Grégoire Courtine e Jocelyne Bloch são os rostos da Onward Medical, mas foi Gert-Jan Oskam que concentrou a maior parte do mediatismo em maio, quando um artigo da revista Nature revelou ter recuperado parte da capacidade para andar com andarilho e até subir alguns degraus de escadas, depois de 12 anos paralisado devido um acidente de ciclismo.
Na origem desse feito está uma “ponte digital” que Courtine e Bloch desenvolveram entre os laboratórios da jovem empresa suíça e da Escola Federal Politécnica de Lausana. Detentor do prestigiado prémio Rolex Awards for Entreprise, Grégoire Courtine veio a Lisboa no final de janeiro par participar num seminário organizado pelo Instituto de Medicina Molecular (IMM). Como não poderia deixar de ser, trouxe consigo a neurocirurgiã Jocelyne Bloch que passou a ser merecedora de metade dos créditos da inovação tecnológica, depois de ajudar Courtine a levar à prática a “ponte digital” que permite desencadear impulsos elétricos junto às pernas com base na atividade cerebral do paciente.
Gert-Jan Oskam recebeu dois elétrodos que registam a atividade elétrica no cérebro e encaminham esses dados, através de redes sem fios, para um computador que se encontra numa mochila e desencadeia estímulos elétricos em consonância com os “comandos” que o cérebro vai processando sempre que quer mexer cada uma das pernas.
Uma infeção obrigou o paciente holandês a retirar temporariamente os elétrodos cerebrais, apesar de ter logrado alguma melhoria nos movimentos das pernas já depois de a “ponte digital” ter sido desativada. Bloch e Courtine preferem refrear as expectativas, classificando como cenário difícil uma “ponte digital” conseguir uma reabilitação com a mesma destreza e agilidade de um corpo saudável que não tem implantes, mas já estão a trabalhar na mesma plataforma para garantir movimentos de braços e também alcançar uma miniaturização que permita substituir o computador que tem sido usado numa mochila por um novo implante que faz o processamento de dados a partir do interior do corpo humano.
Em plena ação de divulgação da tecnologia, o investigador francês e a neurocientista suíça ainda contaram, a meio desta entrevista e em jeito de surpresa, com o testemunho de Nuno Abreu, 44 anos e médico de profissão, que ficou tetraplégico num acidente em 2021, e que já usa a plataforma desenvolvida por Bloch e Courtine, sem a parte da descodificação dos sinais cerebrais, mas garantindo a estimulação da zona abdominal.
Grégoire Courtine define como prioridade devolver parte da função motora a quem a perdeu, mas sabe que há mais empresas na corrida aos implantes cerebrais, e por isso deixa uma alfinetada a Elon Musk, ao mesmo tempo que admite que o envio de sinais para o cérebro, que permitem recuperar parte da sensibilidade de braços e pernas, consta no roteiro de futuros desenvolvimentos.
Sobre a “ponte digital” usada por Gert-Jan Oskam, o neurocientista admite ter contado com a ajuda de algoritmos. “Pensemos no ChatGPT, que é uma rede com um modelo de linguagem que consegue adivinhar as palavras seguintes numa frase... só que neste caso adivinha qual vai ser o próximo sinal elétrico produzido pelo cérebro”, responde.
Como está Gert-Jan Oskam, o vosso primeiro paciente a recuperar da infeção?
Jocelyne – O Gert-Jan teve treino completo connosco, melhorou e estava muito bem com os dois implantes… mas tinha um implante que teve de ser removido e depois foi recolocado porque era melhor para ele. Mas, mesmo só com um implante, as coisas estavam a correr-lhe bem. Ele está muito contente. Ele recuperou (da infeção) e já está em casa a usar estes dois implantes.
Alguns relatos dão conta de que este primeiro doente conseguiu levantar-se e andar um pouco mesmo sem os implantes. Não são resultados que excedem as expectativas?
Jocelyne - Há que entender que se trata de uma lesão da medula espinhal que surgiu há bastante tempo e que o paciente entrou num primeiro estudo clínico, que consistia apenas na estimulação da medula espinhal (com implantes na medula e não no cérebro). E foi treinado neste programa e conseguiu andar um pouco com a estimulação. E melhorou ainda mais com os implantes que fizeram a ponte digital entre cérebro e a medula espinhal.
Grégoire- A ideia é que encaminhar a estimulação das pernas com o pensamento. Através do pensamento torna-se possível ativar a região que se pretende estimular. Esse é o percurso natural que acabou por enfraquecer porque houve uma lesão. E então surgiu um percurso digital (criado pelos implantes). Estes dois percursos cooperam, e quando é assim, há fibras (da medula espinhal) que recomeçam a crescer. Há como que uma regeneração do sistema nervoso.
Jocelyne- Mas os resultados são bem melhores quando o sistema está a funcionar, em vez de não ter nada. Houve uma grande diferença.
Caso esse paciente começasse a treinar intensivamente, será que conseguiria recuperar toda as fibras da medula espinhal que foram danificdas?
Grégoire – Recuperação total é impossível…
Jocelyne – Nos primeiros estudos, esteve seis meses connosco, melhorou (apenas com estimulação da medula espinhal e sem implante no cérebro), mas depois alcançou um ponto em que não houve grande melhoria. E depois com a interface entre cérebro e medula espinhal ganhou funções outra vez e aí já vimos melhorias outra vez.
Grégoire – Foi impressionante! Quando o conhecemos há cinco ou seis anos, estava incapaz de dar sequer um passo, e agora anda devagar mas de forma muito fluída. É um processo em que não basta ligar e fica a funcionar; é algo progressivo, até conseguir alcançar uma capacidade já estabilizada…
A vossa tecnologia não permite acreditar que esse paciente pode recuperar a totalidade da capacidade de locomoção?
Grégoire - Não. Temos limitar esse tipo de expectativas, porque, naquele caso, a medula espinhal está severamente danificada.
Será sempre uma recuperação que exige andar com o apoio de umas muletas ou algo do género?
Jocelyne – Andar de “mãos livres” não… não será seguro o suficiente. Ele continua a ter melhorias, mas vai acabar por alcançar um limite de capacidade que não é o mesmo que aquele que tinha antes do dano.
Vão testar esta tecnologia com mais pacientes? Como estão a correr estes testes
Jocelyne – Esses testes ainda não começaram.
Grégoire – Vão ser feitos testes com mais três casos relacionados com o movimento das pernas, mas vamos também começar com testes para mover os braços.
Em que zona do cérebro são colocados os elétrodos usados para os ensaios de recuperação dos movimentos dos braços?
Jocelyne – Não é muito longe da zona que controla as pernas, mas vão ser colocados na região do cérebro que controla os movimentos dos braços…
Deve ser precisa grande precisão de neurocirurgia para introduzir um implante num cérebro e garantir o controlo dos braços ou das pernas…
Jocelyne – Fui treinada para reconhecer essas áreas. Claro que temos de chegar ao lugar certo, mas temos várias tecnologias que nos ajudam a fazer este trabalho como deve ser. Modelamos o cérebro do doente antes da cirurgia, e esse modelo guia-nos através de imagens até encontrarmos o local certo.
Esse modelo é individualizado e replica as características do cérebro de cada pessoa?
Jocelyne – Há uma simulação com imagens tridimensionais que permite perceber como é que o cérebro está organizado, e aí passamos a saber onde pôr os implantes… é um procedimento comum.
Grégoire – Definem-se sequências (de ações) com ressonâncias magnéticas que são únicas e que nos permitem visualizar o sistema nervoso. Por isso conseguimos modelar o sistema nervoso inteiro de um paciente para guiar o cirurgião… que assim passa a ter uma ajuda!
Jocelyne – É mais difícil a colocação dos elétrodos na medula espinhal, porque aí exige precisão e modelação específica para cada paciente. E foi por isso que criámos estas sequências de ressonâncias magnéticas. É mais fácil local as regiões certas do cérebro que na medula espinhal. Na medula espinhal fazemos uma estimulação abaixo da lesão, na região do sacro (que fica no final da coluna, entre as ancas), mas para mexer os braços temos de estimular a zona cervical.
Mas não chegaram a explicar porque é que é mais difícil, em termos de precisão, a colocação dos elétrodos na medula espinhal…
Jocelyne – Temos de estimular as raízes (do sistema nervoso) que são responsáveis por ativar os músculos e, para conseguirmos chegar a todas elas temos de ser precisos. Mas é algo que conseguimos ver quando olhamos para as ressonâncias magnéticas. E por isso, desenvolvemos umas sequências especiais (de ressonâncias magnéticas) para descobrir com precisão onde essas raízes (do sistema nervoso) entram na medula espinhal. É essa a novidade.
Grégoire – Parece ficção científica, mas conseguimos ver o sistema nervoso em 3D e podemos navegar nele!
Como é que se traduz a atividade cerebral em instruções para os implantes que se encontram junto à medula espinhal?
Grégoire – Imagine alguém que pensa em mexer um membro, sem proferir palavras, há um disparo de eletricidade, e nós registamos essa atividade elétrica, que funciona como uma linguagem do cérebro. Então pensemos agora no ChatGPT, que é uma rede com um modelo de linguagem que consegue adivinhar as palavras seguintes numa frase, só que neste caso adivinha qual vai ser o próximo sinal elétrico produzido pelo cérebro, de forma a deixar-nos saber o que quer o paciente fazer a cada momento… E depois traduzimos tudo isto em ações, através da estimulação da medula espinhal.
É algo que exige treino para ter melhorias progressivas?
Grégoire - Na realidade, é muito rápido, se houver treino e se o modelo (os algoritmos da Onward Medical) for treinado, pode demorar minutos…
(Entretanto chega, inesperadamente, Nuno Abreu, médico tetraplégico, que vem participar no evento de divulgação que o IMM organizou com Bloch e Courtine, e recebeu implantes da Onward Medical para estabilizar a pressão arterial)
Nuno - Fui operado no Hospital de Santa Maria depois de um acidente a fazer bodyboard em Supertubos, Peniche. Parti a cervical e depois decidi escrever à Jocelyn. Eles tinham uns ensaios clínicos que eram perfeitos para mim e fui dos primeiros a testar a nova tecnologia.
Grégoire – É a plataforma de estimulação mais avançada que existe no mundo!
Nuno - E eu vivo com ela há dois anos. Sem ela, não estaria aqui a falar consigo. Tenho pressão arterial muito baixa, porque é algo que se deixa de controlar quando se parte a cervical... ficamos com uma pressão arterial muito baixa e uma fadiga enorme. Com este estimulador, com esta plataforma, esse problema ficou resolvido na totalidade. Deixei a medicação para esse problema, entre outras coisas…
Grégoire – Temos falado na descodificação do cérebro, mas essa função só se tornou muito eficiente a partir do momento em que passámos a perceber bem como dialogar com a medula espinhal. A precisão alcançada na estimulação permite chegar a certos alvos para ativar músculos...
Jocelyne – Mas o Nuno está a descrever outro tipo de ensaio; não é o mesmo Gert-Jan. No caso do Nuno, não h uma descodificação do cérebro. Há apenas estimulação da medula espinhal para restabelecer a pressão arterial… mas também podemos ter como alvo a bexiga. Logo, podemos alcançar vários alvos associados a funções neurológicas da medula espinhal, que ficam afetados quando há uma lesão. A paralisia pode ser apenas a ponta do icebergue… há muitos outros problemas relacionados com a pressão arterial, o equilíbrio, a bexiga. E por isso tentamos arranjar soluções para estas funções que são importantes para o corpo humano.
Gostaria de participar nos ensaios com a “ponte digital”, Nuno?
Nuno – Sim, por um lado, tenho a sorte de ser médico e perceber o que Grégoire e a Jocelyne fazem. E presto muita atenção àquilo que vão fazendo com outros pacientes. Sim, vou fazendo este tipo de comparações, e sei que eles são os melhores e têm uma grande equipa… porque é que não haveria participar naquilo que fazem? Que mais posso fazer? E eles precisam destas pessoas, e essas pessoas têm de saber que há uma hipótese (de recuperação)… mas tenho de começar por algum lado. Em primeiro, foi com a pressão arterial; depois haveremos de avançar com a bexiga… se falar com alguém paralisado, possivelmente, vai descobrir que há quem diga que, antes de recuperar a locomoção, pretende recuperar o controlo da bexiga. A maioria das pessoas paralisadas morre devido a problemas renais…
Jocelyne - … há muitas infeções…
Nuno – E falência renal. E por isso é necessário resolver isso…
Com esta plataforma há a expectativa de resolver alguns desses problemas ao mesmo tempo que se garante a comunicação com o cérebro. Como é que os sinais cerebrais chegam à medula espinhal? Como é que eles são traduzidos de um lado para o outro?
Grégoire – A tradução é feita com um algoritmo de Inteligência Artificial. A Inteligência Artificial aprende a correlacionar as funções executadas pelo cérebro com a atividade elétrica aí existente. Implica pensar num movimento que desencadeia a estimulação que tem de ser aplicada no sítio certo e adequada para levar um músculo a gerar um movimento. Transformamos pensamentos em ações através da Inteligência Artificial.
Os estímulos elétricos são de baixa voltagem?
Grégoire – Não têm uma voltagem assim tão baixa… são 10 ou 20 volts.
As pessoas sentem o estímulo a ser aplicado aos membros?
Grégoire - Sim, tem de ter força para gerar os movimentos… O Nuno pode mostrar-nos como funciona um dos nossos sistemas que lhe garante controlo do tronco. Como sabe, o Nuno tem uma lesão na cervical, e por isso ficou com os músculos muito fracos.
Nuno (enquanto aponta para o dispositivo) – Este é um controlador que está ligado a outro dispositivo, mais abaixo na barriga que, por sua vez, está ligado à coluna. E com isso dá um estimulação elétrica. Agora, apenas tenho de usar o relógio que tem uma app para executar a função de ativação do tronco… (Nuno ativa o dispositivo e, de súbito, o corpo reage a uma descarga elétrica que o leva naturalmente a endireitar-se na cadeira de rodas). Houve uma contração, o estômago foi para dentro e há uma ativação dos músculos.
Grégoire – Quando uma pessoa tem uma lesão na coluna espinhal, os músculos ficam muito flácidos… e acabam por colapsar. E é para isso que fazemos a estimulação; para que se possa recuperar a postura.
Garantir descargas de 10 ou 20 volts sempre que se pretende movimentar um membro também deve ser um desafio de engenharia!
Grégoire – Temos de recarregar o estimulador. Infelizmente, estas coisas podem ser dolorosas, mas é algo em que estamos a trabalhar, para que fique melhor nos próximos. O recarregamento é feito a partir de fora, através de indução magnética.
Atualmente, nos doentes que pretendem recuperar algum controlo dos membros é usada uma mochila com um computador que vai processando toda a informação que vem do cérebro… será que algum dia tudo isto se fará só com implantes dentro do corpo?
Grégoire – Estamos a trabalhar para isso. Estamos a falar de um sistema totalmente implantado no corpo, que tem por base um chip que terá de correr os algoritmos de Inteligência Artificial. O chip é desenhado como se fosse um algoritmo. É como se fosse um pequeno cérebro implantado no corpo, que traduz automaticamente os sinais que vêm do cérebro (real) em estímulos para a medula espinhal. Neste caso, a ponte digital passa estar completamente implantada no corpo.
Já foi testado em humanos?
Grégoire – Ainda está a ser trabalhado, e vai levar algum tempo. Talvez dentro de cinco anos consigamos pôr os primeiros implantes em humanos. E será melhor que o do Elon Musk, claro! (a rir-se do despique com os Chips da Neuralink)
Há a expectativa de recuperar movimentos dos membros, mas será possível recuperar o tato que se perdeu com as lesões da medula espinhal?
Grégoire – Pode ser uma dificuldade…
Jocelyne – Falando do Gert-Jan, quando é estimulado com o nosso dispositivo, ele tende a sentir-se melhor das pernas, sente melhor onde é que elas estão a cada momento. Há pelo menos uma recuperação no que toca à posição das pernas. Não tínhamos a expectativa de ter uma recuperação da sensação de toque, mas reparámos que houve uma melhoria neste paciente...
Grégoire – Mas trata-se de um mecanismo completamente diferente face à função motora. É mais difícil de perceber o que está a acontecer. Mas é algo que já está no roteiro de desenvolvimento.
Não há portanto uma comunicação bidirecional…
Grégoire – Não. Para já, é apenas direcionado para a função motora.
O que falta para garantir essa capacidade de comunicação do corpo em direção ao cérebro?
Grégoire – Há duas estratégias. Uma delas tem a ver com a estratégia digital e que prevê a estimulação do cérebro, mesmo quando não é possível captar uma sensação (vinda do corpo)… e outra estratégia é induzir a regeneração. Também estamos a trabalhar nisso, mas ainda vai levar bastante tempo até chegar aos humanos.
A tecnologia que tem vindo a ser desenvolvida na vossa empresa e na Universidade de Lausana poderia ser aplicada a outras áreas do cérebro, para extrair informação sobre o que pensa e sente uma pessoa?
Grégoire – Já há sistemas que permitem controlar drones apenas com o pensamento… numa lógica muito parecida como a do Yoda a controlar uma nave inteira em “Guerra das Estrelas”. Mas é algo que garante a comunicação com o mundo. Neste caso, pode ser para garantir a comunicação com uma medula espinhal, com um computador, com um carro. No entanto, ainda não é assim tão eficiente quanto é o circuito natural de comunicações… ainda é lento quando se trata de algo que controla a mão, o braço ou o olhar. Temos de equilibrar as expectativas (geradas pela inovação), mas as coisas talvez possam melhorar com mais detalhe (dos sinais cerebrais), poder computacional e mais dados. Não é para um futuro próximo, mas até certo ponto poderá surgir uma fusão entre o cérebro humano e a máquina… é o que o Elon Musk quer fazer, mas não é esse o nosso objetivo. Nós apenas queremos reparar os danos no sistema nervoso central.
Vai ser possível descodificar o cérebro e descobrir o que pensa e o que sente uma pessoa?
Grégoire – Nós não conseguimos ler pensamentos, mas há pessoas, em São Francisco (EUA), que conseguiram descodificar sinónimos, sentidos e palavras… é possível extrair palavras dos pensamentos das pessoas, mas isso é muito diferente de identificar sentimentos e emoções. Mas, quem sabe?, ainda estamos no início das interfaces entre cérebros e computadores. Há muitas coisas que são possíveis. Nós não temos como objetivo descodificar o pensamento das pessoas, mas sim reparar o sistema nervoso, e esse já é um desafio único!