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Empresas de Missão

Existem diversas conceções sobre o que é um negócio social, sendo talvez a mais conhecida aquela que continua a ser divulgada, em todo o mundo, por aquele que é considerado um dos pais do empreendedorismo social - o Prof. Muhammad Yunus. Para Yunus, o modelo do negócio social, vem trazer uma nova dimensão ao mercado de negócios, focados no lucro, previamente existente. É um negócio sustentável, que é capaz de gerar as suas próprias receitas e até lucros, mas que foca a sua operação e o seus objetivos no cumprir de uma missão social ou ambiental, principal desígnio e também indicador de sucesso do negócio. Não é o lucro que determina se o negócio está ou não a ter sucesso, mas sim o real impacto que consegue alcançar. Claro está que, falar em impacto, significa que o negócio terá que garantir que a sua operação esteja em curso, com elevados níveis de performance, o tempo suficiente para se verificar a transformação desejada. Ou seja, tem que ser sustentável no tempo, e gerar lucro que, sendo integralmente reinvestido na missão, permita a sua escala

TIAGO MIRANDA

Mas não há investidores nestes negócios? E como são remunerados? Sim, existem investidores. Mas da mesma forma que a o negócio social dá, aos seus clientes, uma oportunidade de exercerem a sua liberdade e poder de compra de acordo com um paradigma diferente, mais consciente e mais preocupado com as externalidades negativas e positivas do negócio, também vem dar uma nova oportunidade a um outro perfil de investidores - os investidores sociais.  

São investidores mais pacientes - bem como o capital que investem que, por isso, é chamado de "capital paciente". E porque é que são mais pacientes? Porque entendem que a grande maioria das transformações sociais e ambientais demoram o seu tempo, e ajustam as suas expectativas nessa medida. Mas não é só na dimensão temporal que esse ajuste é feito. Também na remuneração do investimento realizado existe uma diferença e, normalmente, este perfil de investidores está disposto a receber menos pelo seu dinheiro, do que um investidor tradicional. Desde que, claro está, exista uma demonstração eficaz de que existe impacto positivo atribuível ao negócio investido. 

Mas, para Yunus, apenas faz sentido falar em negócio social, quando os dividendos não são distribuídos, sendo totalmente reinvestidos no negócio, o que, na prática, significa que os investidores apenas recuperam o que investiram. É uma visão, se quiserem, mais radical do que outras correntes que consideram a possibilidade de retirar dividendos da empresa, desde que a prioridade continue a ser dada à missão, e ao seu desenvolvimento.  

É o caso, por exemplo, da TOMS SHOES, marca americana de sapatos famosa pelo seu modelo "Buy-One-Give-One", no qual por cada par de sapatos comprado, a marca oferece um par de sapatos a uma criança necessitada, normalmente através da intermediação de organizações sociais que trabalham com estes segmentos mais desfavorecidos. Este modelo foi convertido, em 2019, num modelo em que a empresa doa 1/3 dos seus lucros, seja em donativos, seja através de parcerias com organizações comunitárias, para criarem mudança sustentável. 

A Social Enterprise UK, no Reino Unido, define empresas sociais como aquelas que: 

  • Têm uma missão muito clara, que se encontra definida nos estatutos ou outros documentos de governança da empresa; 
  • Geram mais de metade das suas receitas através do mercado; 
  • São totalmente orientadas para a missão; 
  • Reinvestem pelo menos metade dos seus lucros em fins sociais; 
  • São totalmente transparentes sobre a forma como operam e a comunicar os seus impactos (positivos e negativos). 

Mas, seja qual for o modelo e as diferentes ponderações de variáveis com as quais se pode definir uma empresa ou negócio social, existe um conjunto de três características que são comuns a todas essas aceções: 

  • São sempre soluções que criam produtos ou desenham serviços para colocar no mercado (para segmentos mais desfavorecidos, mas também para outros segmentos, muitas vezes com modelos económicos criativos); 
  • Têm sempre objetivos sociais ou ambientais, e procuram utilizar processos e sistemas de decisão responsáveis e transparentes na sua prossecução; 
  • Procuram sempre a geração de receitas próprias, e o lucro, uma vez que não querem depender de donativos ou outros apoios e ajudas de terceiros. O mais comum é adotarem modelos híbridos. 

Tudo isto pode parecer ficção científica para muitos gestores, e sociedade em geral, que ainda não têm bem a noção real do que é o ecossistema dos negócios sociais, da inovação social ou até da própria temática da sustentabilidade, apesar de falada até à exaustão nos dias que correm. Mas a verdade é que esta é uma realidade já presente nos ordenamentos jurídicos de alguns países, nomeadamente europeus, como a França, que, com os arts. 169 e 176 da Lei PACTE ( Plan d’Action pour la Croissance et la Transformation des Entreprises), criou, em 2018/2019, o regime das Enterprises à Mission, institucionalizando o triple bottom line, como regra (ou seja, a possibilidade da institucionalização, nos estatutos da empresa, de objetivos de impacto social e ambiental, para além dos objetivos de lucro, que são monitorizados e avaliados por entidades independentes, como requisito para a manutenção desse estatuto). E, assim, introduziu também, no mundo das corporações, o conceito de "raison d'être" -  o famoso reason why, de Simon Sinek. A primeira grande empresa a assumir, em França, o estatuto de enterprise à mission foi a Danone que, em Julho de 2020, em plena pandemia, introduziu esta alteração nos estatutos da empresa, dando o exemplo a outras. 

Mas também em Itália, com a lei das Empresas Sociais, a Lei 208 de 2015, que entrou em vigor em 2016, ou na Bélgica onde estas empresas se podem registar como "sociedades com impacto social" e também no Reino Unido e nos Estados Unidos, surgem regulações específicas para este tipo de empresas. E isto é importante porquê? 

Primeiro, porque reconhece a existência e a importância de um crescente número de organizações que não se revêm nos paradigmas atuais de sociedades comerciais e que, por essa razão, precisam de conformação legal que enforme a sua particularidade. 

Em segundo lugar, porque permite criar condições - nomeadamente alguns benefícios fiscais, e outro tipo de incentivos económicos, mercê do reconhecimento do valor que geram para a sociedade -, que lhes proporcionam um ambiente regulatório favorável, fomentando o seu crescimento e prosperidade. 

A discussão sobre a possibilidade de existir um regime semelhante em Portugal já vem de há muitos anos e tem muitos defensores, em setores diversos da sociedade. Penso que não podemos deixar que aconteça com esta matéria, o que aconteceu com outros assuntos estratégicos para o País - uma procrastinação incompreensível. Está mais do que comprovada a incapacidade do Governo, bem como do mercado, de criar soluções sustentáveis para muitos dos problemas sociais e ambientais básicos do País. É hora de se dar a oportunidade a muitos modelos inovadores de sucesso, de terem uma oportunidade real de escala, com regulamentação clara, sistemas de incentivos impactantes, e um caminho firme para a consolidação do seu impacto, que não esteja refém de ciclos eleitorais.