As contas são simples e refletem de forma clara como a Operação Marquês tem vindo a tornar-se cada vez mais complexa e densa à medida que o tempo passa. Foram precisos quatro anos para terminar a investigação sobre vários esquemas de corrupção protagonizados pelo ex-primeiro-ministro José Sócrates e produzir uma acusação, em 2017. Depois, foram mais quatro anos para fazer a instrução do processo e chegar a uma pronúncia, isto é, para decidir quem deveria ir a julgamento. E agora que passaram mais três anos para o Tribunal da Relação de Lisboa concluir a sua apreciação sobre os recursos submetidos contra essa pronúncia, o que vai acontecer?
Confrontado com os 22 crimes que um coletivo de três desembargadoras da Relação decidiram ressuscitar da acusação — e que o juiz de instrução Ivo Rosa tinha descartado como não estando suportados em prova suficiente —, José Sócrates anunciou que ia “utilizar todos os meios legais à sua disposição”.
Adão Carvalho, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, ajudou o Expresso a entender o que é provável acontecer num processo como este, embora não querendo debruçar-se sobre as circunstâncias particulares deste caso. Partindo do pressuposto que uma decisão da Relação sobre uma pronúncia está em conformidade com a acusação produzida pelo Ministério Público (o que aparentemente está, tendo em conta uma leitura superficial das 684 páginas do acórdão divulgado esta quinta-feira), então não pode haver recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e, nesse cenário, “o processo segue para julgamento”.
Sócrates tem sempre a possibilidade de recorrer para o Tribunal Constitucional e invocar a violação da Constituição na forma como foi aplicado o Código do Processo Penal, isto é, uma violação das regras a que os magistrados devem obedecer quando lidam com processos e tomam decisões.
“Por exemplo, se tiverem sido usado meios de prova ilegais”, explica Adão Carvalho. “Mas esses vícios que possam ser levantados não impedem o julgamento de prosseguir. Os juízes do julgamento podem considerar e, inclusive, dar razão aos arguidos quanto a possíveis inconstitucionalidades, mas essas são questões que não impedem o processo de seguir o seu curso.” Para este dirigente sindical, “haverá sempre oportunidade para a defesa recorrer para o Constitucional após o julgamento estar terminado.”
Recurso para o Constitucional pode suspender processo? Pode, mas…
Jorge Pereira da Silva, professor da Universidade Católica especializado em direito constitucional, acrescenta que, na verdade, um recurso para o Tribunal Constitucional pode suspender o processo e obrigar a uma espera até que vá para julgamento, mas só em condições muito especiais e, em princípio, por pouco tempo. “É preciso serem invocadas questões relacionadas com inconstitucionalidades que tenham sido colocadas anteriormente no recurso para a Relação e sobre as quais este tribunal se tenha pronunciado”, esclarece. “Não é possível, pura e simplesmente, trazer novas questões que não tenham sido abordadas pela Relação, porque isso tornaria os processos infindáveis.”
Embora não tenham, aparentemente, alterado os factos que constam na acusação do Ministério Público, as juízas da Relação decidiram alterar a qualificação dos três crimes de corrupção pelos qual Sócrates está acusado. Os procuradores do DCIAP tinham-no acusado de corrupção passiva, mas não chegaram a determinar se praticou atos lícitos ou ilícitos a troco desses subornos, implicando assim uma pena de até três anos de prisão, sendo que o crime tinha uma prescrição de cinco anos. O coletivo de magistradas decidiu agora, pelos mesmos factos de que está acusado, imputar ao ex-primeiro-ministro crimes de corrupção passiva para ato ilícito — o que aumenta a pena para até um máximo de oito anos e cuja prescrição é de 10 anos.
De acordo com uma fonte judicial, a alteração da qualificação jurídica dos crimes feita pela acusação pode eventualmente constituir uma irregularidade processual. Mas a defesa tem um prazo de apenas três dias para reclamar junto do Tribunal da Relação irregularidades como essa. E é a própria Relação a decidir sobre isso.
De resto, Sócrates e os outros arguidos têm um prazo um pouco maior — de 10 dias seguidos — para invocarem nulidades processuais. Depois, o Ministério Público tem 10 dias para responder e a Relação tem mais 10 dias para decidir, antes de enviar o acórdão desta quinta-feira para o tribunal da primeira instância onde Sócrates e o seu amigo Carlos Santos Silva (alegado testa de ferro para 34 milhões de euros de subornos que o chefe de governo terá alegadamente recebido) irão ser finalmente julgados.