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Bataglia: Salgado chamou-me e pediu um favor

Banqueiro pediu a presidente da Escom para fazer chegar, através de contas na Suíça, 12 milhões de euros a Carlos Santos Silva. O Expresso republica um artigo da edição impressa de 21 de janeiro deste ano ( Artigo publicado na edição do Expresso de 21 de janeiro de 2017)
Miguel A. Lopes / Lusa

Passaram-se nove meses desde o momento em que Hélder Bataglia assumiu parte da verdade. Confrontado a 15 de abril de 2016 pelo Expresso e pelas primeiras revelações dos "Panama Papers", o empresário luso-angolano admitiu na altura haver transferências de 12 milhões de euros, ocorridas em 2008 e 2009 e identificadas no caso de corrupção de José Sócrates, que vinham da Espírito Santo Enterprises, uma companhia offshore que funcionou como um gigantesco saco azul do Grupo Espírito Santo. Nesse momento, reconheceu que as transferências haviam sido feitas por ele para uma conta na Suíça de Joaquim Barroca, um dos donos do Grupo Lena, mas que o dinheiro nada tinha que ver com ele próprio ou com Barroca. Não quis adiantar mais nada. Quando dias depois, a 21 de abril, foi constituído arguido por corrupção e branqueamento de capitais e foi ouvido por procuradores angolanos em Luanda, a pedido do Ministério Público português, recusou-se a esclarecer os contornos desses 12 milhões de euros, "a conselho dos advogados".

Tudo mudou em nove meses. Agora Hélder Bataglia falou. Por iniciativa própria, numa surpreendente aparição em Lisboa há três semanas, a 5 de janeiro, foi ouvido cara a cara por Jorge Rosário Teixeira, o procurador que coordena a investigação a Sócrates, para um interrogatório complementar.

Foram dez horas de conversa. O que revelou irá ter implicações profundas no desfecho da 'Operação Marquês', porque reforça os indícios de culpabilidade do ex-primeiro-ministro. Pela primeira vez no inquérito-crime que está em curso no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), e quando a investigação do caso está prestes a terminar, há uma testemunha direta a contar como o alegado corruptor fez para pagar ao corrompido. E essa versão entronca na tese mais recente da 'Operação Marquês' de que o motivo para a corrupção de Sócrates foram as sucessivas intervenções do primeiro-ministro na Portugal Telecom, em conluio com a cúpula do Grupo Espírito Santo (GES), quer no chumbo em 2007 de uma OPA da Sonae e na separação da PT Multimédia quer mais tarde, em 2010, com a venda da Vivo e a compra da Oi, duas operadoras brasileiras que representaram a maior operação financeira de sempre em Portugal. O MP acredita que os alegados pagamentos a Sócrates, que começaram em 2007 através de um primo (José Paulo Pinto de Sousa), condicionaram a atuação do ex-primeiro-ministro nos negócios que viriam a envolver o GES e a PT.

De acordo com Bataglia, Ricardo Salgado chamou-o à sede do Banco Espírito Santo (BES) para saber se ele lhe podia fazer um favor: queria usar uma das contas pessoais do empresário luso-angolano na UBS, na Suíça, para fazer chegar 12 milhões de euros de forma discreta a um homem chamado Carlos Santos Silva. Perguntou-lhe se sabia quem era esse engenheiro civil e empresário da construção. Bataglia, que era próximo da família de José Sócrates pelo lado dos primos paternos e do tio António Pinto de Sousa, sabia que se tratava de um amigo do então primeiro-ministro, mas não quis saber o motivo das transferências. Em troca pediu ao banqueiro que acrescentasse a esses 12 milhões um pagamento extra de três milhões para si próprio, como prémio pelo facto de ter obtido a licença bancária para o BES Angola (BESA) meia dúzia de anos antes. Foi isso que, segundo ele, ficou acordado com Salgado. Confrontado com estas acusações, o advogado de Ricardo Salgado, Francisco Proença de Carvalho, afirma que "qualquer tese nesse sentido é completamente falsa e recentemente inventada por motivos que deviam ser investigados".

Seis encontros nas Amoreiras

Para executar o plano alegadamente encomendado pelo presidente do BES e líder do Grupo Espírito Santo (GES), Bataglia teria de reunir com Carlos Santos Silva. O modus operandi foi simples: os 12 milhões de euros foram transferidos em seis tranches entre abril de 2008 e maio de 2009. E de cada vez que fez uma dessas transferências, Hélder Bataglia encontrou-se primeiro com Santos Silva no escritório em Lisboa da Escom, o braço não-financeiro do GES para África, de que o empresário luso-angolano era presidente. Ao todo foram seis encontros, ocorridos no 12º andar da Torre 1 do complexo das Amoreiras desenhado por Tomás Taveira. Contactada pelo Expresso, Paula Lourenço, a advogada de Santos Silva, diz que o seu cliente só irá falar "no momento e no local próprios, que é no processo".

Assim que recebeu a primeira transferência diretamente relacionada com estes pagamentos, em abril de 2008, no valor de cinco milhões de euros, vinda de uma conta da Espírito Santo Enterprises no Banque Privée Espírito Santo para uma conta na UBS titulada pela Markwell International, uma das muitas offshores de que era beneficiário, Bataglia entrou em contacto com Carlos Santos Silva. O amigo de Sócrates foi ter com ele às Amoreiras e deu-lhe um papel com um número de conta na Suíça para onde o dinheiro deveria seguir. De acordo com Bataglia, ficou estabelecido entre ambos que os montantes não poderiam ter uma correspondência direta entre entradas e saídas e que era prudente fazer as transferências em datas diferentes daquelas em que tinham ocorrido os depósitos da Espírito Santo Enterprises na Markwell, para não levantar suspeitas.

O estratagema montado para dissimular o percurso entre a verdadeira origem e o verdadeiro destino do dinheiro envolveu, além disso, dois esquemas adicionais de que Bataglia, segundo explicou ao Ministério Público, só veio a aperceber-se mais tarde.

O primeiro subterfúgio foi a elaboração de contratos que justificassem os pagamentos feitos pela Espírito Santo Enterprises ao empresário luso-angolano através da sua offshore Markwell International. Para isso, o saco azul do GES criou um veículo especial, outra companhia offshore chamada Pinsong.

Esses contratos constam dos "Panama Papers", sendo que o Expresso revelou em julho de 2016 como foram forjados entre 2007 e 2008, com assinaturas pré-datadas combinadas numa troca de e-mails entre a Espírito Santo Services e a operadora de offshores Mossack Fonseca (ver texto nestas páginas).

O segundo esquema para criar uma cortina de fumo foi o recurso a uma das contas na UBS de Joaquim Barroca, um dos donos do Grupo Lena, com quem Carlos Santos Silva trabalhava de forma estreita e de quem era amigo. Bataglia tinha recebido apenas um número de conta e foi alertado para o facto de estar a transferir dinheiro não para Carlos Santos Silva mas para Barroca pelo seu gestor de conta na UBS, um suíço de nome Michel Canals, com quem viria pouco depois a criar uma empresa de gestão de fortunas, a Akoya, que está no epicentro do processo 'Monte Branco'.

No encontro seguinte nas Amoreiras, antecedendo mais uma transferência de dinheiro, o próprio Carlos Santos Silva confirmou-lhe que era mesmo assim: o número de conta que lhe dera era de Joaquim Barroca. Esse dinheiro só depois é que passou para uma conta na UBS titulada por uma offshore, a Pinehill, cujo beneficiário era o amigo de Sócrates. Ao Ministério Público, o presidente da Escom contou que só conheceria o dono do grupo Lena muito mais tarde, em 2014, quando Barroca lhe foi apresentado pelo próprio Santos Silva em Angola.

O novo depoimento de Hélder Bataglia sobre os contornos dos 12 milhões de euros é consistente com os indícios que foram sendo acumulados ao longo dos últimos dois anos. Quando foi constituído arguido e interrogado, em abril de 2015, Joaquim Barroca contou que não fazia ideia que movimentos bancários eram aqueles e apontou o dedo a Santos Silva: tinha sido ele a usar a sua conta. Mais: Barroca revelou que tinha assinado ordens de transferência em branco e que as entregara ao amigo de Sócrates, levando o Ministério Público a duvidar sobre até que ponto poderia estar a dizer a verdade. Contactado pelo Expresso, Hélder Bataglia recusou-se a comentar o assunto. Também o seu advogado, Rui Patrício, disse não pretender acrescentar nada ao comunicado que emitiu no dia 14 de janeiro e às peças que tem apresentado no processo.

AS LINHAS CRUZADAS DA PT E DAS TRANSFERÊNCIAS

Março 2007
A OPA da SONAE é chumbada com o voto decisivo da CGD, que antes tinha sido a favor da operação.A Telefónica mostra interesse em comprar a posição da PT na VIVO.

Julho 2007
Primeira transferência da Espírito Santo Enterprises para Hélder Bataglia.

Novembro 2007
São distribuídos pelos acionistas da PT 58% do capital social da PT Multimédia. O GES recebe uma posição de 13% da empresa, no valor de €165 milhões.

Abril de 2008
A Telemar adquire a Brasil Telecom e transforma-se em Oi. Durante este ano, há contactos entre figuras-chave no Brasil e o Grupo Espírito Santo para que a PT pudesse comprar uma parte da Oi. No mesmo mês é feita a segunda transferência para Bataglia. Na mesma altura são transferidos €2 milhões para Joaquim Barroca. Ao longo de 2008 Bataglia recebe as restantes transferências que são encaminhas ao longo do ano e de 2009 para contas de Barroca (ver infografia).

Maio 2010
Primeira das várias ofertas lançadas pela Telefónica à PT para a compra da VIVO.

Junho 2010
A proposta pela compra da Vivo atinge os €7,15 mil milhões. Sócrates está contra, a não ser que isso tenha como contrapartida a entrada da PT no capital de outra operadora brasileira. A 30 de junho a venda da Vivo é vetada pelo Governo.

Julho 2010
A Telefónica sobe a oferta para €7,5 mil milhões e a PT acrescenta à solução um acordo para a compra de 22% da Oi por €3,7 mil milhões.
Sócrates dá luz verde.

[ Artigo publicado na edição do Expresso de 21 de janeiro de 2017 ]