Sociedade

A pandemia e o fim da sociedade civil

José Conde Rodrigues*

Aléxis de Tocqueville, quando escreveu a Democracia na América, nos anos trinta do século XIX, caracterizou a sociedade civil, como uma miríade de pequenas comunidades de base, que intermediavam a democracia representativa.

Ao contrário, os governos autoritários de todos os tempos, sempre destruíram esse chão comum, essas entidades intermédias, agregadoras de interesses e valores partilhados, de modo a edificar uma relação direta, fria, nua, entre o cidadão e o Estado. O ressurgimento do populismo, aliás, assenta nessa relação direta entre o povo e o líder, sem qualquer mediação das supostas elites da sociedade civil.

A pandemia, associada à massiva difusão das tecnologias digitais, veio acentuar a destruição desse chão intermédio moderador, veio destruir os laços dessa sociedade civil e fortalecer, por sua vez, a tal relação direta do indivíduo com o Estado e do consumidor com as grandes corporações financeiras, logísticas e tecnológicas. A pandemia está, pois, lentamente, a matar a sociedade civil.

Reconheço algum dramatismo, pois muitos afirmam que se trata de um fenómeno conjuntural, ainda assim, entendo que assistimos ao fim da sociedade civil, ao declínio dessa indispensável teia de pequenas sementes de colaboração, consenso, convergência, esse cimento empático entre o indivíduo, a família e a sociedade política.

Mais preocupante, ainda, se acrescentarmos a este tsunami digital, o impacto das novas redes sociais, aparentemente fomentadoras da liberdade e da transparência, mas que, afinal, filtram conteúdos, induzem informações subliminares para consumo ou criam desinformação política, não se submetendo a qualquer imperativo moral, deontológico ou a qualquer virtual superego.

Estamos, no fundo, perante uma espécie de vento digital, que sopra através da sociedade, quebrando os seus laços tradicionais, envenenados pelo medo, ansiedade e anomia. Uma distopia cada vez mais real do que esperaríamos, mas, infelizmente, tão do agrado de muitos líderes autoritários em todo o mundo e que faz as delícias de quem elogia e inveja o disciplinado modelo chinês.

A pandemia está, também, a mudar o panorama económico, com as empresas maiores a levaram a melhor sobre as mais pequenas e com as empresas de tecnologias, comunicações, saúde e comércio eletrónico, a levarem a melhor sobre as tradicionais. Ou, no mercado de trabalho, com os profissionais mais instruídos a trabalhar em casa e a manter o rendimento, enquanto os outros andam na rua, correndo riscos, podendo perde o emprego e o rendimento.

Não é só uma nova era digital ou uma nova revolução energética e ambiental que estão em causa, como muitos defendem. Trata-se, sobretudo, duma explosiva mudança de hábitos e padrões de vida à escala global, que transformará, inexoravelmente, a economia tal como a conhecemos até agora.

Se a esta transformação em curso, somarmos o confinamento que está a ser abruptamente imposto, justificado pelo combate à pandemia, ao funcionamento normal das diversas associações, clubes, grupos de reflexão, coletividades, cafés, habituais pontos de convívio cívico que compõem a esfera pública da nossa modernidade, então, assistiremos a uma mudança social sem precedentes.

Em suma, quando só falamos através da internet, quando deixamos de partilhar o mesmo espaço físico no trabalho, na escola, na associação de bairro, no recinto desportivo, no café de bairro, no teatro ou no cinema, que restará da sociedade civil?

Será que vivemos bem, sem estruturas físicas intermédias de natureza comunitária, social e cultural? Será que viver num cibermundo, numa ciberdemocracia, numa cibereconomia, em cibertrabalho, numa cibersociedade, nos transformará em melhores humanos? Ou será que estamos apenas a antecipar a já famosa singularidade, entre cérebro e máquina, que tantos promovem e celebrizam?

Não será, seguramente, o melhor caminho para quem defende a liberdade, a responsabilidade, o pluralismo de opinião e a tolerância social. Por mim, prefiro, sem nostalgia, e usando o título de Stefan Zweig, continuar a celebrar O Mundo de Ontem!

* José Conde Rodrigues é advogado e professor universitário