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Bruxelas aperta regras do ESG, com novas taxonomias e ratings. Presidente da bolsa explica as mudanças

A Comissão Europeia avançou com um novo pacote sobre Finanças Sustentáveis com o objetivo de harmonizar as regras e obrigar as empresas a serem mais transparentes na comunicação dos temas de sustentabilidade. Isabel Ucha, presidente da Euronext Lisbon, deu uma entrevista ao Expresso SER onde explica o que vai mudar na vida das empresas. E deixa algumas críticas

PHIL BOUTEFEU

As contas feitas em Bruxelas por Ursula von der Leyen mostram que a União Europeia vai precisar de mais 700 mil milhões de euros adicionais, por ano, para conseguir atingir os objetivos do Green Deal, sendo que a fatia de leão desse investimento terá de vir do setor privado. Para conseguir esse investimento, a Comissão Europeia tem avançado, desde 2018, com várias diretivas e enquadramentos regulatórios sobre Finanças Sustentáveis para ajudar à captação de fundos privados que financiem a transição energética e ajudem a cumprir o Acordo de Paris e os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS).

Aos novos regulamentos e diretivas de reporte de informação não financeira, a Comissão Europeia vem juntar agora uma série de novas regras sobre taxonomia, sobre “transição financeira” e ainda sobre os ratings ESG que vão passar a ser mais transparentes. Isabel Ucha, presidente da Euronext Lisbon, recebeu o Expresso SER na sede da bolsa de Lisboa onde explicou, uma a uma, as novas propostas e os impactos que vão ter na vida das empresas.

“O objetivo é harmonizar, ou seja, aquilo que é ‘verde’ para quem investe tem de ser ‘verde’ para quem está a vender uma obrigação ou uma ação”, explica Isabel Ucha. A entidade que gere a Bolsa de Valores elogia as alterações propostas pela Comissão Europeia, mas mostra-se muito crítica em relação à quantidade e à complexidade das novas regras europeias. “O que se pretende é que as empresas transitem para uma utilização de recursos sustentáveis, para a redução de carbono, o objetivo não é produzir um relatório de 500 páginas que depois ninguém vai ler e ninguém percebe. As empresas não conseguem acompanhar esta avalanche regulatória”, desabafa a presidente da Bolsa. Pode ler aqui a segunda parte desta conversa com Isabel Ucha.

A Comissão Europeia acaba de publicar um novo pacote sobre Finanças Sustentáveis. Que pacote é este?
Isto é um pacote da Comissão Europeia (CE) que vem na sequência de uma temática mais abrangente, da promoção das Finanças Sustentáveis, cuja primeira versão foi lançada em 2018. A ideia é que mais capital seja canalizado através do mercado de capitais para promover os objetivos de sustentabilidade, leia-se os ODS das Nações Unidas e o Acordo de Paris. A CE desde 2018 tem vindo a emitir vários instrumentos de enquadramento, uns de natureza regulatória, impositivos, e outros de natureza recomendatória, de adoção voluntária. São pacotes que são consensualizados entre a CE, o Parlamento Europeu e o Conselho Europeu e, portanto, há aqui uma grande dose de influência política. Aliás, a perceção que existe é a de que este tema das Finanças Sustentáveis tem sido muito mais empurrado politicamente do que propriamente um tema que tenha nascido do ecossistema financeiro, sendo que o ecossistema financeiro tem participado ativamente.

Os políticos estão a empurrar no bom sentido?
Sim, empurrar no bom sentido, ou seja, os políticos a empurrarem claramente o mundo financeiro, através deste enquadramento regulatório na Europa, a ser mais ativo nesta temática, para se conseguir atingir os objetivos mais rapidamente.

A abordagem que está a ser aqui seguida é muito focada na transparência. O tema das Finanças Sustentáveis não implica nenhuma obrigação para as empresas serem mais sustentáveis, isso é tratado noutros quadros, não no tema das Finanças Sustentáveis. O que faz é promover a transparência, a harmonização de regras, de conceitos, a standardização para que os investidores e as empresas comuniquem melhor, tenham melhor informação e com isso façam melhores investimentos.

E este pacote também vem ajudar a evitar publicidade enganosa por parte das empresas.
Sim, evitar informação pouco clara, informação enganosa, greenwashing, socialwashing ou ESG Washing. É isso que está em causa, ter standards idênticos para todos, de modo a que um investidor, quando faz investimento num produto, num fundo, numa ação ou numa obrigação "verde", saiba exatamente o impacto e saiba comparar os produtos. O pano de fundo destas medidas é este, da comparabilidade de empresas.

O objetivo foi focar mais no tema da Transição Financeira, ou seja, como é que as finanças podem apoiar a transição. Há uma perceção clara de onde é que nós queremos chegar: queremos chegar a uma economia de carbono zero, onde tudo é reciclado, onde a utilização dos recursos é sustentável, onde protegemos a água e os recursos marinhos, mas o grande desafio é como é que lá chegamos. Este é que foi o objetivo da CE, foi o de dar orientações no que respeita à parte financeira e aos mercados, de como é que se pode apoiar essa transição.

Porque é que este pacote surge agora?
Porque começaram a surgir algumas dificuldades com este processo das Finanças Sustentáveis. Por um lado, porque nem todas as empresas partem do mesmo ponto de partida, e com isso evitar algumas estratégias de exclusão mais radicais. Como aqueles fundos de investimento ou aqueles investidores que dizem: "eu agora não invisto nestas empresas porque elas são castanhas, ou porque não estão alinhadas com a taxonomia, ou porque não são suficientemente verdes”. E com isso está-se a dificultar o processo de transição dessas empresas. O importante é apoiar todas as empresas, as que estão mais e menos avançadas na transição.

O objetivo é harmonizar, ou seja, aquilo que é ‘verde’ para quem investe tem de ser ‘verde’ para quem está a vender uma obrigação ou uma ação.”

Há pessoas que continuam a achar estranho fundos ESG investirem em ações de empresas como a Galp ou outras petrolíferas.
Exatamente. Um dos documentos que fazem parte deste pacote, pegando no exemplo da Galp, é um documento sobre como financiar a transição, o “Transition Finance”. Este pacote define o conceito da "transição", o conceito de "plano de transição" e o conceito de "financiar a transição", para as empresas e para os investidores. Esta parte explica precisamente isto: uma empresa que tenha os seus objetivos alinhados com os objetivos baseados na ciência, que tenha um plano claro de atividades e investimentos para atingir esse objetivo e que depois reporte estes desafios, é uma empresa que poderá mais facilmente ter acesso a este financiamento à transição. Mesmo que seja uma empresa no setor do “oil & gas”, como é o caso da Galp, ou uma empresa do setor dos cimentos ou construção.

Estamos a falar de financiamento através da banca ou através da bolsa?
Estamos a falar de todas as formas de financiamento, porque quer através do mercado de capitais, quer através do financiamento bancário há um claro movimento no sentido de os investidores serem cada vez mais exigentes, seja os bancos, seja os compradores de obrigações ou de ações. Estes fornecedores de capitais estão a ser eles próprios pressionados em perceber como é que as empresas estão as fazer esta transição.

Este documento vai entroncar com outras peças legislativas, como a Diretiva de Reporte de Sustentabilidade (em inglês, Diretiva CSRD) que vai entrar em vigor a partir do próximo ano, e as empresas vão ter de reportar mais informação sobre estas temáticas. Há duas grandes peças relativas à transparência de reporte: por um lado esta CSRD que se aplica às empresas e, por outro lado, a Diretiva de Investimento Sustentável (em inglês, SFDR) que se aplica aos investidores e às empresas financeiras. Com este novo pacote, a Comissão Europeia está a abranger todo o espectro, quer aqueles que financiam, quer aqueles que são financiados. O objetivo é harmonizar, ou seja, aquilo que é “verde” para quem investe tem de ser “verde” para quem está a vender uma obrigação ou uma ação.

PHIL BOUTEFEU

Este pacote da CE também procura harmonizar as regras do rating ESG.
Sim, outro dos aspetos importantes deste pacote é a harmonização de certo tipo de práticas financeiras, em concreto os ratings ESG que são extremamente importantes. Já conhecemos o rating financeiro das empresas e a importância que eles têm em classificar o risco das empresas e permitir com isso fazer o pricing de diferentes instrumentos. Com os ratings ESG acontece exatamente a mesma coisa, ou seja, cada vez mais o pricing das empresas tem em conta aspetos financeiros e aspetos de sustentabilidade e o rating ESG vai complementar o rating financeiro. Portanto, haver rating credíveis, com metodologias claras, transparentes e que possam ser usados pelos investidores traz uma enorme vantagem para o desenvolvimento dos mercados.

Li algures que a tendência é haver um afunilamento do mercado, ou seja, quem já faz hoje o rating financeiro acabe também por ficar com este negócio.
Neste momento há muitos fornecedores de rating ESG que utilizam linguagens, metodologias e escalas diferentes. À medida que as normas forem sendo standardizadas, isto torna-se também num produto muito mais standardizado e, portanto, a possibilidade destas entidades se diferenciarem vai-se diluindo. E é normal que haja alguma tendência para a concentração. Agora, se vão ficar exclusivamente aquelas que hoje já fazem rating financeiro ou se vão persistir outras mais especializadas no ESG, é uma questão em aberto.

Acho que é desejável que haja mais entidade e mais concorrência, era melhor para o mercado e as empresas teriam mais opções. Muitas vezes o que acontece é que estas grandes entidades se concentram muito nas grandes contas e, às vezes, os investidores mais pequenos ficam com menos serviços. Era também útil que houvesse uma maior dispersão geográfica destas empresas: as grandes casas empresas americanas claramente que tomaram conta do rating financeiro. Neste momento, acho importante que existam entidades de rating ESG de base europeia, e era bom que se mantivesse essa diversidade.

Resumindo, esta parte do pacote procura regular as empresas que fazem o rating ESG.
Sim, a ideia é obrigar primeiro estas empresas de rating ESG a fazerem o registo na ESMA (Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados), a entidade reguladora dos mercados financeiros europeus, no fundo o chapéu das CMVM de cada país. Com esse registo estas entidades vão ter de ter mais transparência nas metodologias que aplicam, porque hoje em dia muitos investidores e empresas ficam sem perceber de onde é que vem aquele rating. A CE não vai definir metodologias, mas vai obrigar a mais transparência das metodologias utilizadas e nas fontes dos dados utilizadas. Outro aspeto muito importante é a prevenção de conflitos de interesse.

Isso para evitar que as empresas criem as suas próprias empresas de rating.
De acordo com a proposta, isto ainda não é um regulamento, o que já existe para as empresas de rating de crédito é transposto também para o rating ESG. Por exemplo, uma empresa que forneça rating ESG não pode, por exemplo, fazer consultoria ESG, não pode produzir índices benchmark ESG que incluam essas empresas, obviamente não podem investir, tem de ter separado o rating de crédito do rating ESG, e não pode exercer atividade bancária, de seguros e de resseguros. Têm de ter independência total destas atividades. Isto vai gerar algumas reações porque algumas delas hoje já acumulam estas atividades e até complementam as receitas de uma coisa e da outra.

Haver ‘rating’ credíveis, com metodologias claras, transparentes e que possam ser usados pelos investidores traz uma enorme vantagem para o desenvolvimento dos mercados”.

Tudo isto ainda são propostas da Comissão Europeia?
Sim, ainda vai haver discussão no Conselho Europeu, com o Parlamento, e ainda há uma fase no final, que são os “trílogos”: quando não se consegue chegar a consenso sentam-se à mesa para chegar a um documento final.

A ideia depois é transformar isto em diretivas e regulamentos?
Sim, no caso dos ratings ESG vão ser regulamentos, de aplicação obrigatória. No caso do documento sobre conceitos é um documento de consulta, informativo, de adoção voluntária. E a taxonomia também sofreu uma evolução muito significativa com este pacote.

O que muda no tema da taxonomia?
Se se recorda, a taxonomia tem o pilar do ambiente, o pilar social, o pilar de governance. A Comissão Europeia começou pelo pilar ambiental e dentro do pilar ambiental definiu seis grandes áreas de atuação da taxonomia. Começou pelas primeiras duas, que foram as “atividades para mitigação dos efeitos ambientais” e “atividades para adaptação aos efeitos ambientais”, e durante algum tempo tivemos a digerir estas duas que já foram bastante extensas e complexas. Agora desenvolveu as outras quatro. Estas outras quatro abrangem: “atividades com impacto na redução da poluição”, “atividades que tenham impacto na gestão dos oceanos, água e recursos marinhos”, depois “atividades relacionadas com o uso sustentável de recursos, essencialmente economia circular e reciclagem” e, finalmente, “atividades com impacto positivo na preservação do desenvolvimento da biodiversidade”. São as quatro áreas que faltavam, ou seja, agora temos o quadro completo do pilar ambiental, com indicadores técnicos que permitem dizer se uma atividade é sustentável ou não do ponto de vista ambiental.

A ideia é agora desenvolver estes quatro setores.
Agora já estão desenvolvidos. Por exemplo, uma entidade que esteja no setor da água, que antes não estava abrangida pela taxonomia, agora já tem um enquadramento e podemos dizer se a forma como esta empresa da água gere os recursos hídricos é sustentável ou não, porque já estão definidos os critérios, os requisitos técnicos e o âmbito propriamente dito da atividade. Agora há muito mais atividades abrangidas pela taxonomia, o que vai fazer com que haja muito mais entidades que ao reportarem os seus indicadores de sustentabilidade, tenham de se referir à taxonomia. Isto liga com a Diretiva de Reporte da Sustentabilidade. Como sabe, as empresas que estão abrangidas por esta diretiva têm que divulgar as atividades, as receitas, o CapEx (investimento em capital), e o OpEx (despesa operacional) alinhados com a taxonomia.

Isso na prática quer dizer o quê?
Posso dizer que 10% ou 20% do meu CapEx está em atividades que estão alinhadas com a taxonomia. Já houve um primeiro ano de aplicação dos primeiros dois requisitos e agora, a partir de 2024, vamos começar a aplicar aos outros quatro pilares. Vai haver muito mais informação sobre receitas alinhadas com a taxonomia, despesas de capital e despesas operacionais alinhadas com a taxonomia. Isso vai ter um impacto enorme porque temos muito mais atividades abrangidas, porque há muito mais empresas que vão ter de reportar esses indicadores. E não são só as empresas que estão diretamente abrangidas. Como é obrigatório reportar os chamados scope 2 e scope 3, - por exemplo, a pegada de carbono indireta, que é produzida pelos fornecedores, - as empresas que são obrigadas a reportar este CapEx e OpEx vão ter de que exigir aos seus fornecedores que reportem essa informação e isso vai ter um impacto enorme.

Isso entronca com aquela outra diretiva do Dever de Diligência.
O “due diligence” está mais focado nos aspetos estratégicos e na definição dos produtos, mas também vai-se refletir na cadeia de valor. O grande objetivo deste enquadramento é que isto tenha impacto em cascata para as empresas mais pequenas. Agora o grande desafio é que as empresas mais pequenas estão menos apetrechadas e tudo isto é razoavelmente complexo do ponto de vista de compliance e é algo que as autoridades têm de ter cuidado e atenção. Tem de haver muito cuidado na aplicação da proporcionalidade nestes instrumentos de reporte.

Para não dar cabo do negócio.
Exatamente, só para falar da taxonomia, ela tem milhares de páginas, já para não falar de outros instrumentos regulatórios que estão a surgir e que vão continuar a surgir. É preciso ver que as empresas mais pequenas não têm a mesma preparação e os recursos.