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Valor em cascata: como quebrar os ciclos de pobreza?

O ponto fundamental é quebrar ciclos de pobreza. Porque todos, incluindo os negócios de grande retalho, naturalmente, beneficiam deste quebrar de ciclos de pobreza. Sobretudo se forem estes negócios, com o seu poder e a sua capacidade de mobilização de recursos, os grandes impulsionadores das mudanças a este nível

A propósito do grande retalho, e das suas cadeias de valor, gostava de deixar uma curta reflexão sobre o enorme desafio, mas também a grande oportunidade de inovação social - e, também, diria, de elevação social -, que constitui a necessidade de garantir justas condições de remuneração e dignidade aos fornecedores, e que é, muitas vezes, um tema de equilíbrios e balanços delicados, no qual é difícil definir responsabilidades e limites da mesma. Mas, diria eu, que tudo - como quase sempre acontece - depende da perspetiva que se adote.

Alan Jope, CEO da Unilever em 2021 (hoje, o novo CEO, nomeado o ano passado, é Hein Schumacher), sucessor do mítico CEO Paul Polman, afirmava, nessa altura, e cito, que “as duas maiores ameaças que o mundo enfrenta hoje são as mudanças climáticas e a desigualdade social”. No mesmo ano em que esta empresa assumia o compromisso de garantir que, até 2030, todos os que fornecem bens e serviços diretamente para a empresa iriam ganhar, pelo menos, um salário mínimo. Acrescentou ainda que seriam feitos investimentos anuais de 2 mil milhões de euros anuais até 2025, em empresas pertencentes ou administradas por grupos sub-representados da sociedade - empresas de pequena e média dimensão geridas por mulheres, minorias étnicas ou pessoas com deficiência. E rematava dizendo que isto, na sua opinião, iria contribuir para ajudar a quebrar o ciclo de pobreza.

E este é, no meu entender, o ponto fundamental - quebrar ciclos de pobreza. Porque todos, incluindo os negócios de grande retalho, naturalmente, beneficiam deste quebrar de ciclos de pobreza. Sobretudo se forem estes negócios, com o seu poder e a sua capacidade de mobilização de recursos, os grandes impulsionadores das mudanças a este nível.

Num Relatório da Autoridade da Concorrência, de abril de 2023, no qual tecem uma série de recomendações relativas à cadeia de valor dos bens de consumo, avança-se com uma consideração sobre o impacto que o contexto atual de inflação - originado sobretudo pela perturbação dos mercados agrícolas globais gerado pela guerra na Ucrânia, as alterações climáticas e o aumento do custo da energia -, tem tido no índice referente aos produtos alimentares não transformados, que registou, em Fevereiro de 2023, um aumento de 20,1%. Um indicador que nos deve preocupar e que, na minha opinião, deve ser um motivo adicional para sermos mais eficazes na prevenção de desigualdades sociais que possam advir, também, desta situação conjuntural.

Mas mais do que falar dos riscos de concorrência por fixação de preços ou pela excessiva concentração, penso que o mais importante é amplificar o que de positivo já resulta de muitas práticas comerciais que têm vindo a ser adotadas, em Portugal, por grandes cadeias de retalho alimentar.

Nomeadamente o crescente investimento que tem sido feito no comércio local, no comércio de proximidade, levando estes grupos a estarem mais perto dos bairros, da vizinhança, nos grandes centros urbanos.

Este fenómeno, transversal no setor, e que tem vantagens óbvias e claras para os consumidores, que têm cada vez mais acesso - e cada vez mais simplificado -, a uma crescente panóplia de oferta a este nível, comporta, por outro lado, alguns riscos, como o de poder implicar o desaparecimento de muitas outras iniciativas de comércio local circundante que, deixando de ter condições de subsistência, acabam por encerrar, podendo contribuir para aumentar ciclos de pobreza. Mas este risco pode, no meu entender, ser transformado em oportunidade. Para todos. Oportunidade de fazer inovação social.

E esta oportunidade atravessa os diversos pontos da cadeia de valor. Bastando, para tal, que se olhe para a cadeia de valor como um conjunto de reais parceiros (e não como "meros fornecedores", na aceção mais tradicional, e não tão construtiva, da palavra) e que se vejam os riscos de impacto negativo das atividades, como oportunidades de criar algo novo, com geração de valor para a sociedade. Como?

- Encetando parcerias com fornecedores para a criação de novos negócios, ou para a ampliação de negócios existentes, ou apenas investindo no seu desenvolvimento;

- Criando estratégias de Responsabilidade Social Corporativa (RSC) fortes, em alinhamento com os seus negócios, que mais do que eliminar externalidades negativas da atividade, procurem trazer inovação e multiplicação de valor social, contribuindo para criar comunidades mais resilientes e fortes;

- Ou implementando práticas de procurement mais conscientes, que criem oportunidades, por exemplo, aos chamados negócios sociais (negócios que têm, no centro da sua missão, a criação de valor para a sociedade) - o chamado Social Procurement, sobre o qual já tive a oportunidade de falar noutro contexto.

Sei que, em Portugal, as grandes empresas de retalho, como a Sonae e outras, têm seguido estes caminhos e que já existe um grande nível de consciência, que vai muito mais além do "business as usual". Mas diria que muitas outras oportunidades estão ainda por explorar. E que é importante que esta onda não só não pare, como cresça exponencialmente. Enquanto houver pontos, neste grande sistema, que sejam frágeis e que estejam em rutura, todo o sistema sairá prejudicado. E a pobreza, o grande “bicho papão” que a todos nos preocupa, continuará a estar no horizonte.

Eu sou dos que acredito que isso pode ser revertido, e que tudo começa na forma de olhar para o desafio: É um peso, uma responsabilidade, ou é, antes, uma grande oportunidade? Escolho esta última.

E acredito que se trata disso mesmo – uma questão de escolha. E, como tal, de responsabilidade. De criar prosperidade? Sim. Mas em cascata.

Mário Henriques

Oiça aqui os episódios do podcast Ser ou não ser: