, ela foi buscar a vassoura; pedi para lavar as casas de banho, ela lavou os rolos de papel higiénico também... Enfim. Precisamos relativizar se também compararmos com as que aparecem ao trabalho em Portugal.

No segundo dia, 'mata-bichamos' juntas. Luísa tem 5 filhos e é muito religiosa. Um deles tem necessidades especiais: não se mexe bem, não endireita as costas, e precisa de ajuda para tudo. Já tentaram tratá-lo; "melhorou mas não ficou bom, mamã". Contou que uma cunhada lhe disse uma vez que devia ter gasto o dinheiro numa urna ao invés de tentar tratar a criança. Luisa disse que aguentou as lágrimas. Como poderia tirar a vida a um filho que Deus me deu?!

O pão que comiamos custava a engolir. Tentei reconfortá-la dizendo que conheço pessoas com necessidades especiais na família e que estou convencida de que ele só nasceu como seu filho porque ela, os outros filhos e o marido, sabem como cuidar e dar amor a um ser especial. Que deve confiar em Deus; que vai encontrar caminhos menos difíceis. Luísa contou então um recente episódio da sua vida.

"Um dia destes, mamã, não tinha nada em casa. Os meninos vinham e me diziam: mãe tenho fome... Pus uma panela com água no fogo e fechei a tampa. Disse que está a cozinhar. Não sabia o que fazer. Não tinha mesmo nada para lhes dar. Me pus de joelhos e falei com Deus: Deus sabes o que eu faço; quanto eu me esforço; tu me deste estes filhos, eu tento procurar trabalho, me esforço... Tu sabes o quanto me custa ter de os ver passar fome. Ainda me comem a mim... Me ajuda meu Senhor... Não passou pouco tempo, uma hora talvez, apareceu a diocesana para me perguntar como vão as coisas em casa. Falei, disse que estava difícil e conversámos, conversámos, até que ela saiu e eu a acompanhei pelo caminho lá de fora da casa. Se despediu de mim e disse que não podia ajudar muito, mas que tinha um envelope para mim. Levei e quando cheguei em casa, abri e vi que tinha 15 mil kwanzas. Um pouco depois uma vizinha me chamou e disse que passou por aí alguém que deixou um pacote para mim. Abri e tinha mais 5 mil kwanzas. O outro vizinho disse que tinha conseguido arranjar um saco de arroz para mim, e fuba também, e outra disse que tinha óleo! Fiquei sem saber o que dizer, sem palavras, e só disse a Deus que não sabia como agradecer; que não sou merecedora de tanto....!"

Graciete é portuguesa e veio acompanhar o marido que está na comunicação social. Sorri de forma bela. É bela porque está feliz aqui, disse-me; mais do que estava em Portugal. Trouxe os filhos que acabaram por sentir que preferiam estudar em Portugal. Não quer regressar. Vão e voltam.

Isabel tinha os filhos dela no mesmo colégio onde estão os meus. Reconheceu-me num evento. Costumávamos tomar o pequeno almoço com várias outras mães. Lembro-me de dizermos que tudo ia mal e que ia piorar. Hoje estamos as duas em Luanda. Uns filhos foram para o Reino Unido estudar, a mais nova está com ela. Estão bem. Trocámos números de telefone. Sente falta das amigas. Mostrou o telefone mais simples que podia ter porque o bom foi roubado no outro dia quando ia ao pão, porque, disse,"fui completamente descuidada e atravessei para o lado que não devia". Sim, coisas destas acontecem também em Lisboa, todos os dias.

Fernanda veio ao casamento da sobrinha vestida como uma europeia dos anos 20. Lindíssimo o fato, os sapatos, o turbante. Falava muito e muito alto. Revoltada, inconformada com a realidade do seu país, esta angolana até a expatriados como nós deu que argumentar. Ama Angola mas só consegue viver em Londres. Passou tempo demais longe desta forma de estar na vida, e acha tudo mal, que já houve tempo para mudar tudo, que não espera nada deste país. Mas dizem que quando passa em casa dos familiares, levanta muito a voz, esperneia, chora e depois adormece como uma criança, ali mesmo, no conforto do 'seu lar'.

Raquel Flexa é brasileira. Cruzámo-nos numa excursão para conhecer pedaços magníficos do país. Percorremos mil kilómetros de estrada asfaltada para chegar às Quedas de Kalandula. O organizador da viagem é o Paul da Eco-Tur, um gaulês, que cá está há 30 anos, e que nos foi explicando a evolução rápida e notável do país. As estradas novas, o cultivo de biocombustivel. Raquel veio dar consultoria à Sonangol. Adora o país e as pessoas, e quer voltar sempre que possa. Diz que, tal como muitos, vinha com ideias estereotipadas, mas o encontro com a realidade deixou-a fascinada com a alteridade, com as diferenças e semelhanças culturais. Que sim, que há muita coisa a fazer ainda, mas que a nação de paz é jovem e tem caminho a fazer, e vê-se que está a trabalhar nesse sentido.

Foi nesta excursão que re-encontrei o meu querido amigo Bruno Neto, em Ndalatando, que trabalha também no feminino angolano. Isto é, através da sua agência Médicos do Mundo, serve o mundo das mulheres do interior onde a taxa de mortalidade materno-infantil é assustadora. As histórias que às vezes publica no facebook sobre as mulheres que encontra são também elas fascinantes e reveladoras de culturas por e para conhecer.

As histórias que conto não servem para escrever compêndios de hitoriografia de uma Angola em desenvolvimento. São pequenas e singulares mas reflectem que nem só de sangue e de desgraça vive este país. Como me disse ontem um jornalista português em trabalho aqui, as pessoas que normalmente falam mal deste país não o conhecem realmente. Não são capazes de enquadrar a parte no todo, e ficam-se pelos clichés. Faz lembrar o síndrome semelhante relativo ao islão e aos muçulmanos. Só mudam os personagens; a história é sempre a dos Outros.

PS: Para os leitores que AINDA não perceberam o que se pretende com crónicas de uma muçulmana, uma breve explicação: não sou de nenhuma islamolândia; não escrevo só sobre o islão e os muçulmanos, embora tenha preparação académica para isso; e não tenho de pedir desculpas por existir, nem como muçulmana nem como portuguesa, só porque alguns muçulmanos e portugueses com poder e má fé, cometeram os erros mais atrozes atentando contra a vida dos mais vulneráveis. O meu é um olhar de muçulmana sobre as coisas da vida; em Portugal, Angola, Moçambique, Egipto, ou noutro lugar do mundo.