Blitz

101 canções que marcaram Portugal #100: ‘Ó Gente da Minha Terra’, por Mariza (2001)

Cresceu na Mouraria, o berço do fado, e trouxe-lhe sofisticação, cor e modernidade. Fez do fado uma viagem mestiça. Pôs o fado na moda e internacionalizou-o. Com a sua figura extravagante e uma voz densa, abriu caminho à geração que haveria de desconstruir a canção nacional. ‘Ó Gente da Minha Terra’ foi escrito por Amália e tornou-se um hino nacional paralelo. É a 100ª de 101 canções que marcaram Portugal

Mariza na capa de "Fado em Mim", de 2001

Jorge Cerejeira

‘Ó Gente da Minha Terra’, Mariza (2001)

No final de 1975, Mariza tinha acabado de completar dois anos. O pai tinha sido preso um mês antes e podia finamente receber visitas. Estava na prisão mais severa do regime, na Machava, em Maputo. José Nunes vestia apenas uns calções e calçava uns chinelos. Mariza, apercebendo-se da comoção do seu pai, quis dar-lhe a maior alegria que pudesse. Radiante, revelou que já sabia assobiar. A filha, que herdara o nome de uma cantora brasileira, Mariza Gata Mansa, que o pai venerava quando vivera no Brasil, haveria de dar muitas mais alegrias do que José Nunes poderia crer.

Poucas semanas mais tarde, aterravam em Lisboa, uma cidade fria e pouco acostumada a casais mistos, ainda mais na Mouraria, onde assentaram arraiais. Os pais alugaram o restaurante Zalala (como um acaso umbilical, o nome de uma praia na província da Zambézia, no seu Moçambique), no n.º 20 da Travessa dos Lagares, a dois passos da casa de Severa, a fadista que ali morrera (na Rua do Capelão) em 1846. Os Nunes viviam numa casa esconsa por cima do restaurante, onde aos domingos se cantava o fado (o Parque Mayer não tinha nesse dia da semana a sessão da noite e os artistas paravam no Zalala para cear, ouvir e cantar o fado).

A Mouraria é o berço do fado e foi o cenário indutor para Mariza, que começou a cantar no Zalala com cinco anos. Em casa, vivia-se em África; no andar de baixo, vivia-se a Mouraria de antigamente, a Lisboa de antigamente – com guitarras, marialvismo, vivências sofridas na voz, bordões, mão na anca, um ‘Ah, fadista’ constante. Certo dia, em 1978, Charles Gillet, crítico de música e jornalista da BBC Radio (responsável por lançar Elvis Costello e Dire Straits) estava em Lisboa e embrenhou-se na Mouraria, procurando um sítio para cear. Entrou por acaso no Zalala, onde ouviu cantar uma menina de cinco anos. Algumas décadas mais tarde, convidou Mariza para conceder uma entrevista à BBC Radio em Londres. Só muito depois, já com amizade firmada, é que cruzaram as histórias: a menina que se tinha levantado para cantar naquele restaurante era a mesma cantora, agora com 1,83m, que fazia sucesso pelo mundo fora.

‘Se o meu amor vier cedinho/eu beijo as pedras do chão/que ele pisar no caminho’ era o refrão de ‘Novo Fado da Severa’ (popularizado como ‘Rua do Capelão’), com o qual Mariza nada se identificava; percebe-se. Foi todavia esse fado que a fez ser notada. Este fado era o único que Nelo Carvalho (músico angolano) sabia tocar e Nelo era o único que sabia tocar guitarra nesse fim de noite no Berimbar, onde estavam. Por um acaso, também lá estava José Luís Gordo, dono do ‘Senhor Vinho’, a mais famosa casa de fados da Lapa, que a desafiou a cantar um fado – que haveria de ser o da estereotipada mulher submissa de muitos fados. No final do ‘Novo Fado da Severa’ (composto em 1930 para o filme, o primeiro sonoro português, biográfico da fadista), José Luís Gordo, comovido, convidou Mariza para cantar no Senhor Vinho. Todavia, para entrar no senhor Vinho, teria de ter o veredicto de Maria da Fé, igualmente dona do espaço e sua esposa. Umas noites mais tarde, Mariza, já acompanhada à viola por Jorge Fernando e à guitarra por José Manuel Neto, cantou pela primeira vez no Senhor Vinho – a fim de receber a aprovação de Maria da Fé. Cantou ‘Povo que Lavas no Rio’. A letra de Pedro Homem de Mello foi, nessa noite, amplificada pela voz possante de Mariza, que lhe deu ainda um swing particular e convenceu a fadista veterana. Haveria de ficar dois anos no Senhor Vinho e começaria aí o grande percurso de Mariza.

O fado estava a renascer – depois de décadas de ostracismo e funeral encomendado. Estava a renascer com Camané, com Mafalda Arnauth, com Cristina Branco, ainda timidamente. O fado precisava de Mariza – para desbravar caminho, para o desconstruir, para voltar a sair de Portugal, para ser amado fora de Portugal - como é o flamenco ou o tango. À sua voz, à sua verve, à sua atitude, teria de se juntar um look sofisticado, moderno, chique. Mariza era uma mestiça de cabelo ruivo muito comprido – atado numa trança. Foram João Rolo e Eduardo Beauté quem lhe deram o look Mariza, o seu símbolo, o seu emblema: cabelo curto platinado, outfit de diva, de superstar. E era fotogénica, sim. E telegénica. E com vocação para a exposição. Para dar cor ao fado e fazer com que um novo público sentisse empatia por ela e, como efeito, passasse a consumir a canção portuguesa.

Tinha outfit, tinha uma figura extravagante. Não tinha uma grande canção – ainda. Foi buscar essa grande canção a Amália. À poesia de Amália. Em 2001, Mariza editou o seu primeiro álbum, “Fado em Mim”. O single desse álbum foi ‘Ó Gente da Minha Terra’, um poema de Amália Rodrigues musicado por Tiago Machado, teclista de uma banda a que Mariza pertencera – os FunkyTown, num tempo em que Mariza cantava, queria cantar, mas não queria cantar o fado. Tiago Machado era filho de José Machado, teclista dos Chinchilas (banda de Filipe Mendes, aka Phil Mendrix) e trazia muita música nos genes. Acabou por ser a canção estandarte de Mariza. Até hoje.

O álbum foi gravado em Salvaterra de Magos, no estúdio Pé de Vento, aos solavancos – à medida que iam juntando dinheiro para pagar as horas de estúdio. Não foi editado em Portugal porque se achava que o fado não vendia. Com a exceção de Amália Rodrigues, de Carlos do Carmo e de três ou quatro novos talentos, o fado continuava a ser uma música marginal, periférica e mal-amada. Foi uma pequena editora holandesa, a World Connection, que arriscou em Mariza e a tornou a sua cabeça de cartaz. Tudo fez para promover Mariza no circuito da World Music e Mariza tornou-se internacional ainda antes de se tornar estimada no seu país. Após a exposição internacional, passou a ter exposição em Portugal. O álbum “Fado em Mim” vendeu 120 mil exemplares em Portugal – muito devido a ‘Ó Gente da Minha Terra’, um hino nacional paralelo. O tema apela à saudade (ainda que se esteja perto). Apela ao reconhecimento. À gratidão. Os arabescos na voz de Mariza fizeram deste tema uma das canções mais reconhecidas da moderna música portuguesa. O filme de Carlos Saura, “Fados”, termina precisamente com ‘Ó Gente da Minha Terra’ – como que a agregar a linguagem do blues urbano português numa só canção. Nesta altura, ainda cantava no Senhor Vinho, mas sabia já (sabia-se já) que colocaria o fado novamente (depois de Amália) nos palcos internacionais.

Mariza fez do fado uma viagem mestiça. Transpôs para o fado Miriam Makeba, Nina Simone, Cesária Évora, sonoridades cubanas, brasileiras – a música que a sua mãe ouvia em casa. Deu-lhe swing. Deu-lhe mundo. Deu-lhe palcos maiores. Deu-lhe palcos maiores porque é bem mais uma cantora pop que canta fado. Tem uma atitude pop: as composições, os arranjos, os duetos, a atitude transgressora. Mariza não veio para o fado. Está no fado. Trá-lo. Por vezes chocando de frente com o fado, desconstruindo-o. Faz o fado viajar pelo flamenco, pela música africana, pela música brasileira. Rompeu com as suas convenções. Transgrediu-o. Metamorfoseou-o. Desenhou-lhe uma atmosfera própria – com o público, milhares que sejam, a sentir que lhes canta ao ouvido. Mariza pôs o fado na moda. Inverteu o seu roteiro de desventura, de fatalidade. Na voz de Mariza, reencontramos a Mouraria – mas uma Mouraria acabada de chegar de uma viagem longa pelo mundo.

Setembro de 2005, Lisboa. Concerto de apresentação do álbum “Transparente”. A sua produtora tinha apostado todo o seu capital neste concerto nos jardins da Torre de Belém. Tinham trazido um camião de exteriores da Holanda. Tinham trazido o maestro Jacques Morelembaum (produtor do disco e que fizera os arranjos para o concerto). A Sinfonieta de Lisboa e os seus músicos estavam a postos. Detalhe: chovera todo o dia anterior e na manhã do concerto. O equipamento não podia apanhar chuva e, caso não se realizasse, seria um descalabro financeiro. Um grupo de amigos surfistas garantiu que nessa noite não iria chover. Arriscou-se. Montou-se o espetáculo. Não choveu. Fez-se. Correu bem. Muito bem. O público português aclamando a encenação, o rigor, o perfecionismo. Sobretudo a entrega de Mariza e dos seus músicos. Depois de dias de angústia, na canção final, ‘Ó Gente da Minha Terra’, Mariza, sensibilizada, emocionada, não conteve as lágrimas. Parou de cantar e agradeceu – enquanto o público a aplaudia de pé. Tinha criado, sem o prever, a energia de que a música se alimenta: um ato de dar e receber.

O fado foi considerado Património Imaterial da Humanidade no dia 27 de Novembro de 2011. Mariza cantou na gala em que se celebrou a decisão da UNESCO, em Paris. Muito fizera, em dez anos, para fazer do fado uma canção universal.

E pareceria ternura
Se eu me deixasse embalar
Era maior a amargura
Menos triste o meu cantar

Ouvir também: ‘Beijo de Saudade’ (2008), em dueto com Tito Paris. Francisco Xavier da Cruz, B. Leza, foi convidado para atuar na Exposição do Mundo Português, em 1940. Os seus músicos regressaram a Cabo verde, mas B. Leza ficaria ainda uma longa temporada em Lisboa por motivos de saúde. Foi neste período que escreveu esta morna, como se o Tejo pudesse transportar os beijos das saudades que sentia do seu Mindelo.

101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.