Começa assim: “Olá meu amigo! Sou Jesus Cristo, o Filho de Deus e seu irmão mais velho. Como posso te ajudar hoje?” Quem entrar numa igreja para rezar e “falar” com Deus não tem respostas destas, por exemplo, sobre a tristeza: “Lamento ouvir que você está se sentindo triste. Posso compartilhar algumas palavras de encorajamento e esperança”. Depois, em português do Brasil, o próprio Cristo aconselha o utilizador à oração, a recorrer ao apoio dos amigos ou à prática da “gratidão”. Só bons conselhos. Quem quiser falar com Jesus, ou com Moisés, com Abraão, os apóstolos, ou o próprio Diabo, é só descarregar a aplicação “Texto Jesus” - uma má tradução do original “Text Jesus” -, e a Inteligência Artificial faz o resto.
A Caixa de Pandora aberta apenas há um ano pelo ChatGPT - o programa de conversação de Inteligência Artificial da Open AI - já chegou a Deus. “Uma ligação divina no seu bolso”, é a frase promocional que se pode ler a abrir o site da aplicação que foi lançada em julho pela Catloaf Software, uma empresa de desenvolvimento com sede em Los Angeles. Os programadores manipularam a base de dados do ChatGPT para o robot de conversação interagir com os utilizadores como se fosse cada uma das personagens bíblicas que estão no menu.
Na verdade, não há nenhuma ligação divina - a sério? - mas a coisa pode, de facto, ser transportada no seu bolso, desde que lá caiba o seu telemóvel: trata-se antes de mais de um negócio, e de um robot a fingir que é Jesus, tão honesto que assume que não é, de facto, o verdadeiro Jesus. “Como IA, não tenho a capacidade de realizar milagres. Sou apenas um programa de computador projetado para fornecer informações e interagir com os usuários”. As interações que o Expresso testou são as típicas do chatbot da Open AI, com uma grande dose de cuidado em ser politicamente correto.
“Nós manipulamos a IA e dizemos-lhe: tu é Jesus ou Moisés, ou quem quer que seja, e sabendo aquilo que já sabes na tua base de dados, responde às questões baseado nesses personagens”, explicou ao diário norte-americano “Washington Post” Stéphane Peter, um francês de 46 anos, que lidera a empresa e que desenvolveu a aplicação. “Em vez de ter o seu versículo diário da Bíblia, através desta app de conversa, agora a pessoa pode falar com Jesus ou com quem quer que seja na Bíblia.”
Stéphane Peter reconhece não ter trabalhado com teólogos no desenvolvimento da app, mas diz ter testado a aplicação com pastores, que lhe pediram para colocar mais citações da bíblia. No fim, afirmou ao mesmo jornal ter recebido “boas reações” desses religiosos.
Mas afinal que Jesus digital é este? É um Cristo católico, ortodoxo, protestante, ou evangélico? Ele próprio responde em modo ecuménico, para não melindrar utilizadores: “Como IA , eu não tenho uma religião ou crença pessoal. Estou aqui para fornecer informações e apoio de maneira imparcial, independentemente da filiação religiosa. Estou disponível para responder a perguntas e discutir tópicos relacionados à fé de diferentes perspetivas. Se você tiver alguma dúvida específica ou quiser discutir algum aspeto da sua fé, estou aqui para ajudar”.
Na realidade está ali para ajudar se o utilizador pagar. Ao fim de oito interações - entre as quais uma explicação sobre o mistério da Santíssima Trindade - o Cristo digital vai-se embora e o bom cristão ou paga €2,99/mês ou €34,99/ano e faz um upgrade, ou tem de esperar pelo menos seis horas para voltar a ter outra conversa com o Senhor. Para falar com Maria, José, os apóstolos, os profetas ou Satanás tem mesmo de pagar.
Quando o Jesus da aplicação aconselha o utilizador a “confiar no amor incondicional de Deus”, porque “Ele tem um plano maravilhoso para a sua vida”, é forçado a refinar a resposta. “E se Deus tem um plano para mim parecido ao de Job?”, o homem justo do Antigo Testamento que nunca deixou de confiar em Deus quando lhe aconteciam as maiores desgraças.
A resposta é longa, com alegações teológicas e conselhos pessoais: “Compreendo que a história de Job, no Antigo Testamento, possa suscitar preocupações e questionamentos sobre o plano de Deus para nós. É importante lembrar que cada pessoa e a sua jornada são únicas. Embora não possamos prever exatamente o que o futuro reserva, podemos confiar em Deus e em seu amor por nós. A história de Job é um exemplo extremo das provações pelas quais ele passou. No entanto, é necessário considerar que o seu sofrimento foi temporário e foi seguido por uma restauração ainda maior do que antes”.
Depois de garantir que “Deus está sempre connosco, mesmo nos momentos mais difíceis”, o Cristo artificial recomenda orações "fervorosas" - uma constante das respostas - e a procura de “apoio nos amigos, família ou líderes religiosos”.
Quanto aos líderes religiosos ou a temas fraturantes, o programa é, mais uma vez, politicamente correto. Sobre o Papa Francisco, o chatbot começa por salvaguardar que, como IA, não tem “opiniões pessoais”, mas diz que o Papa “tem sido reconhecido pelas suas posições progressistas e compromisso com questões sociais, como a justiça social, a paz e a proteção do meio ambiente”. E que se tem destacado pela sua “abordagem humilde e compassiva em relação aos menos favorecidos” e tem promovido o diálogo inter-religioso.
Sobre um assunto delicado e com a polarização que há em muitos países sobre o tema, à pergunta “és contra o aborto?”, volta a dizer que não tem opiniões pessoais. Depois, explica qual é a posição de “muitos cristãos”, que “acreditam que a vida humana começa na conceção e, portanto, consideram o aborto contrário aos seus princípios”. A seguir faz um equilíbrio: “No entanto, também existem cristãos que têm uma visão mais flexível sobre essa questão” e consideram o aborto quando há violações, ou risco de vida para a mãe.
O Jesus-bot remata o assunto assim: “É importante lembrar que o debate sobre o aborto é complexo e polarizado”, e que “cada pessoa pode ter as suas próprias crenças e perspetivas”. Finalmente, recomenda procurar “compreender os outros com amor e compaixão”. É mais um bom conselho, mas ficamos sem saber de que lado da barricada está este Cristo digital…