Não é apenas a esperança média de vida dos humanos que tem vindo a aumentar – também os cães vivem cada vez mais tempo. Recentemente, um cão português foi notícia um pouco por todo o mundo: aos 30 anos, Bobi é oficialmente o cão mais velho a nível global. Mas o que justifica a crescente longevidade destes animais de estimação?
Desde logo, existem fatores genéticos que estão relacionados diretamente com a raça: cães de grande porte “vivem menos” do que cães de raças pequenas, explica ao Expresso a médica veterinária, Felisbina Queiroga. Um Grand Danois, por exemplo, entra na idade geriátrica “por volta dos sete anos”, podendo viver até aos dez ou onze, enquanto um caniche pode chegar aos 15 anos ou mais.
A vacinação e a desparasitação, enquanto medidas profiláticas, são um fator determinante. “Quando os animais são vacinados e desparasitados convenientemente desde tenra idade, ficam livres de uma série de doenças que podem comprometer a sua longevidade e a esperança de vida”, esclarece a também professora de medicina interna e oncologia na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD).
Há ainda a questão nutricional: a atual oferta de “inúmeras rações de muito boa qualidade” contribui para uma melhoria do estado de saúde dos animais de companhia. Tudo isto associado a “tutores mais comprometidos”. “Estes animais fazem verdadeiramente parte da família e, por isso, temos de cuidar deles. Existe um vínculo emocional muito marcado.”
Bobi, que vive numa aldeia em Leiria, contraria as expectativas: além de se alimentar com “comida humana”, é um rafeiro do Alentejo, raça cuja esperança média de vida se situa entre os 12 e os 14 anos. Segundo o Guinness World Records, é não só o cão mais velho do mundo, como o mais velho de sempre. Está de boa saúde e vai regularmente ao veterinário.
Os cuidados médico-veterinários são, segundo a professora da UTAD, “cada vez de melhor qualidade”, com uma maior disponibilidade de meios complementares de diagnóstico, numa evolução que, em Portugal, se tem registado sobretudo nos últimos dez a 15 anos, a par com uma “maior sensibilização, na própria sociedade, relativamente aos animais”.
“Estes animais fazem verdadeiramente parte da família. Existe um vínculo emocional muito marcado.”
Cancro é cada vez mais comum
Mas, ao viver mais tempo, também surgem problemas: neste contexto de um “recente, drástico e generalizado” aumento da longevidade, o cancro é a principal causa de morte em cães adultos. “A prevalência está fortemente, ainda que não exclusivamente, associada à idade”, sintetiza Cláudia Baptista, mestre em oncologia e professora no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) da Universidade do Porto.
“A população de animais geriátricos aumentou, daí que também tenhamos uma maior incidência de cancro nesses animais”, aponta Felisbina Queiroga. “Não é de espantar, porque à medida que temos animais que vivem mais tempo, vamos ter animais que vão desenvolver, com maior probabilidade, uma doença oncológica.”
Um dos tipos de cruzamento feito pelos criadores de cães, o inbreeding, é um fator que pode contribuir para o desenvolvimento de patologias do foro oncológico. “Se estamos a fazer consanguinidade, a cruzar demasiado dentro da mesma família, podemos potenciar mutações, diminuindo a variabilidade genética e aumentando a ocorrência de tumores”, explica a professora da UTAD.
Aliás, “a criação seletiva de múltiplas raças de cães predispõe esses animais a um vasto número de problemas de saúde física e comportamental”, enquadra Cláudia Baptista. “Nos animais de companhia, a manipulação genética tem como principal intuito acentuar características físicas consideradas esteticamente apelativas”, aponta. Por exemplo, a pele “excessivamente enrugada” do Shar Pei “potencia a ocorrência de infeções cutâneas” ou, nos casos do buldogue e do pequinês, as “alterações anatómicas das vias aéreas superiores causam obstrução parcial”.
Já o campo da oncologia veterinária tem vindo a desenvolver-se, sobretudo ao nível “da promoção da medicina preventiva para um diagnóstico precoce, do conhecimento sobre fatores de prognóstico e da evolução da terapêutica”, enumera a docente do ICBAS.
“A elevada prevalência do cancro em animais de companhia, aliada à crescente ligação emocional que os detentores lhes dedicam, tem contribuído para desenvolver o conhecimento científico” na área. Isto é, por um lado, “o aumento do número de animais afetados pela doença potencia um maior conhecimento sobre a mesma” e, por outro, “a maior ligação emocional dos detentores com os seus animais promove uma maior disponibilidade financeira para os cuidados de saúde”.
“À medida que temos animais que vivem mais tempo, vamos ter animais que vão desenvolver, com maior probabilidade, uma doença oncológica.”
Só que há uma dificuldade: ao contrário da medicina humana, em que estão estabelecidas orientações para se realizarem rastreios em certa idade para determinados tipos de cancro mais prevalentes, tal não existe na veterinária. A prevenção assenta na recomendação de visitas periódicas ao veterinário, onde são feitas análises clínicas e exames de diagnóstico por imagem. E, a partir do momento em que o animal entra na idade sénior, há um “painel analítico” que é seguido para acompanhar possíveis alterações, destaca Felisbina Queiroga.
“Os detentores são também encorajados a assumir responsabilidade na prevenção do cancro dos seus animais, sendo a castração precoce um ótimo exemplo, assim como a observação periódica dos hábitos urinários e intestinais, palpação da glândula mamária ou a observação da boca e dos ouvidos”, refere Cláudia Baptista.
No entanto, toda esta monitorização “não deteta doença pré-clínica”, daí a importância de “investir em metodologias capazes de identificar o potencial desenvolvimento de doença oncológica, como poderá ser o caso da biopsia líquida”, assim como “estabelecer critérios – idade, raça, peso, sexo – que determinem quando efetuar o rastreio precoce para cada animal”, considera a professora do ICBAS.
Futuro do rastreio
É isso que propõe um estudo divulgado no início do mês na revista científica Plos One. Ao analisar dados de 3452 cães diagnosticados com cancro, conclui que a idade média no diagnóstico foi de 8,8 anos, sugerindo que “pode ser razoável considerar o rastreio anual do cancro começando dois anos antes da idade média no diagnóstico do cancro para cães de raça ou peso semelhantes”.
Seguindo esta lógica, a recomendação geral seria “iniciar o rastreio do cancro para todos os cães aos sete anos de idade e logo aos quatro anos de idade para as raças com uma idade média inferior no diagnóstico do cancro, a fim de aumentar a probabilidade de deteção e tratamento precoces”.
O estudo, liderado pela geneticista Jill Rafalko, aborda um método inovador que “abre novas oportunidades” para a deteção precoce do cancro na medicina veterinária – a biopsia líquida. Cláudia Baptista explica que se trata de recolher uma amostra de sangue de um vaso periférico, a partir da qual se faz uma sequenciação que “permite identificar alterações genómicas derivadas de determinados tipos de cancro, antes mesmo de se detetarem sinais clínicos”.
Para Felisbina Queiroga, haverá “grandes benefícios” em dispor deste tipo de análise, nomeadamente já depois de o animal ter feito quimioterapia devido a um tumor maligno. A seguir ao tratamento, a biopsia líquida poderá ser importante para “perceber se existe doença residual mínima, ou seja, se ainda existem células neoplásicas em circulação”.
O procedimento já existe na medicina humana e é aqui que a professora da UTAD recorda o conceito de “uma só saúde” – a ligação enquanto um todo, além do ambiente, da medicina humana com a veterinária. “Se a medicina humana começar a olhar para a medicina veterinária como uma parceira, em que a medicina veterinária beneficia, mas a humana também, talvez possamos na veterinária evoluir muito mais rapidamente.”