Foram 71 anos de Mitra e 94 de vida. Catarina Maria - assim mesmo sem apelidos, tão incógnitos como o pai e a mãe - morreu esta sexta-feira, 7 de fevereiro. Era a última residente do antigo albergue da mendicidade de Lisboa. O Expresso conheceu-a, e à sua história, durante a realização de uma reportagem e de um documentário, publicados em agosto de 2024, sobre o depósito de gente onde o Estado Novo fechava os indesejáveis, agora transformado num moderno e humanizado lar de idosos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Ela assistiu à evolução sem nunca de lá sair.
Nos armazéns de uma antiga fábrica de cortiça, em Marvila, a ditadura prendeu quem queria ‘limpar’ das ruas da Capital — pedintes, vadios, aleijados, loucos e prostitutas. Rapavam-lhes o cabelo, metiam-lhes uma farda de cotim e um número ao pescoço. Controlados pela PSP, mais de 20 mil adultos e crianças foram ali escondidos do olhar público, muitos por várias décadas. Catarina Maria foi lá colocada em 1954, com 23 anos. Era o 14.378. Foi até ao fim a referência que a identificava no seu processo.
Catarina não falava, dizia apenas algumas palavras soltas ou expressões que lhe permitiam ter o que não dispensava nos seus dias — o “cigarrinho”, o “cafezinho”. O que se sabe da sua história é uma reconstrução da informação que, ao longo das décadas, foi sendo acrescentada nos “despachos respeitantes ao albergado”. São poucas folhas para tão longa vida.
Alentejana de Silveiras, concelho de Cercal do Alentejo, foi criada por uma suposta tia, que tinha também a seu cargo dois rapazes, alegadamente irmãos de Catarina. Todos nasceram com deficiências. Ela tinha os pés deformados, o que nunca lhe permitiu andar. Quando deu entrada na Mitra nem cadeira de rodas tinha — deslocava-se rastejando no chão. “É muito defeituosa”, lê-se no processo original. Abusada por um dos irmãos, engravidou e foi enviada pela junta de freguesia para Lisboa, onde teve o filho em novembro de 1953. O bebé viveria pouco mais de um mês. Morreu a cinco dias do Natal.
“Era de toda a conveniência o internamento desta rapariga num asilo, por ser pobre, aleijada e anormal e, sobretudo, para evitar que amanhã lhe voltem a faltar ao respeito”, pediu então o Instituto Maternal, onde se encontrava após o parto. Catarina foi enviada para a Mitra, enquanto aguardava vaga no Asilo de Marvila. Mas nunca, em lugar nenhum, houve espaço para ela fora dali.
Em 1970, 17 anos depois, tentou-se que saísse do albergue, tendo sido pedido à GNR da terra de origem que lhe procurasse parentes e, caso existissem, apurasse quais eram “as suas condições económicas e morais”. O inquérito enviado pela Mitra e redigido pela Guarda é revelador da desumanidade com que eram tratados estes casos. “Mostrou de jovem tendência para vagabundo? Mostrou, por não ter noção para mais.” “Gostava de trabalhar? Não o podia fazer por ser anormal.” “Doenças que sofreu? Foi sempre anormal.” As respostas foram dadas pela suposta tia, que nunca a visitou e que garantiu que só não lhe prestava auxílio por falta de possibilidades. Dada a situação, a Mitra conclui pela permanência de Catarina no albergue: “Parece-nos um caso sem solução.”
No quarto atual, que partilhava com outra residente do lar, nada ali mostrava as suas sete décadas de morada na Mitra. Não se viam fotografias nem objetos pessoais, apesar de os poder ter, sem limites. Só duas santinhas e um terço. Chegou a ter uma gata, que estava sempre ao seu colo, mas morreu. Tudo o que juntou nestes anos cabe num armariozinho de pinho com meia dúzia de cabides e espaço de sobra. Na mesa de cabeceira guardava as cartas que recebe, na Páscoa e no Natal, de Maria Augusta, uma ‘amiga’ protetora que a apoiou durante vários anos. Dentro do envelope ia sempre uma nota de 20 euros, para o café.
Também dentro da instituição, e na vizinhança, era acarinhada por todos. Diariamente ia ao café do bairro, conduzida na sua cadeira de rodas por outro utente, e reclamava quando demoravam a levá-la. Quando lá chegava, tinha à sua espera um café cheio de açúcar e um cigarro oferecido.
Foi assim até ao fim.