Sociedade

Projeto da FCT-Nova apresenta soluções para um “crime assustador”

Os gases que permitem refrigerar frigoríficos e ares condicionados estão a ser mal eliminados por toda a Europa e alvo de um mercado negro que não cumpre as regras europeias. Para ajudar a enfrentar o problema, uma equipa internacional coordenada por dois investigadores da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova, tem soluções. O projeto chama-se KET4F-Gas

Sean Gallup

Todos os têm em casa, dentro do frigorífico ou do equipamento de ar condicionado. São gases fluorados, mais conhecidos como F-gases. Estes compostos estão contidos num pequeno compartimento localizado no interior dos equipamentos e só se tornam um problema quando são mal descartados ou eliminados. Se libertados na atmosfera, têm um potencial de efeito de estufa 23 mil vezes superior ao do dióxido de carbono (CO2), alertam os cientistas. E, por isso, têm de ser tratados adequadamente.

Para controlar este problema, uma equipa coordenada pelos engenheiros químicos Ana Pereiro e João Araújo, investigadores da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova, tem trabalhado num projeto que pretende encontrar “uma solução circular para reduzir o impacto ambiental dos gases fluorados”. O “KET4F-Gas” está na reta final e os resultados vão ser debatidos com “stakeholders” do sector, entre os quais fabricantes, gestores de resíduos, entidades da administração pública, associações de consumidores e de ambiente, num webinar que se realiza esta sexta-feira, na FCT-Nova.

Quando os F-gases (como os hidrofluorocarbonetos - HFC) surgiram na década de 90 do século XX, o objetivo era o de acabar com o flagelo de outros gases (como os clorofluorcarbonetos - CFC) que contribuem para a camada de ozono. “Os F-gases surgiram como a solução ideal porque não eram tóxicos nem inflamáveis e não destruíam a camada de ozono, mas com o tempo descobriu-se que contribuem grandemente para a concentração de gases de efeito de estufa (GEE) na atmosfera, quando não são manipulados de forma eficaz e eficiente. Já se forem tratados num sistema integrado, sem fugas de emissões, estes gases são seguros”, explica ao Expresso Ana Pereiro Estévez.

Aposta na sensibilização

A questão é que para serem tratados de forma segura e cumprindo as regras, as empresas têm de pagar por tecnologia, a fiscalização ambiental tem de apertar e os sistemas de gestão destes resíduos têm de funcionar de forma mais eficiente. Como isso não está a acontecer, “estima-se que cerca de 80 a 90% dos frigoríficos e ares condicionados que chegam às gestoras de resíduos já vêm sem os compressores que contêm o gás fluorado, que entretanto foi libertado para atmosfera, porque pelo caminho foram desmantelados por sucateiros que retiram o cobre e outros materiais com mais valor”, acrescenta a engenheira química da FCT-Nova.

Para tentar travar este tipo de comportamento, o “KET4F-Gas” inclui uma componente de sensibilização dirigida aos utilizadores destes equipamentos, em várias fases. “A pessoa que compra um frigorífico, por exemplo, pode usar a nossa ‘app’ (que tem uma escala similar à dos códigos energéticos) e verificar quanto é que este ou aquele modelo contribui para o aquecimento global. E quando recorre a técnicos para a manutenção do equipamento, deve verificar se são certificados e assegurar-se de que estes cumprem as regras”, aconselha Ana Pereiro.

Já para os produtores dos equipamentos e para os gestores dos seus resíduos no final de vida, o projeto inclui um manual de boas práticas que inclui informação técnica sobre os compostos e mistura dos refrigerantes e as tecnologias disponíveis para a sua separação e recuperação no fim do ciclo de vida.

Recuperar e reutilizar com nanotecnologia

“A busca de tecnologias inovadoras que permitam recuperar, separar e reciclar F-gases, aplicando princípios de economia circular é um dos focos inovadores deste projeto”, sublinha João Araújo. Foram desenvolvidos dois protótipos, “que permitem separar os gases em compostos puros que podem ser reutilizados nos novos refrigerantes com um potencial de aquecimento global muito mais baixo”, explica o engenheiro químico.

Atualmente, apenas 1% dos F-gases são recuperados no final do seu ciclo de vida na Europa. “A maioria vai para incineração libertando compostos nocivos para o ambiente e contribuindo para o aquecimento global”, lamenta o investigador. Os protótipos desenvolvidos pelos investigadores utilizam nanotecnologia que “permite separar e recuperar o F-gás R-32, presente em misturas do refrigerante R-410A, com uma pureza superior a 98%”. O que, afiança, “em 10 anos, permite uma poupança ambiental entre 60 e 70% em emissões de CO2 em comparação com o sistema atual de produção e incineração deste tipo de compostos”. Para o cientista não há dúvidas de que, “se apostarmos na economia circular criando um produto que pode ser reutilizado, estamos não só a mitigar os GEE como a ser competitivos em relação a outros países”.

O problema do mercado negro

O uso de refrigerantes como o R410 está em 'phase down' na Europa até 2030. A União Europeia quer reduzir em 79% o consumo de gases fluorados (F-gases) até 2030, e estabeleceu regulamentos apertados para retira-los progressivamente do mercado europeu.

Contudo, alerta Ana Pereiro, “continua a existir um mercado ilegal de F-gás que viola a diretiva europeia" (aprovada em 2014 e que entrou em vigor em Portugal em 2017) e “há empresas que falsificam registos de refrigerantes para continuar a utiliza-los na UE”.

Um relatório da Agência de Investigação Ambiental (Environmental Investigation Agency), divulgado em julho passado, aponta o comércio ilegal de gases fluorados como “o crime mais assustador para a Europa”. A investigação da organização não governamental de ambiente, com sede em Londres, considera que as ambições europeias de combate às alterações climáticas “estão a ser minadas pelo atual comércio ilegal destes gases” e aponta a Roménia como a principal porta de entrada de produtos de um mercado negro que parte da China e passa pela Turquia e pela Ucrânia antes de entrar na UE. Segundo a EIA, o volume de HFC ilegais que entra por ano equivale à emissão de 6,5 milhões de carros a circular na Europa.

Uma questão de fiscalização

Quanto à fiscalização ou falta dela em Portugal e nos países europeus, João Araújo sustenta que “os problemas são transversais a toda a Europa. E Ana Pereiro lembra que “não se conhece um único caso em que tenham sido aplicadas multas” relacionadas com este tipo de fraude. Além das conversas que vão tendo com entidades nacionais com esta responsabilidade, como a Agência Portuguesa do Ambiente em Portugal, os investigadores também vão apresentar o projeto e discutir soluções para o futuro com eurodeputados, numa reunião que se vai realizar em Baiona (França) a 22 e 23 de setembro. O objetivo é chamar a atenção para o impacto da legislação europeia no controlo dos problemas expostos.

“Como a sociedade não consegue viver sem estes refrigerantes, essenciais para manter as vacinas da covid na temperatura adequada ou para refrescar casas num clima cada vez mais quente”, lembra João Araújo, “a solução é ter um sistema adequado para lidar com estes gases”.

Estimativas apontam para que a crise climática potencie o aumento de recurso a gases refrigerantes e que estes aumentem o seu contributo para a acumulação de gases de efeito de estufa em 12% até meados do século.

“É preciso consciencializar a indústria e a sociedade para os riscos destes gases para o meio ambiente e para as vantagens que decorrem de uma adequada gestão destes compostos”, reforçam os investigadores.

O “KET4F-Gas” envolve a participação de 13 sócios e seis entidades associadas de Espanha, Portugal, França e Emirados Árabes Unidos, tendo a equipa da FCT Nova como coordenadora. O projeto contou com um investimento de 1,7 milhões de euros, cofinanciado pelo Programa Interreg Sudoe do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER).