Marta Temido enfrentou desafios, críticas e pressão na pandemia, mas acabou por deixar o Governo mais tarde devido ao desgaste da relação com os profissionais de saúde e por sentir que os portugueses estavam cansados da ministra que lhes pediu sacrifícios.
Em entrevista à agência Lusa, a propósito da passagem de cinco anos sobre o aparecimento dos dois primeiros casos de covid-19 em Portugal, em 2 de março de 2020, e questionada sobre se a saída do Governo foi o culminar de muita pressão e de cansaço, a antiga ministra da Saúde disse que “também estava cansada, mas sobretudo as pessoas estavam cansadas. Estavam cansadas da pessoa que lhes tinha pedido sacrifícios”.
“Acho que precisavam de uma mudança de atores e, sobretudo, a minha relação com os profissionais de saúde estava muito desgastada e, portanto, o melhor é ser capaz de sair. E acho que, durante algum tempo, foi possível criar ali uma lufada de ar fresco”, salientou.
Marta Temido disse nunca se ter sentido injustiçada. “Sei que fiz o melhor que sabia. Sei que tive comigo, e tive essa sorte, pessoas que fizeram muito melhor do que eu e que me ajudaram a vencer todos os dias (...) e que me deram força em muitos momentos e isso ajudou-me a estar focada na resposta a cada momento. Quando saí, saí com tranquilidade”, em setembro de 2022.
O dia 2 de março “ficará para sempre na memória” porque é o dia do seu aniversário. “É daquelas pequenas ironias do destino”, disse Marta Temido, com um sorriso, recordando o que aconteceu antes da chegada da pandemia a Portugal.
“Começámos por ver imagens no final de dezembro, início de janeiro, que vinham da China e mais adiante de Itália e de outros países europeus onde a Covid-19 chegou primeiro (...). Lembro-me de ver as zonas próximas de Bérgamo a serem interditadas ao trânsito e pensar o que é que estão a fazer, o que é isto? E depois aconteceu-nos também a nós”, relatou.
Marta Temido contou que as primeiras horas foram de perplexidade, mas também de necessidade de reação, nunca imaginando que Portugal iria ter uma “avalanche de casos” e acreditando que “o fim poderia ser rápido, coisa que depois se veio a comprovar ser um erro”.
Foi preciso preparar o SNS para garantir prontidão na resposta à pandemia, o que disse ter sido “muito difícil”, porque foi preciso suspender a atividade programada e depois garantir que havia os materiais de consumo clínico, ventiladores e gás medicinal.
“Todos os dias o cenário foi ficando um bocadinho mais complexo até ao momento em que a vacinação, mas isso já é outra fase, começou a permitir ganhar à doença”, comentou a ex-ministra e atual eurodeputada.
Em 18 de março de 2020 foi decretado o primeiro confinamento obrigatório, uma medida acatada ordeiramente. “Mais do que aquilo que tínhamos a certeza de ser o melhor caminho, as pessoas queriam ir para casa, os pais queriam tirar os meninos da escola, etc., mas na perspetiva de que tudo fosse rápido. E não foi”.
“Houve uma fase em que o Ministério da Saúde estava inundado de contactos de pessoas que queriam ajudar”
Marta Temido salientou que as decisões foram sempre baseadas nas orientações de peritos de várias instituições científicas nas reuniões do Infarmed, “num processo único de formação de decisão e de partilha de decisão”.
“Acho que isso foi a grande mais-valia desse processo e do qual, se calhar, não aprendemos tantas lições quantas deveríamos”, comentou.
Para Marta Temido, “o relativo sucesso” de Portugal na resposta à Covid-19 também se deveu aos atores políticos que, “desde o partido do governo [PS] até aos partidos da oposição, todos dividiam aquele espaço e aquela angústia”.
“Isso tornou possível fazer um caminho em conjunto. Claro que houve momentos de deslaçamento, não foram tudo rosas, nunca poderia ser, houve também muitos espinhos, mas conseguimos chegar até aqui”, declarou.
A ex-ministra também enalteceu o comportamento dos portugueses. “Se há alguém que mereça um agradecimento e uma palavra de gratidão pela forma como a resposta à pandemia foi dada é a população, porque soube ser muito disciplinada, muito cumpridora, muito responsável, muito solidária”.
“Houve uma fase em que o Ministério da Saúde estava inundado de contactos de pessoas que queriam ajudar”, disse, considerando que esta atitude da população foi “muito importante para os profissionais de saúde superarem os seus medos, as suas dificuldades, os seus cansaços e a sensação de que não podiam falhar a uma população que tinha tanta confiança em si”.
Como medida mais difícil de comunicar, Marta Temido apontou o segundo confinamento, em janeiro de 2021.
“Foi o mais dramático, porque não pensei que voltasse a ser necessário. Estávamos todos já muito cansados e era uma espécie de uma nova condenação a uma situação que sabíamos que tinha efeitos psicológicos, económicos e sociais, muito complexos”, vincou.
Sobre como lidou com a pressão e as críticas neste período, Marta Temido disse que foi com “algum distanciamento”, apesar de por vezes magoarem.
“Não é ficar surdos, nem não refletir. É criar um tampão protetor em relação a algumas coisas, sobretudo saber distinguir a crítica construtiva, que nos ajuda a corrigir caminho, a fazer melhor para a próxima vez, porque erramos todos e erramos muito. E se alguém pensa que não erra, desengane-se. A questão é o que é que se faz com o erro”, salientou.
As inverdades e as notícias falsas: “Hoje ter uma pandemia seria, provavelmente, muito mais difícil”
A antiga ministra da Saúde Marta Temido considera que se aprendeu pouco com a covid-19, dando o exemplo da falta de uma lei de emergência de saúde pública que permita decisões como o confinamento, sem comprometer quem as toma.
“Penso que aprendemos muito pouco, que é para não dizer que não aprendemos nada, em todas as dimensões", nomeadamente na preparação e resposta a uma pandemia, disse, frisando a necessidade de uma lei de emergência de saúde pública que garanta o enquadramento legal necessário para as respostas numa pandemia.
Em maio de 2022, o Governo socialista, liderado por António Costa, apresentou um anteprojeto de lei de proteção em emergência de saúde pública, elaborado por uma comissão técnica, com o objetivo de rever o quadro jurídico aplicável em função da experiência vivida com a covid-19, mas até agora não houve avanços nesse sentido.
Marta Temido apontou a fragilidade do atual quadro jurídico, especialmente no que respeita à aplicação de medidas como o confinamento, lembrando o que se passou no início da pandemia.
“Quando os regressados de Wuhan [cidade chinesa onde foram detetados os primeiros casos de covid-19 no final de 2019] chegam a Portugal, pedimos-lhes que ficassem confinados e correu tudo no melhor dos mundos, mas tinha um texto legal, baseado nas competências de saúde pública do ministro da Saúde” que permitia o confinamento caso não aceitassem. Licenciada em Direito, Marta Temido sabia que “a fragilidade do enquadramento legal desta solução era imensa”.
“Não quereria que outro ministro da Saúde tivesse que se confrontar (...) com a necessidade de escrever um papel que sabe que é frágil”, mas que é a única alternativa para proteger a população, lembrou.
Apesar de reconhecer a importância de proteger “os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”, Marta Temido afirmou que “em determinados momentos não havia alternativa a não ser o confinamento”.
“Mesmo que algumas das medidas fossem hoje, e pouco tempo depois, consideradas absurdas, estávamos a aprender com aquilo que estávamos a fazer”, disse.
“Corremos mesmo o risco de ter boas instalações físicas, bons equipamentos e de não ter profissionais para trabalharem com eles”
Marta Temido disse que gostaria que Portugal tivesse esses instrumentos que permitam “um enquadramento claro, constitucional, de determinadas decisões”, porque não se sabe quando ocorrerá a próxima pandemia, mas ela vai acontecer.
A atual eurodeputada salientou que a falta de preparação e recursos para combater uma futura pandemia também se passa a nível europeu, realçando que a Autoridade Europeia de Preparação e Resposta a Emergências tem “poucos meios financeiros”, estando “muito dependente” da “boa vontade dos Estados-membros”.
“Os Estados-membros esqueceram-se rapidamente daquilo que foi o sufoco da pandemia, até porque outras necessidades aconteceram, a crise energética, a guerra”, sublinhou.
Apontou ainda que “o maior problema das respostas em saúde” é a falta de profissionais e a falta de uma estratégia para a força de trabalho em saúde na União Europeia.
“Corremos mesmo o risco de ter boas instalações físicas, bons equipamentos e de não ter profissionais para trabalharem com eles”, avisou.
Para Marta Temido, as lições aprendidas foram poucas mesmo a nível transversal, considerando que “hoje ter uma pandemia seria, provavelmente, muito mais difícil”.
“Aprendemos pouco para os sistemas de saúde, aprendemos pouco para as nossas várias lutas, as várias dificuldades, a forma como a verdade e a não verdade comungam do mesmo prato e têm o mesmo peso”, comentou.
Alertou para o discurso de desinformação, havendo quem continue a acreditar que “as vacinas trouxeram imensas doenças, imensos problemas de saúde, e que foi tudo uma maquinação para a indústria farmacêutica ganhar dinheiro e para controlar”.
“Há esse discurso, que é absolutamente terrível, insensato e desprovido de racionalidade (...), felizmente, ainda pouco visível em Portugal, mas cada vez mais visível”, lamentou.
Entrevista de Helena Neves (texto), Hugo Fragata (vídeo) e André Kosters (fotos), da agência Lusa