O anúncio de um novo confinamento a sério trouxe-nos à memória o que se passou no primeiro: mais tempo em casa, não precisar de conduzir, nada de receio do balão e pronto, tudo aponta para a cave e para o respetivo desbaste. Não creio, no entanto, que desta vez se passe algo de semelhante, mas, ainda assim, vale a pena olhar para o que se tem e refletir um pouco. Será que consigo dar conta do que tenho na cave? Terei anos de vida para beber tudo o que tenho? Estas são apenas algumas das angústias que o enófilo sente perante uma estante carregada de garrafas, quase todas à espera do tal momento que teima em não chegar. Há várias soluções possíveis. A primeira é distinguir entre aquilo que estamos dispostos a beber e as garrafas que podemos dispensar sem remorso; essas têm destino certo, entre família, amigos pouco ou nada conhecedores, o senhor do talho, a menina da florista, o senhor do banco, a senhora da banca dos jornais onde nos abastecemos. Por experiência, sei que desta forma conquistamos muitos corações da zona onde vivemos. A verdade é que nenhum dos ofertados se vai preocupar com o vinho em si, se é ou não “ganda pomadão” ou se é coisa rara, o que lhes interessa, e toca, é o gesto da oferta. E como dar é tão bom quanto receber, com este pequeno gesto fazemos felizes os que nos estão próximos e com quem contactamos no dia a dia. De seguida podemos olhar para aqueles vinhos que, num momento de loucura, resolvemos comprar em muito maior quantidade do que poderemos alguma vez consumir e, esses, podemos pensar em vender. Lembro-me de um amigo que, à conta da “doença” do colecionismo, deu com ele a olhar para a sua garrafeira e contar 400 garrafas, de anos diferentes, de um belo tinto do Douro, daqueles que à data da compra custavam €40 e pelos quais agora se pede €150 nas lojas onde ainda existem. A solução pode então passar por vender parte desse stock, com evidente ganho financeiro. Faça uma lista do que está disposto a vender com um preço simpático e vai ver que no conjunto dos seus contactos vai haver quem esteja interessado. Quando no fim dessa monda ainda lhe sobrarem muitos vinhos, pode tomar uma atitude ajuizada, por exemplo a seguinte: beber periodicamente (não convém fugir a esta regra) uma das boas garrafas que tem. Pode ser uma vez por semana, pode ser de duas em duas semanas (depende do stock), mesmo sem ter motivo especial. Embora se costume dizer que a associação vinho/comida exige algum saber e organização — vinhos mais ligeiros para pratos mais leves e vinhos mais encorpados para pratos mais robustos —, uma coisa é certa: quando decidimos, ao olhar para uma garrafa, “é hoje que a tua hora chegou”, o vinho vai saber bem e o prato vai, certamente, ligar com o néctar escolhido. Mesmo que nem sempre seja válida a tese de Alexandre Dumas que diz que “o vinho é a parte intelectual da refeição”, a emoção que a degustação de um grande vinho proporciona não tem preço. É por isso que não devemos esperar mais para tirar partido do bom que temos em casa.
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Novo confinamento: lá vamos nós atacar a garrafeira
Não é que quiséssemos, mas obrigam-nos...