Comportamento

Quando a amnésia apaga o passado

Há pessoas a quem faltam pedaços do passado, outras não conseguem juntar peças para viver o presente. São cada vez mais os doentes a quem a memória teima em falhar. Histórias de quem sofreu as reviravoltas da amnésia. Clique para visitar o canal Life & Style.

Cândida Santos Silva (www.expresso.pt)

Uns só mexem a cabeça, outros as mãos ou os dedos. Muitos não mexem nada. Uns lembram-se de forma difusa do que lhes aconteceu. A maioria não tem recordação alguma. Há quem se enrede em delírios, que romanceie ou invente episódios para os buracos negros que lhes povoam o passado. Há pessoas a quem faltam pedaços de horas, outras que não encontram memória alguma do que lhes aconteceu durante meses. São assim a maioria dos doentes internados no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, vítimas de acidentes de viação graves, com múltiplas fracturas e traumatismos crânio-encefálicos. Devagarinho, reaprendem a estar vivos. E a resgatar as peças do puzzle do seu passado. Para que o que exista não seja apenas o presente.

Hélder Portela, olho brilhante, cara de menino destemido, tenta controlar os movimentos desconexos das mãos e das pernas. A cadeira de rodas tem dificuldade em entrar na sala onde o esperamos. As pernas não param de mexer. Os movimentos são desconexos. As mãos também tremem. Insistentemente lá consegue fazer a curva e entrar. O médico, Jorge Jacinto, director de Serviço de Reabilitação de Adultos, graceja: "Estás nervoso Hélder? Não estejas. A jornalista não tem cara de má". Hélder esboça um sorriso tímido, mas tem pressa em apresentar-se: "Sou o Hélder, tenho 26 anos." Os nervos misturam-se com uma alegria quase infantil com que inicia a sua história: "Um amigo da noite convidou-me para ir à Concentração Motard de Faro. Foi em Julho, numa noite quente de Verão. Sei vagamente que fomos de moto e montámos uma tenda para dormir. Depois não me recordo de mais nada. O que sei, foi o que me contaram. Dizem que fomos jantar, eu ia de pendura, e tivemos um grave acidente de moto." Hélder acordou numa cama de hospital sem saber quem era, quantos anos tinha, onde estava e o que acontecera para ter ido ali parar. Foi já em Lisboa, no Hospital de Santa Maria, que acordou do coma. "Não sabia onde estava. Quando soube que estava numa maca de hospital pensei que estava a ter um pesadelo. Perguntei o que estava ali a fazer. Repetia que não me tinha acontecido nada." Hélder sente que nunca mais acordou do sonho, ou antes do pesadelo. Tempos mais tarde teve uma mistura de revolta e de arrependimento por ter ido a Faro, mas já não valia a pena pensar nisso. Só em Alcoitão, onde entrou três meses depois do acidente, decidiu enfrentar a situação. Para isso contou muito a ajuda dos médicos e enfermeiros e sobretudo o apoio de outro doente que lhe tem servido de exemplo. Hoje são amigos, quase irmãos. Apoiam-se mutuamente, e tentam não sucumbir quando a tristeza avança com a noite.

Hélder está em Alcoitão desde 14 de Setembro. O relatório médico dessa altura era preocupante. Para além das fracturas da vértebra, bacia, coxa, perna direita, antebraço, havia uma contusão cerebral. E isso provocou-lhe alterações a vários níveis: de memória, de planeamento, défice de concentração, da capacidade de aprendizagem e anosognosia, uma palavra difícil para descrever a falta de noção dos seus verdadeiros problemas. Um mês e meio depois de dar entrada em Alcoitão, Hélder já venceu muitos obstáculos. "Está mais calmo, mais colaborante e isso ajuda à recuperação", esclarece Jorge Jacinto. Hélder ainda tem um enorme percurso pela frente. Agora já aceita a ajuda dos fisioterapeutas, já deixou de gritar quando antes o fazia mal lhe tocavam. Para além da fisioterapia, Hélder ocupa os seus dias a fazer cópias de textos e a treinar a destreza manual, colocando pequenas peças num tubo de ferro. No ginásio reaprende a andar, na terapia ocupacional tenta aprender a lembrar-se, treina a elasticidade cerebral, procura acelerar o pensamento. Com voz arrastada, quase plástica, Hélder Portela confessa que tem por objectivo a médio prazo voltar ao antigo trabalho e, se possível, arranjar uma namorada.

Uma epidemia silenciosa

Hélder é um dos cerca de 11 mil traumatizados de crânio que todos os anos surgem em Portugal. Alexandre Castro Caldas, neurologista e director do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica, cola a questão da seguinte forma: "Temos este número alarmante de casos por ano. Na sua grande maioria ficam com perturbações de memória, de comportamento ou cognitivas. Se multiplicarmos pelas famílias que os rodeiam verificamos que estamos a falar de um assunto muito sério. E a causa está em primeiro lugar nos acidentes rodoviários, sobretudo numa faixa etária que se situa entre os 18 e os 30 anos." O facto de muitos perderem a consciência do seu defeito, pensando que está tudo bem, torna muito mais difícil lidar com este problema. É uma espécie de epidemia silenciosa.

Maria Emília Santos, psicóloga e directora do curso de terapia da fala da Escola Superior de Alcoitão, corrobora esta ideia. "As notícias dos acidentes de viação só falam dos mortos. Esquecem-se dos feridos. A verdade é que 20% dos traumatizados de crânio vão ficar com sequelas graves. Alguns ficarão sem parte do seu passado, outros terão dificuldade em se lembrarem de coisas do dia a dia". Mas pior, reforça a especialista, "é que apenas 55% dos sujeitos voltam ao mundo do trabalho e, em muitos casos, para um posto inferior ao que tinham até então, sem qualquer tipo de acompanhamento psicológico".

Os doentes que não falam, que às vezes têm comportamentos desadequados ou violentos, não aparecem nos ecrãs por serem demasiado chocantes. Em Alcoitão, as equipas médicas e de enfermagem estão habituados a estes dramas. Às vezes, as primeiras batalhas passam por fazer com que os doentes consigam mudar de posição na cama, ou manter-se sentados, em equilíbrio, evitando a formação de hematomas e de escaras. Hélder já ultrapassou tudo isto. Foi a primeira vitória.

Depois do sexo, amnésia

António estava casado com Amélia havia 15 anos. A sua vida sexual era satisfatória, normal. Viviam em Évora e tinham dois filhos. Durante a Expo 98 decidiram passar um fim-de-semana em Lisboa, sem as crianças. Calcorrearam quilómetros, visitaram dezenas de pavilhões. À noite, no hotel, ainda sobrava energia, e sobretudo apetite, para enroscados debaixo dos lençóis trocarem carícias e satisfazerem o ímpeto sexual que lhes toldou os sentidos. Tudo correu como o habitual. Apenas no final António perguntou o que estavam ali a fazer, que sítio era aquele. A nudez pareceu-lhe estranha e o primeiro impulso foi vestir-se. Embora a cara da mulher não lhe parecesse desconhecida, não tinha toda a certeza de quem fosse Amélia. De início, a mulher até achou piada à brincadeira, mas rapidamente percebeu que aquilo não era nenhum jogo. Pegou nele e dirigiu-se às urgências do Hospital de Santa Maria. Diagnóstico: amnésia global transitória.

À primeira vista as palavras do doutor provocaram um murro no estômago de Amélia. Depois o médico tranquilizou-a. "Disse-me que António estava a passar por uma espécie de branca. Mas que no espaço de 24 horas deveria voltar ao normal. Só não se iria lembrar do que verdadeiramente acontecera. O clínico que o assistiu explicou que o cérebro dele estava desligado e qualquer coisa que lá fosse escrita não era guardada", recorda Amélia. António sabia quem era, mas tinha dificuldade em reconhecer os outros, não se lembrava de nada do que se passara na última meia dúzia de horas. O seu cérebro parecia uma folha em branco. Estava sempre a fazer as mesmas perguntas: "O que estou aqui a fazer, o que é este sítio, quem são estas pessoas." Mesmo que as respostas lhe tivessem sido dadas em todas as vezes que formulara as perguntas. O seu cérebro não gravava nada.

Hoje o casal ri-se com o acontecido. "Foi um grande susto, mas já passou", dizem em uníssono. A verdade é que ainda hoje António não se lembra de mais nada a não ser vagamente ter vindo à capital, de passeado pelo recinto da Exposição Internacional de Lisboa, e de regressar ao Alentejo. O resto, aqueles dois dias, é como se não tivesse existido na sua vida. Já lá vão 11 anos e nada mais de anormal aconteceu desde então. Os cientistas não sabem verdadeiramente o que provoca a amnésia global transitória. Um fenómeno que não é tão raro quanto isso. O que se sabe é que durante esse período o nosso cérebro não grava nada. É como se estivesse desligado. O neurologista Mário Miguel Rosa encontra várias explicações possíveis para estas situações: "Pode ser de origem vascular, epiléptica, devido a alterações eléctricas do hipocampo ou até uma enxaqueca basilar, com ou sem dor, que possa provocar esta situação no mínimo desagradável." Um problema que é ultrapassado antes de se completarem 24 horas. Também há casos, relembra Mário Miguel Rosa, em que na sua génese estão fenómenos psiquiátricos. Aqui são as pessoas que, inconscientemente, apagam pedaços do seu passado. Podem ser semanas, meses ou anos. Nos casos graves isso impede que se aprenda algo de novo. Mas a isto já não se chama amnésia global transitória, mas sim amnésia psicogénica. "Cada dia é um dia novo. Não podemos dizer que há um apagamento de dez anos de uma vida e a partir daí que se lembra bem de tudo. Isso é ficção", clarifica o neurologista.

Lembra-se, mãe?

Ofélia da Silva Mateus, 86 anos, está bem conservada para a idade. Quem olha para ela não lhe dá a idade que já lhe pesa nas pernas. O pior é a cabeça. É difícil lembrar-se de coisas simples. É manhã, é de tarde. É hoje ou já é amanhã? Os dias já não fazem sentido. Nem vale a pena planear o futuro. Ofélia vive sozinha. Tem uma filha com quem está todos os dias. Vivem próximas. Tão próximas que quase são vizinhas. Para ir de uma casa à outra basta subir ou descer uma ladeira. Da janela de uma vêem a casa da outra. Mas Ofélia ainda gosta da sua independência e, sempre que lhe apetece, mete-se no autocarro e vai dar uma volta. Sempre ao mesmo sítio. Sabe que gosta de ir ao centro de Odivelas, gosta de espairecer. Vai sempre à mesma mercearia. É capaz de trazer de todas as vezes o mesmo produto. Chega a ter em casa dezenas de litros de leite. Ofélia perde-se nos seus pensamentos, esquece-se de comer, de preparar as refeições. Mas nunca se esquece de tomar os medicamentos. De manhã sabe que aquilo faz parte da sua rotina. Para saber que já os tomou coloca-os em fila e vai-os ingerindo por ordem. De resto, é incapaz de organizar uma agenda para o resto do dia. Já se esqueceu da terra onde nasceu, do dia do nascimento da sua filha ou dos longos corredores do sítio onde trabalhou.

Ofélia foi uma mulher de fibra. Criou sozinha uma menina, trabalhou no Hospital de Santa Maria. Fazia o trajecto entre Odivelas e o local de trabalho sempre a pé, de manhã e à noite, de Verão e de Inverno. Ao serão, em casa, à luz de um candeeiro a petróleo, fazia croché para fora. Assim compunha o orçamento. Chegou a trabalhar à noite nos camarins das artistas do teatro Monumental, onde as ajudava a vestir. Ofélia sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) em 1996. Desde então é seguida clinicamente por José Manuel Ferro, director do Serviço de Neurologia do Hospital de Santa Maria. Há três anos foi-lhe diagnosticada a doença de Alzheimer. Mas o médico acha que os seus problemas de memória são já anteriores. Pelo menos desde 1996. A filha, Orlanda, reconhece que a situação se agravou nos últimos tempos. "É muito difícil lidar com uma pessoa assim. Dá muitas preocupações, nunca estamos tranquilos." Sentadas numa mesa de café, mãe e filha tentam encaixar as contas do rosário das suas vidas. A frase mais ouvida sai da boca de Orlanda: "Lembra-se, mãe? Não se lembra mãe?" E a mãe, com um pouquinho de ajuda, lá se vai lembrando de alguns dos acontecimentos passados, mas é incapaz de saber onde colocou a chave de casa no caso de se ter esquecido dela ou de se lembrar que aquele é o café onde gostava de ir comer um pratinho de arroz doce.

Um doente com Alzheimer não é, de todo, incapaz, como explica José Manuel Ferro. A autonomia é tão importante como o diagnóstico precoce. "Só assim se pode impedir a rápida progressão da doença." Como as células cerebrais são muito especializadas e com capacidade de regeneração muito reduzida é muito difícil formar novos circuitos e ligações. Daí que os doentes tenham dificuldade de formar novas memórias, ou seja, aprender e memorizar informação nova e recordar acontecimentos anteriores. O pior é que, como a doença de Alzheimer é degenerativa e progressiva, o doente pode chegar ao ponto de não se lembrar de nada, nem de ninguém.

Para já, Ofélia está longe desse momento. Mas Orlanda olha para o futuro com muita apreensão. Até porque a doença tem claramente uma componente hereditária. E Orlanda é em tudo muito parecida com a mãe. Só esperam, ambas, que nesse aspecto Orlanda tenha herdado os genes do pai. cssilva@expresso.impresa.pt

AMNÉSIA, O QUE É?

O QUE É? Amnésia é a perda de memória total, uma situação muito rara, ou parcial e pode ser causada por diversas razões. As modificações do cérebro causadas pela idade ajudam a explicar por que motivo as pessoas idosas podem ser mais esquecidas. Mas ter lapsos de memória pode acontecer a qualquer um. São raríssimos os casos de perda total de memória do passado. Só há dois casos conhecidos na literatura científica.

QUAIS AS CAUSAS? O consumo excessivo de bebidas alcoólicas, causando uma deficiência de vitamina B1, de tóxicos - ecstazy, LSD, cocaína -, podem provocar sintomas de origem neurológica e causar perda de memória. Os acidentes de viação acompanhados de traumatismo craniano, as lesões cerebrais, infecções, herpes, tumores não sólidos, acidentes vasculares, depressão grave, hipertensão arterial, doença de Alzheimer, a falta de estímulo intelectual ou fármacos como anti-estamínicos e tranquilizantes são as causas mais comuns para a perda de memória.

O QUE SE ESQUECE? As pessoas que sofrem de amnésia não se esquecem de tudo. Podem formar memórias de curto prazo, que perduram talvez alguns minutos, mas não deixam, por exemplo, de saber andar de bicicleta. Há quem perca as memórias mais recente, a que se chama memórias de trabalho, e preserve as memórias mais longas, dado que já foram "arquivadas". Quando se perdem as memórias antigas é difícil voltar a aprender.

(Texto publicado na Revista Única da edição do Expresso de 28 de Novembro de 2009)