SER

O advogado que queria mudar o mundo

Se calhar, se voltasse atrás, podia ter sido um jurista diferente. Mas agora posso ser mais que isso. Posso estar ao lado de tantos, que já estão a fazer tanto, a contribuir para que façam mais e melhor. Tudo se completa. Tudo faz sentido. Tudo está Direito. Ainda que por linhas tortas

Lembro-me, com um misto de ternura e de frustração, dos meus tempos, muito curtos, no mundo da advocacia. Mas lembro-me, sobretudo, dos tempos, mais longos,que osantecederam. A imagem que me assalta é a de uma montanha-russa, que começou num “Sonho de uma noite de Verão”,e que culminou no choque duro com a realidade do exercício da profissão.

Lembro-me de pensar, quando comecei o Curso de Direito, que queria trazer mais justiça ao mundo, combater grandes causas, com a brandura da temperança, a força da norma,e o equilíbrio do caso concreto e da ponderação. Era um mundo fascinante de possibilidades, no qual sonhei ser o super-herói da mão magnânima, que ao mesmo tempo que aponta o caminho, suporta o caminhante. Até acabar o curso, e começar a exercer a advocacia, no mundo das empresas.

Aí percebi que teria sempre um grande dilema –entre os interesses de quem representava e que, deontologicamente, teria de defender e, do outro lado, as minhas ambições de imparcialidade, isenção e distanciamento. Começou aí uma desilusão, apesar de grandes mestres que tive no caminho.

Para resumir –achei que não era por aqui que iria mudar o mundo. Mergulhei no mundo das empresas, tornei-me empreendedor, empreendedor social, formador e mentor de outros empreendedores e hoje finalmente, professor e inquieto crónico da transformação e inovação social. E –achei eu –finalmente na minha praia.

Mas o tempo, a idade,e alguma capacidade de desconstrução, levou-me de volta aos tempos do sonho de ser jurista. E, com o olhar sereno e curioso de um narrador que vê a sua própria história, à luz do que, entretanto, viveu, percebi hoje, finalmente, que o jurista, o advogado e a responsabilidade e capacidade de influência que têm, são fundamentais para a construção de um novo paradigma. Como? Vamos ver:

  • Regulamentação e normas de sustentabilidade–mais do que nunca, face à persistente resistência do ser humano em adoptar os comportamentos melhores para si próprio, enquanto coletivo, os juristas são peças chave na compreensão dos movimentos da sociedade, na deteção dos seus padrões e na determinação do que poderá ser o melhor equilíbrio possível, em cada momento, entre os direitos e interesses individuais, e os direitos e interesses do Coletivo. Normativos como os Standards Europeus de Report Sustentável, em vigor a partir de Janeiro de 2024, demonstram bem o papel fulcral que esta profissão tem no desenho do futuro da sociedade e do Planeta. É discutível se esta será a forma mais pedagógica ou eficazde incentivar umamudança que se necessita seja de fundo e sustentável,mas, independentemente de juízos de valor, ela não deixade ser uma peça fundamental no processo;
  • Influência decisiva no desenho de políticas públicas–a capacidade que os juristas têm de influenciar o curso das principais medidas do coletivo das sociedades em que se integram é, sem dúvida, mais um superpoderao alcance de poucos;
  • Capacidade de orientar a justiça casuística, no dia a dia das pessoas,nos eventos e acontecimentos mais importantes da sua vida–o papel de orientador e defensor das causas mais importantes nas vidas de cada indivíduo, nas alturas de maior tensão e necessidade, é de uma enorme responsabilidade e pode fazer a diferença nos comportamentos;
  • O suporte fundamental enquanto fonte de temperança, bom senso e aconselhamento “quase terapêutico” e pedagógico dos clientes–servindo de azimute e referência, com a inerente responsabilidade que isso implica.

Por tudo isto, e a propósito da necessidade imperativa de entendermos como cada pessoa, cada profissão, cada agente, pode contribuir, na sua justa medida e dentro da dimensão do seu universo particular, para o acelerar de mudanças fundamentais para a melhoria de qualidade de vida de pessoas e planeta, eu diria que os juristas (e os advogados em particular), têm de facto super poderes únicos.

A pedra de toque e fator fundamental,que decidirá qual a real pegada que estes profissionais podem deixar no mundo, será sempre a de nunca se esquecerem do que é fundamental. E, do sítio de onde euolho para isto, é simples –o fundamental é nunca deixarem de perceber que estão ao serviço. Não de si próprios, mas de uma sociedade que deposita nas suas mãos os seus receios mais profundos e as suas conquistas mais ousadas.

Com conhecimento, com génio e arte, mas sobretudo com uma profunda capacidade de se relacionarem com as necessidades do mundo e os interesses de todos. Se calhar, se voltasse atrás, podia ter sido um jurista diferente. Mas agora posso ser mais que isso. Posso estar ao lado de tantos, que já estão a fazer tanto, a contribuir para que façam mais e melhor. Tudo se completa. Tudo faz sentido. Tudo está Direito. Ainda que por linhas tortas.

Mário Henriques

Oiça aqui os episódios do podcast Ser ou não ser: