Exclusivo

Tecnologia

A discussão que Scarlett Johansson amplificou: os criadores podem ser substituídos por inteligência artificial? “Os perigos são enormes”

A recente (suposta) utilização indevida da voz de Scarlett Johansson pelo ChatGPT espoletou de novo discussões e inseguranças. Greves americanas e leis europeias protegem os criadores, mas podem não chegar. Numa coisa Pêpê Rapazote, ator, José Jorge Letria, presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, e Paulo Novais, especialista em Inteligência Artificial, concordam: é preciso travar abusos. “Ou então será uma selvajaria”, até porque “caminhamos para uma incapacidade de detetar o que é uma manipulação e o que é a verdade”

Yuichiro Chino/Getty Images

É “Her”, mas “her”, pelo menos aqui, não é “ela”. A OpenAI, dona do ChatGPT, fez uma proposta em 2023 à atriz e estrela de cinema Scarlett Johansson: queria utilizar a voz de Scarlett na sua futura assistente virtual “Sky”. A atriz refletiu e recusou.

Poucos meses depois, e já em 2024, não satisfeito, o diretor executivo da OpenAI, o milionário da tecnologia Sam Altman, apresentaria “Sky” na rede social X como “Her”, numa alusão clara ao filme de 2013 em que Scarlett Johansson é, precisamente, uma assistente virtual. Não bastasse a referência mais ou menos implícita, o timbre de voz de “Sky” é profundamente semelhante, para não dizer igual, ao da atriz. O que a revoltou, declarando-se, Scarlett Johansson, “chocada e furiosa”.

Scarlett, recorrendo aos advogados que a defendem, confrontou a tecnológica, que resolveu, “relutante” — assim declararam os proprietários da OpenAI —, retirar a voz de “Sky” do ChatGPT. Scarlett Johansson reagiria depois: “Numa era em que temos todos que lidar com deepfakes e com a proteção da imagem, do nosso trabalho, da nossa identidade, acredito que estas são questões que devem ser respondidas de forma clara. Espero que se aprovem leis que permitam a proteção do que são os direitos de cada um”.

A OpenAI, por sua vez, garantiu que “Sky” não usa a voz de Scarlett Johansson, “é de uma atriz diferente, não é uma imitação”.

Esta polémica, parecendo talvez menor e resolvida, suscitou intenso debate. O Expresso foi falar com o presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), e membro da direção do Grupo Europeu de Sociedades de Autores, José Jorge Letria, o ator Pêpê Rapazote e o especialista em inteligência artificial Paulo Novais. E é precisamente este último que explica que falamos de “ferramentas que aprendem um determinado estilo, uma repetição, um padrão, o padrão que nos torna um artista, um criador único”. Letria acha que estamos num momento de “deslumbramento” e todos defendem regulação para evitar o que Rapazote define como “uma selvajaria total e roubo”.

Já lá vamos. O episódio reacendeu a discussão sobre que novos perigos levanta a inteligência artificial (IA) em concreto para a indústria criativa: atores, realizadores, argumentistas, um sem-número de atividades ditas culturais. A batalha parecia estar mais ou menos ganha quando, no final de 2023 e ao fim de quase 120 dias em greve — com Hollywood paralisada —, os sindicatos americanos, entre os quais o dos atores, negociaram um novo contrato com os grandes estúdios de cinema e televisão, prevendo além de melhorias salariais uma proteção em concreto relativamente à inteligência artificial.

Devem os atores, por exemplo, receber pela “réplica digital” o mesmo valor que recebem por uma cena real. Por outro lado, ao utilizar uma réplica, os estúdios devem sempre obter o consentimento de um ator e a réplica não poderá ser utilizada indefinidamente.

Já por cá, o Parlamento Europeu aprovou recentemente o primeiro regulamento mundial sobre IA, considerada uma “lei histórica”, pois obrigará as empresas de inteligência artificial a identificar os conteúdos gerados de modo artificial, bem como ao dever de atribuir direitos de autor, prevendo-se multas de até 35 milhões de euros às que não o fizerem.

Qualquer cidadão europeu poderá, também, apresentar queixa às suas autoridades nacionais se se considerar lesado por uma aplicação ou sistema de inteligência artificial, nomeadamente em questões relacionadas com notícias falsas (geradas por bots) ou discurso de incentivo ao ódio igualmente gerado artificialmente.