Sociedade

Pelo menos 1,8 milhões de portugueses desconfortáveis em casa neste inverno

Somos das populações com maior pobreza energética da União Europeia: o custo continua a ser um obstáculo ao conforto

Inês Loureiro Pinto (texto), Carlos Esteves (infografia) e Cristiano Salgado (ilustração)

A estratégia de longo prazo de combate à pobreza energética foi aprovada em Conselho de Ministros no final deste novembro. Inserida no Plano Nacional Energia e Clima 2021-2030, compromete-se a apoiar os portugueses — entre 1,8 e 3 milhões — com “incapacidade ou dificuldade em aceder a vários serviços de energia aos níveis adequados”. Estima-se que entre 609 a 660 mil dessas pessoas estejam em situação de pobreza energética severa. Um dos objetivos é diminuir o número de pessoas que vive “sem capacidade para manter a casa adequadamente aquecida” para 10% até 2030, 5% em 2040 e finalmente menos de 1% em 2050. Em 2022, o valor estava nos 17,5%.

Os portugueses estiveram sempre no topo da lista dos países da União Europeia (UE) com maior incapacidade para aquecerem a casa. A maior percentagem afetada pelo frio em Portugal registou-se em 2007, segundo o Eurostat: 41,9%, em segundo lugar face à Bulgária (67,4%), que aderiu à UE nesse ano e lidera a lista anual desde então. O valor foi diminuindo para metade ao longo dos anos, tendo atingido o mínimo em 2021 (16,5%). Em 2022 registou-se um ligeiro aumento, igualando o valor do ano da pandemia. O cenário piora nos agregados unipessoais, com as mulheres idosas a sofrerem mais: 28,4% afirmam não conseguir aquecer as suas casas.

Enquanto na maioria dos países da Europa são habituais sistemas de aquecimento fixos, o parque habitacional português é, por tradição, pouco eficiente. Para João Pedro Gouveia, da Universidade Nova de Lisboa, essa é a “questão de base” da pobreza energética. “O primeiro regulamento térmico para os edifícios só apareceu em 1990, muito depois da maioria dos países europeus”, aponta o investigador principal do Cense — Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade. Ainda que atualmente as novas construções sejam mais bem isoladas, segundo Manuel Casquiço, diretor da área de indústria e transição energética da Agência para a Energia (Adene), continua a haver um problema de “fiscalização de obras, principalmente privadas”.

De acordo com dados da Adene, em 2022, cerca de dois terços das habitações avaliadas em Portugal tiveram uma classificação energética pouco eficiente, entre C e F. Manuel Casquiço identifica, no entanto, uma “melhoria da classe energética dos edifícios antigos” atribuída à onda de reabilitação a que se tem assistido nos últimos anos. O problema parece imputar às famílias uma decisão pelo mal menor: gastar dinheiro em obras ou optar pelo aquecimento elétrico, que pesa na fatura ao final do mês.

Em 2018, o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa conduziu uma primeira auscultação às práticas energéticas dos portugueses. Em 100 agregados familiares entrevistados, 56 referiram que “a casa onde vivem é simultaneamente fria ou muito fria no inverno e quente ou muito quente no verão”. Foi o elevado custo da energia que a maioria dos entrevistados elegeu como maior razão para o desconforto. “A maioria dos entrevistados diz adotar práticas básicas, como vestir mais roupa, agasalhar-se com mantas e cobertores ou ir dormir mais cedo, em vez de recorrer a equipamentos para aquecer a casa, por não poderem pagar o custo da energia que seria necessária para se aquecerem adequadamente”, conclui a investigação.

Em 2021, apenas 30,8% da energia consumida nas habitações portuguesas foi usada em aquecimento, enquanto a média da UE se fixou nos 64,4%, segundo o Eurostat. No mesmo ano, Portugal foi o segundo menor consumidor europeu de energia elétrica por agregado. “Em Portugal o aquecimento da casa é negligenciado, considerando-se normal e aceitável sentir frio em casa durante o inverno”, conclui um relatório de Ana Horta e Luísa Schmidt, baseado na investigação do ICS-ULisboa. “As pessoas com pobreza energética não são só pessoas em pobreza; elas podem ter bom rendimento mas estar em casas que precisam de intervenção, e é por isso que é difícil identificá-las”, nota Manuel Casquiço. A despriorização do aquecimento no bolo das despesas familiares faz com que se descartem mais facilmente as soluções mais sustentáveis, mesmo que signifiquem maior eficiência energética a longo prazo, pelo preço. Por exemplo, uma bomba de calor ou ar condicionado, no momento da compra, é bastante mais dispendioso do que um aquecedor elétrico, mas, de acordo com a Deco, um equipamento de ar condicionado a operar quatro horas por dia, cinco meses por ano, gasta cerca de 330 kilowatts hora (kWh), enquanto um termoventilador pode gastar quase quatro vezes mais, o que se reflete proporcionalmente no custo da energia. Para os especialistas em eficiência energética, não há dúvidas de que a estratégia mais eficaz para combater a pobreza energética é apostar na renovação da estrutura: “Isolamento interior ou exterior, operar as janelas de vidro simples para caixilharias com corte térmico e vidros duplos”, lista João Pedro Gouveia.

O Programa Vale Eficiência reabriu para candidaturas no final de novembro e estende-se até ao final do mês de outubro de 2024, ou assim que os €104 milhões disponibilizados para esta segunda edição do apoio esgotarem. Desta vez, cada beneficiário pode receber até três vales no valor de €1300 (mais IVA) cada, e também arrendatários podem candidatar-se. Os vales podem ir para a substituição de janelas ou para a instalação de sistemas de aquecimento ou arrefecimento que recorram a energias renováveis e equipamentos de energia renovável para autoconsumo.

Deste Vale Eficiência ficam de fora as intervenções no isolamento das casas, que estarão reservadas para um outro futuro programa. Apesar destes apoios, João Pedro Gouveia considera que “a escala do problema é muito superior”. Uma análise feita pela Nova indica que renovar todas as habitações do país para a eficiência energética custaria, no mínimo, €71,7 mil milhões. Da segunda fase do Programa de Apoio a Edifícios Mais Sustentáveis, em cerca de 80 mil candidaturas financiadas, apenas 2% dos beneficiários escolheram melhorar o isolamento da habitação, enquanto 25% optaram por substituir janelas. Em 2024 espera-se um inquérito a nível nacional sobre a pobreza energética que vai caracterizar com mais rigor esta realidade em Portugal.