Foi no passado dia 13 de junho que a Comissão Europeia publicou um novo pacote de propostas para alterar as regras das Finanças Sustentáveis na União Europeia. Desde 2018 que a entidade liderada por Ursula von der Leyen tem vindo a publicar várias diretivas e regulamentos neste sentido e agora voltou a apresentar um novo pacote de regras que ainda terá de passar pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho Europeu. Bruxelas completa a taxonomia que estava em falta no pilar ambiental, define novos conceitos e regras sobre “transição financeira” e “financiamento para a transição”, e ainda sugere uma série de alterações à forma como as empresas de rating ESG produzem e comunicam as notações não financeiras.
Aqui, nesta primeira parte da entrevista, Isabel Ucha explica, uma a uma, todas as alterações e os impactos que vão ter na vida das empresas. Nesta segunda parte da entrevista, a presidente da Euronext Lisbon fala sobre as dificuldades que muitas empresas estão a sentir, e que vão sentir ainda mais em 2024, para cumprir uma “esta avalanche” de novas regras, “muito extensa, muito complexa e muito exigente do ponto de vista do compliance e da capacidade de digestão das empresas”.
A presidente da Euronext Lisbon pede bom senso às autoridades europeias e alerta que um dos perigos do excesso de legislação sobre a sustentabilidade é a excessiva concentração de empresas para ajudar a diluir os custos de contexto: “Há um incentivo claro à consolidação, o que não é necessariamente mau nalguns setores, mas vai ser negativo noutros setores onde vão desaparecer empresas que fazem efetivamente falta”.
Isabel Ucha reconhece que parte das novas medidas propostas pela Comissão Europeia vai facilitar a vida à gestora da bolsa que ganha novas ferramentas para lançar novos índices no mercado. E para quando um PSI ESG? A presidente da Bolsa de Valores não se compromete com datas, mas deixa um recado: “Para uma empresa portuguesa com alguma dimensão estar no Euronext 100 Paris Align, ou estar no Low Carbon 100, ou estar no Eurostoxx 600 ESG, porventura é muito mais importante do que estar num PSI ESG que é muito local, que vai ser sempre um índice local”.
As novas regras europeias sobre Finanças Sustentáveis vão aplicar-se sobretudo às cotadas?
Não, a diretiva de Reporte de Sustentabilidade aplica-se a todas as grandes empresas, todas as que não são PME, mais as PME cotadas, embora com alguma dilatação no tempo. E depois como todas as grandes empresas têm empresas mais pequenas nas suas cadeias de fornecimento, isto potencialmente tem um impacto muito significativo na economia. O tecido económico é constituído por muitas PME e temos de ter muito cuidado com o impacto que estas coisas vão ter. A Europa exporta para muitas regiões do mundo e nessas regiões não existe este tipo de abordagem. A Europa é o espaço mundial onde o enquadramento regulatório da sustentabilidade está mais avançado, é mais abrangente.
Mais do que os EUA?
Sim, completamente. Os EUA têm uma abordagem menos regulatória e apostam mais na vertente de apoiar o investimento na transição sustentável.
E alguns Republicanos nem podem ver o ESG à frente.
Sim, há alguns setores políticos que são mais avessos à regulação, sobretudo em algumas regiões específicas dos EUA. Acho que o fenómeno é muito localizado nas regiões onde, por exemplo, há mais empresas ligadas às indústrias pesadas ou às energias fósseis. São estes estados que têm sido mais vocais nestes temas, não os EUA como um todo. A linguagem dos EUA tem sido muito mais a de incentivar as tecnologias verdes, porque a perceção que existe no mundo empresarial é que estes temas de sustentabilidade, sobretudo da sustentabilidade ambiental, só se vão resolver verdadeiramente quando novas tecnologias nos permitirem ir fazendo a transição com menos custo.
Uma das críticas que se faz à Europa é a de estar a apostar muito na regulação e pouco no incentivo ao desenvolvimento dessas tecnologias.
Sim, os EUA estão a apostar muito mais na procura dessas soluções e no incentivo aos ecossistemas tecnológicos para desenvolver mais soluções. Não significa que na Europa não se esteja a fazer a mesma coisa. Nós na Euronext temos muitas empresas que se estão a cotar ligadas ao hidrogénio verde e azul, às energias eólicas offshores no norte da Europa, ao solar, à biomassa, enfim, temos um sem número de tecnológicas extraordinárias. E mesmo as mais tradicionais, das energias fósseis, estão a transformar-se e a fazer enormes investimentos em energias alternativas renováveis. Agora, na Europa o enfoque é maior neste tema da regulação e menos nos incentivos financeiros ou no investimento propriamente dito em tecnologia.
“Para uma empresa portuguesa com alguma dimensão estar no Euronext 100 Paris Align, ou estar no Low Carbon 100, ou estar no Eurostoxx 600 ESG, porventura é muito mais importante do que estar num PSI ESG que é muito local.”
Para a Euronext, um dos vossos negócios é a criação de índices. Todas estas de harmonização vem facilitar-vos imenso a vida.
Como somos uma bolsa pan-europeia, já estamos em 15 países. Só para ter uma referência, nós temos cerca de 2 mil empresas cotadas e a capitalização bolsista dessas empresas é de mais de 6 triliões de euros, que é mais ou menos o dobro da bolsa inglesa, a London Stock Exchange, que é a segunda maior, e três vezes a Bolsa de Frankfurt, que é a terceira bolsa europeia. A Euronext tem um papel que é bastante relevante. E temos assumido esse papel também numa ligação e numa participação nos grupos de trabalho da CE relativamente a este tema das Finanças Sustentáveis. Temos uma equipa dedicada a trabalhar com eles sobre esse tema e damos toda essa informação digerida aos nossos clientes, às nossas cotadas e aos nossos investidores.
Fazemos outra coisa muito importante que é procurar ouvir os principais atores do ecossistema, desde logo as empresas emitentes. Em Portugal temos a Associação de Emitentes com quem temos uma ligação muito forte e frequente nestas coisas, a associação dos fundos de investimento (APFIPP), os próprios reguladores (CMVM, Banco de Portugal e a entidade de Seguros), para termos uma visão de conjunto. Ou seja, o papel da Euronext nesta construção regulatória é importante e ativo: contribuímos para os trabalhos das entidades europeias e procuramos ajudar o nosso ecossistema a digerir e a perceber toda a informação nova.
Isto tudo tem um grande impacto na vossa atividade.
Certamente. Estas normas que a Comissão vai divulgando impacta desde logo na produção de índices. Quanto mais standardizadas forem estas normas, mais facilita a produção de índices porque podemos sempre invocar perante os investidores que aqueles índices que produzidos estão alinhados com aquela metodologia europeia, que foi testada, foi avaliada, sujeita a consulta. Nós já temos índices de transição, já temos índices alinhados com o Acordo de Paris, os Paris Aligned Benchmark. Eu diria que credibiliza e facilita a produção de índices e facilita a utilização desses índices junto dos gestores de fundos e isso também os credibiliza junto dos seus investidores.
Temos outro impacto positivo que é ter mais investimentos alinhados com a taxonomia, porque agora a taxonomia já abrange as seis áreas. Quando vamos, por exemplo, produzir um índice sobre investimento no setor da água, já temos taxonomia sobre água. Os índices “science-based aligned” também têm este tema da transição. E temos os Transition Index. Isto permite a quem faz este serviço ter as metodologias alinhadas e clarificadas e, de alguma maneira, credibilizadas.
Já que estamos a falar de índices, para quando o nosso PSI ESG?
É um tema para o qual estamos a olhar. A Euronext tem como objetivo disponibilizar benchmarks ESG em todos os seus mercados e estamos a avaliar essa possibilidade para o mercado português. Está a decorrer uma consulta neste momento, quer de potenciais gestores de carteiras que possam ter interesse em usar essa versão ESG, quer junto das próprias entidades emitentes. Não tenho neste momento uma ideia formada sobre o tema.
O que posso dizer é que as empresas cotadas em Portugal têm e seguem com muito interesse os índices benchmarks europeus e internacionais que já existem. Para uma empresa portuguesa com alguma dimensão estar no Euronext 100 Paris Align, ou estar no Low Carbon 100, ou estar no Eurostoxx 600 ESG, porventura é muito mais importante do que estar num PSI ESG que é muito local, que vai ser sempre um índice local. O foco das empresas é estarem nesses índices que têm uma abrangência geográfica e sectorial maior e mais diversificada porque esses cobrem a maior parte dos investidores ESG e os investidores em geral. Dito isto, não queremos deixar ninguém de fora, portanto se houver investidores, bancos, asset managers que tenham interesse específico em ter um PSI ESG nós vamos fazer o esforço para o produzir, é esse o nosso compromisso. Mas estamos em processo de avaliação, não vamos produzir algo que não interesse ou que seja de tal maneira...
Pequeno?
Pequeno, enfim. O índice PSI é o que é, reflete a realidade das empresas que temos. Portanto, um índice PSI ESG, a existir, refletirá uma realidade semelhante em termos de dimensão. Agora em termos de critérios para a seleção das empresas poderá ser algo que poderá ser bastante mais complexo, e só faz sentido fazer se houver um interesse efetivo.
Como é que vocês estão a divulgar este pacote das Finanças Sustentáveis junto dos vossos emitentes?
Nós vamos ter uma semana europeia dedicada à sustentabilidade no início de setembro, uma semana inteira de workshops e de conferências. É uma prática que já fizemos noutros anos e que vamos fazer este ano. Mas esta é a primeira vez que se faz algo à escala europeia. E é óbvio que este pacote vai ter um enfoque especial nessa iniciativa. A maior parte dos eventos vai ser via web para permitir a qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, aceder. Há dois eventos que são físicos e todos os outros são webinars, mas são feitos de vários sítios diferentes: uns em Paris, outros em Amesterdão, outros em Oslo.
A Euronext também tem um serviço de ESG Advisory para as empresas onde incluímos tudo aquilo que são desenvolvimentos regulatórios para apoiar as empresas.
Este novo framework da Comissão Europeia pode vir a criar dificuldades a algumas empresas?
Se por um lado há um reconhecimento de que é importante ter standards, ter critérios harmonizados, ter metodologias mais transparentes, por outro lado, as empresas emitentes e muitos investidores institucionais de dimensão média e mais pequena têm a sensação de que isto tem constituído uma avalanche regulatória muito extensa, muito complexa e é muito exigente do ponto de vista do compliance e da capacidade de digestão das empresas.
E isso tem custos para as empresas.
Isso tem custos elevados. Vou dar-lhe o exemplo da Euronext. Nós somos uma empresa cotada e também a partir do próximo ano vamos ter de reportar de acordo com a Diretiva do Reporte de Sustentabilidade. Isso implicou que já tenhamos de aumentar a equipa que tínhamos no reporte e tivemos que investir numa ferramenta que nos ajuda a recolher os dados para conseguirmos reportar aquela informação.
Assim vocês ficam a saber o que vão sofrer as vossas emitentes.
Isto é só um pequeno exemplo relativamente ao reporte. Isto tem um custo efetivos e quanto mais pequenas são as empresas, maior é o peso que isto tem na sua atividade. As empresas emitentes e o setor dos investidores institucionais têm sido muito vocais relativamente ao peso que isto tem, à quantidade, à complexidade e ao tema da proporcionalidade para as entidades mais pequenas. Senão, um destes dias acordamos e só temos empresas muito grandes, o que não é positivo para a concorrência, para os ecossistemas e para a criação de emprego. Temos de olhar até para a ocupação do território que as empresas pequenas permitem e que as empresas grandes, porque são grandes, tendem a centralizar as operações nalguns locais, e isto tem impacto nos desequilíbrios territoriais.
Podemos chegar a um ponto onde a regulação pode esmagar algumas empresas?
Não sei se esmagar é o termos correto, não sei se será tão radical a esse ponto, mas há uma preocupação clara das entidades com quem nós falamos. E se pensarmos que esta complexidade e este peso regulatório não vem apenas das Finanças Sustentáveis, mas vem de uma série de outras áreas como a fiscalidade, as autorizações, as licenças, as certificações, chegamos à conclusão que isto tem muito peso. E quando estas coisas têm muito peso, o que tende a acontecer? Concentração, concentração e concentração. Ou seja, as empresas têm de distribuir os custos fixos da regulação. Há um incentivo claro à consolidação, o que não é necessariamente mau nalguns setores, mas vai ser negativo noutros setores onde vão desaparecer empresas que fazem efetivamente falta.
Isto é uma grande preocupação. A outra grande preocupação é o grau de eficácia desta abordagem, muito focada na transparência, face àquilo que se pretende atingir. Será que não deveria haver um outro equilíbrio entre aquilo que são medidas mais focadas nos incentivos financeiros, de mercado e de tecnologia e talvez menos nesta complexidade regulatória ligada à transparência? Acho que é uma questão que as entidades devem colocar à frente sempre que pensam produzir uma nova peça regulatória.
Depois há um outro desafio entre aquilo que é o envolvimento, o conhecimento e o compromisso das empresas maiores, dos maiores investidores e dos governos e aquilo que neste momento é atitude do cidadão comum. O cidadão comum, não é só em Portugal, não tem o conhecimento porque há uma grande falta de literacia de sustentabilidade. Desde logo porque não há literacia financeira. Não é comum um cidadão entrar num banco e dizer que quer comprar um fundo ESG, isso ainda é uma coisa muito pouco comum.
Nem nas novas gerações?
Mesmo nas novas gerações não há essa consciência e essa proatividade que muitas vezes as pessoas pensam. Os jovens estão mais recetivos e estão mais alertas, mas ainda não fazem a diferença nestes temas das Finanças Sustentáveis. Há uma assimetria grande entre o grau de conhecimento, de compromisso e de proatividade dos profissionais do setor e aquilo que é no fundo o cidadão comum que muitas vezes até gere empresas de dimensão mais pequena com pouca sensibilidade para estes temas. Isto é algo que não é positivo porque gera-se a sensação de que estamos a fazer um esforço enorme que pode não ser compreendido, procurado ou utilizado. Porque no final do dia isto tudo se dirige ao investidor final, seja através de fundos, seja através dos mercados. É importante encurtar estas assimetrias. As sociedades estão sujeitas a regulamentos que não compreendem, terminologias e taxonomias: que cidadão comum é que sabe o que é a taxonomia?
Quando mete numa balança as vantagens das novas medidas que estivemos a falar no início e estas desvantagens que está a apontar agora, o que é que pesa mais?
O que temos neste momento em termos de enquadramento é muito extenso, é muito complexo e abrange obrigações cujo custo de implementação porventura é maior do que o benefício que vão gerar. Esta é a sensação e a perceção que existe por parte do mercado e das empresas. O que se pretende é que as empresas transitem para uma utilização de recursos sustentáveis, para a redução de carbono, o objetivo não é produzir um relatório de 500 páginas que depois ninguém vai ler e ninguém percebe. As empresas não conseguem acompanhar esta avalanche regulatória. É preciso haver equilíbrio, mas a perceção que existe é que se andou um bocadinho demais na balança regulatória.