Ciência

Pessoas que cresceram em arruamentos simples tendem a ter menor capacidade de orientação, defende novo estudo

A capacidade de orientação tende a ser desenvolvida na infância. Artigo publicado na revista "Nature" revela que quem cresce em cidades com emaranhados de ruas adquire maiores competências de navegação

A Eixample, de Barcelona, é dominada pelos arruamentos em forma de quadrícula

Quem já visitou Barcelona conhece bem a diferença: no Bairro Gótico predominam as ruas estreitas, com traçados irregulares, mas a zona da Eixample é composta por ruas retilíneas que se entrecruzam como uma quadrícula. Será que os habitantes que cresceram nestes dois bairros têm a mesma capacidade de orientação?

A questão já começou a ser trabalhada por investigadores da Universidade de Londres, no Reino Unido, e do Centro Nacional para a Investigação Científica de França e mereceu a publicação dos primeiros resultados na revista "Nature", que podem revelar-se úteis para os habitantes de cidades de todo o mundo. Segundo os cientistas, as pessoas que passam a infância em ambiente rural ou cidades com um entrançado de ruas mais irregular tendem a desenvolver maior capacidade de orientação do que os habitantes de cidades desenhadas a regra e esquadro, em forma de quadrícula.

“Uma pessoa que cresça em Chicago, Buenos Aires ou Montreal – cidades que são compostas por ruas em forma de grelha – não treinam tanto as competências de navegação quanto as que crescem em cidades mais complexas como Londres ou Paris”, explica Antoine Coutrot, um dos autores do estudo e investigador do Centro Nacional para a Investigação Científica de França, quando questionado pelo jornal "New York Times".

O artigo agora publicado na "Nature" levou a equipa de cientistas a admitir que a capacidade de orientação começa a ser desenvolvida ainda em tenra idade, à semelhança daquilo que sucede com a linguagem. A maleabilidade do cérebro durante a infância pode ser apontada como razão genérica para esta tese, mas os investigadores deste estudo internacional também referem uma segunda hipótese que ainda terá de ser comprovada, mas que remete para um aumento do número de neurónios na área do cérebro ligada à memória em cidadãos que cresceram em cidades com estruturas urbanas mais complexas.

Além de indiciar que os ambientes urbanos podem condicionar a capacidade de orientação, o estudo também tem em vista apurar dados que, eventualmente, possam facilitar o diagnóstico de doenças neurodegenerativas, como a Alzheimer. Até porque, nestas doenças, a perda de orientação pode começar a manifestar-se antes das perdas de memória que costumam ser o sintoma mais conhecido da demência.

“O ambiente a que estivemos expostos [na infância] produz um efeito direto na cognição a partir dos 70 anos”, refere Hugo Spiers, professor na Universidade de Londres, sobre a relação estabelecida entre o local da infância e a perda de capacidades na denominada 'terceira idade'.

Para apurarem qual o efeito produzido pela malha urbana na orientação dos humanos, os cientistas desenvolveram um jogo de telemóvel com um barco que tinha de seguir as direções certas para caçar alguns animais marinhos. Com o jogo, que foi batizado de "Sea Hero Quest", os investigadores pretendiam juntar as respostas e os desempenhos de cerca de 100 mil pessoas, mas acabaram por garantir mais de 4,3 milhões de voluntários depois de uma campanha publicitária, que contou com a participação do famoso youtuber PewDiePie.

Ao longo do tempo, o estudo foi sendo afinado consoante os diferentes objetivos científicos e os reparos da comunidade, até que uma análise efetuada aos desempenhos de 400 mil jogadores, oriundos de 38 países, permitiu apurar que as pessoas nascidas e criadas em cidades com arruamentos mais simples apenas conseguiam superar os resultados de quem vinha de cidades de urbanização mais complexa nos níveis mais fáceis do jogo. O que levou à conclusão de que as cidades dominadas por emaranhados de ruas fomentam a capacidade de navegação logo a partir da infância.

Em contrapartida, uma das variantes do estudo permitiu deduzir que o local onde os voluntários vivem na atualidade não é tão importante quanto o local onde cresceram – e esse pode ser um indicador de que é mesmo na infância que a orientação ganha competências.

Numa época em que boa parte das pessoas já prefere orientar-se pelo telemóvel do que perguntar a um desconhecido pelo caminho mais adequado, os investigadores também não dispensaram uma análise aos potenciais efeitos produzidos pelos sistemas de navegação de satélite, como o europeu Galileo ou o americano GPS. Mas os resultados apurados referem que os voluntários mais jovens, que provavelmente cresceram rodeados de várias tecnologias de navegação, não apresentaram resultados diferentes dos mais velhos, que eventualmente estarão mais habituados a chegar ao destino sem ajuda do telemóvel.

As hipóteses levantadas pelo estudo publicado na "Nature" podem ter inaugurado uma nova via de investigação, mas estão longe de ter aceitação garantida de quem decide traçados e espaços urbanos, como recorda Amber Watts, da Universidade do Kansas, ao "New York Times": “Se for dizer a um gestor de urbanismo para tornar confusos ao máximo os caminhos de uma cidade, é possível que a coisa não funcione muito bem”.

Pelo sim pelo não, nada como manter o GPS pronto a usar em cada ocasião.