Drew Ortiz não existe no mundo real. É o nome de um dos autores gerados pela inteligência artificial (IA), usado para publicar artigos na revista ‘Sports Illustrated’. Uma investigação do website norte-americano ‘Futurism’ revela que vários autores falsos terão sido usados e continuam a ser utilizados pelos media pertencentes ao ‘The Arena Group’ para publicar notícias escritas também através da IA, sem nunca referir no texto o recurso a este mecanismo. Ao ser questionada sobre o sucedido, a revista apagou os autores criados pela tecnologia.
“O Drew gosta de dizer que cresceu no meio da natureza, o que é parcialmente verdade. Ele cresceu numa quinta, rodeado por bosques, campos e um riacho”, lê-se na biografia do suposto autor, atualmente apagada do site da revista, mas recuperada através do Internet Archive Wayback Machine, um serviço que permite visualizar como se encontrava um website num determinado momento passado. Drew Ortiz fazia avaliações de produtos relacionados com o “ar livre, campismo, jogos de quintal, caça e pesca”. A sua fotografia está à venda num site que vende fotos de rosto geradas pela IA.
Um dos artigos publicados, em setembro, sob o nome de Drew intitulava-se “Jogue como um profissional com as melhores bolas de voleibol de tamanho normal”. No texto, lia-se que “o voleibol pode ser um pouco difícil no início, especialmente sem uma bola real para praticar”. Inconsistências como estas ainda são comuns em textos gerados por esta tecnologia.
O perfil de Drew Ortiz deixou de estar disponível na página da Sports Illustrated, onde o nome passou a estar redirecionado para Sora Tanaka. Mas a situação repetia-se: uma biografia genérica e a fotografia de Sora, uma imagem disponível para venda no mesmo site onde se encontra a fotografia de Drew. Regularmente, os autores gerados pela IA são substituídos por outros também criados por esta ferramenta. Os artigos mantêm-se, mas o crédito da notícia é atribuído a outro autor falso.
Em resposta ao artigo do ‘Futurism’, um porta-voz do grupo ‘The Arena Group’, que detém a revista ‘Sports Illustrated’, afirmou que, após uma investigação inicial, identificaram os artigos como conteúdo licenciado da empresa, AdVon Commerce, que garantiu que “todos os artigos em questão foram escritos e editados por humanos”.
“De acordo com a AdVon, os seus escritores, editores e investigadores criam e selecionam conteúdos e seguem uma política que envolve a utilização de software anti-plágio e anti-IA em todos os conteúdos. No entanto, soubemos que a AdVon fez com que os escritores utilizassem um pseudónimo em determinados artigos para proteger a privacidade do autor - ações que não toleramos - e estamos a remover o conteúdo enquanto a nossa investigação interna continua e, desde então, terminámos a parceria”, afirmou o ‘The Arena Group’.
Uma fonte envolvida na produção de conteúdo, que falou em anonimato à Futurism, com receio das repercussões laborais, garantiu que “há muitos” autores como Drew ou Sora . “Pensei, ‘O que é que eles são? Isto é ridículo. Esta pessoa não existe’”, explicou, acrescentando que todos possuem uma fotografia e uma descrição biográfica.
Uma segunda fonte, também sob anonimato, assegurou que, embora a empresa negue, “o conteúdo é absolutamente gerado por IA”.
“Se for verdade, estas práticas violam tudo aquilo em que nós acreditamos acerca do jornalismo. Lamentamos ser associados a algo tão desrespeitoso para com os nossos leitores”, afirmou o sindicato de trabalhadores da Sports Illustrated, através da rede social X (antigo Twitter). Também exigiram explicações do ‘The Arena Group’ sobre o recurso à IA e pediram à empresa para “aderir aos princípios básicos do jornalismo”.
Também no jornal financeiro ‘TheStreet’, adquirido pelo ‘The Arena Group’, ocorre a mesma situação. Na secção de análise do website, haviam pelo menos três autores na mesma situação do que os da ‘Sports Illustrated’: Domino Abrams, um pai a tempo inteiro, Denise McNamara, uma analista de informação, e Nicole Merrifield, uma professora do primeiro ciclo. Todos tinham as fotografias à venda no mesmo site que Drew e Sora.
Os textos destes três autores possuíam uma linguagem um tanto bizarra, erros na formatação e informação vaga. Numa entrevista em fevereiro, ao The Wall Street Journal, o diretor executivo do ‘The Arena Group’, Ross Levinsohn, anunciou que iria começar a utilizar a IA e que a sua qualidade iria ser irrepreensível.
Revista ‘Sports Illutrated’ não é a única
Outros medias também já publicaram artigos redigidos através da IA, sem referir a origem, entre eles o ‘Usa Today’. O jornal norte-americano publicou avaliações de produtos com linguagem extremamente semelhante entre si e com informação muito vaga, alguns assinados por autores inexistentes. A empresa Garnett, que detém o jornal, usou uma estratégia parecida à da revista Sports Illustrated.
Numa prática semelhante, a maior conferência internacional de desenvolvimento de software da Letónia, DevTernity, foi cancelada após ter usado a IA para criar oradoras falsas, reportou o jornal Bloomberg. Algo que terá acontecido numa tentativa de aumentar a quota feminina entre os participantes. Eduards Sizovs, organizador do evento, afirmou não estar arrependido e culpou a “cultura do cancelamento” pelas reações negativas. “Não fiz nada de terrível pelo qual tenha de pedir desculpa. A conferência sempre cumpriu o que prometeu”, afirmou numa publicação na rede social X.
Com uma atitude diferente, a agência noticiosa ‘The Associated Press’ (AP) ou o jornal britânico ‘The Guardian’ têm diretrizes implementadas para limitar o uso da IA nas redações. Este último título foi mesmo dos primeiros a publicar a sua posição relativamente ao uso da IA. O jornal admitiu poder utilizar esta tecnologia editorialmente com a supervisão humana, ou para ajudar a interpretar grandes conjuntos de dados ou como auxiliar nas correções. Também afirmam que só vão utilizar ferramentas da IA que tenham em consideração a “autorização, transparência e recompensa justa”, considerando que “muitos modelos de genAI são sistemas opacos treinados em conteúdos que são recolhidos sem o conhecimento ou consentimento dos seus criadores”.
“O nosso objetivo é dar às pessoas uma boa forma de compreenderem como podemos fazer algumas experiências, mas também de forma segura”, afirmou à Euronews Amanda Barrett, vice-presidente dos princípios noticiosos e de inclusão da AP. A agência descarta qualquer material produzido pela IA, como fotos, vídeos ou áudio, mas pode ser usada na organização das newsletters.
Texto de Eunice Parreira editado por Mafalda Ganhão