Todos os alunos levam trabalhos para casa, mas a Afonso Muralha calhou um satélite inteiro, quando chegou a pandemia. Apesar da missão pouco comum, este aluno do Instituto Superior Técnico (IST), em Lisboa, cumpriu com esmero o TPC, para garantir que não havia atrasos no desenvolvimento do ISTSat-1, que tem lançamento agendado para o final de 2022. “Ocupou um pouco de espaço lá em casa, mas não muito. Foi algo que permitiu fazer testes remotos (quando os confinamentos fecharam os laboratórios)”, explica o jovem, que faz parte do grupo de cerca de 30 alunos do IST que têm vindo a desenvolver o ISTSat-1.
Sendo um cubo com 10 centímetros de aresta, o ISTSat-1 dificilmente se distingue pelas dimensões – e esse terá sido o principal fator que permitiu que um dos alunos pudesse manter em casa um modelo de satélite durante um mês, para que o projeto não parasse durante a pandemia. Em contrapartida, o pequeno ISTSat-1 tem tudo para se distinguir pelo serviço que pretende demonstrar quando chegar ao Espaço e começar a localizar aviões que viajem em locais mais remotos.
“Acredito que pode ser aproveitado para explorar um novo tipo de serviços. O modelo que desenvolvemos já passou por vários testes de qualificação para o Espaço, e tem dado boas respostas aos requisitos de redundância e de resistência a colisões com pequenas partículas”, sublinha Afonso Muralha.
O satélite do IST pretende funcionar como prova de conceito de uma nova via de comunicação com aviões através de comunicações conhecidas pela sigla ADSB. Historicamente, a localização dos aviões é garantida através de comunicações por radiofrequências entre aeronaves e estações-base situadas em terra – o que deixa de fora parte dos percursos por cima dos oceanos.
O desaparecimento de alguns aviões com centenas de pessoas a bordo nas primeiras décadas do milénio levou companhias aéreas, autoridades e comunidade de engenheiros a pensar em soluções alternativas que garantissem a monitorização de aviões nos extensos percursos sobre os oceanos – precisamente para apurar em tempo real algum incidente durante o voo. Foi assim que a constelação de satélites Iridium passou a disponibilizar a monitorização de aviões durante o sobrevoo dos oceanos. O que não impede os investigadores do Técnico de acreditarem que podem fazer a diferença.
“Há constelações, como a Iridium, que prestam este tipo de serviço, mas usam satélites bem maiores. O sistema que desenvolvemos é mais pequeno e barato e consome menos energia”, explica Rui Manuel Rocha, professor do Instituto Superior Técnico que tem supervisionado o desenvolvimento do ISTSat-1. Idealizado desde 2012, o protótipo começou a ser construído apenas em 2017, já com a seleção para o programa Fly Your Satellite, da Agência Espacial Europeia (ESA) no horizonte.
Em cinco anos, três dezenas de alunos de licenciatura, mestrado e doutoramento de vários departamentos do Técnico assumiram a missão de acrescentar novas funcionalidades e ferramentas tecnológicas de dois protótipos e de um modelo final que está em fase de montagem definitiva, que precede o lançamento, agendado para o final de setembro, a bordo do voo inaugural do lançador Ariane 6, na base de Kourou, na Guiana Francesa.
“Como se trata de um lançamento inaugural, é natural que possa sofrer adiamentos, mas em princípio o ISTSat-1 irá para o Espaço até ao final do ano”, acrescenta Rui Manuel Rocha.
O ISTSat-1 é composto por cinco módulos. Há um primeiro que assegura o controlo de “atitude” (a direção e a orientação do veículo), um segundo para a gestão da bateria e da energia captada pelos painéis solares, e um terceiro que assegura o armazenamento e a descodificação de mensagens. Um quarto módulo comunica na faixa de frequências dos 430 MegaHertz (MHz) e um quinto executa a função mais diferenciadora do satélite com comunicações em ADSB com os aviões na faixa de frequências dos 1,09 GigaHertz (GHz).
Para recolherem dados do satélite, os investigadores contam estabelecer comunicações de rádio a partir de terra, que permitem descarregar, por sua vez, a informação relativa à localização das aeronaves que vai sendo recolhida nas comunicações de rádio que o satélite estabelece com as aeronaves através do protocolo ADSB.
As comunicações com Terra deverão começar a estabelecer-se quando o ISTSat-1 já se encontrar a fazer órbitas a 580 quilómetros da Terra, com velocidades médias de 7,57 quilómetros por segundo, que serão suficientes para concluir uma volta ao Globo em apenas 1h36m. No Técnico há a expectativa de que o ISTSat-1 possa demorar cinco a seis anos até sair de órbita e desintegrar-se. Contudo, a operacionalidade que permite localizar aviões por ADSB poderá não durar mais de dois a três anos, devido às condições agressivas do Espaço.
Antes de mostrarem ao mundo que é possível criar uma constelação de satélites que garante localização de aviões com custos reduzidos, os criadores do ISTSat-1 tiveram de demonstrar capacidade para superar vários desafios associados ao facto de o pequeno satélite não ter o mesmo arsenal tecnológico que existe nos veículos espaciais de maiores dimensões ou até de muitos dos computadores que se encontram em Terra. “Tivemos de recorrer a técnicas que ajudam a reduzir o consumo de memória, energia e capacidade de processamento”, explica Joana Sá, aluna do Técnico que participou no desenvolvimento do pequeno satélite cúbico.
“Os códigos que desenvolvemos tiveram de ser muito bem testados, porque depois de enviarmos o satélite para o Espaço já não haverá possibilidade de os alterar”, acrescenta Rafael Branco, aluno do Técnico que também tem participado no projeto.
Com as exceções dos painéis solares e da antena que vai ficar virada para a Terra para garantir as comunicações com os aviões, todos os módulos do ISTSat-1 foram construídos por alunos e professores. Rui Manuel da Rocha recorda Alfredo Bensaúde, fundador do Técnico, quando defendia que o ensino da engenharia e das ciências tinha de ir além da retórica e tentar produzir resultados práticos para a comunidade.
“Mesmo que venha a ser lançado e que, por alguma razão, acabe por não funcionar, já ganhámos imenso com este satélite ao nível da aprendizagem”, conclui. A contagem decrescente já começou.