O Programa Just Security 2020 pretende reforçar a capacidade de governança global da ONU para lidar com os grandes desafios do século XXI. Richard Ponzio é também membro sénior do Stimson Center. Anteriormente dirigiu o Programa de Governança Global no Instituto de Justiça Global de Haia (Países Baixos), onde ocupou o cargo de diretor do Comissão Albright-Gambari sobre Segurança Global, Justiça e Governança.
Desde 23 de setembro, a Casa Comum da Humanidade (CCH), organização global com sede em Portugal, na Universidade do Porto, está a realizar uma campanha de divulgação internacional da sua iniciativa “Um Sistema Terrestre, um Património Comum, um Pacto Global”, em parceria coma a agência de notícias The Planetary Press. A campanha conta com uma série de entrevistas feitas por esta agência, gravadas em podcast e transcritas em inglês, português e espanhol – as “Conversas da Casa Comum ONU75” – a personalidades de projeção internacional. As primeiras 14 entrevistas são acompanhadas por vídeos com animações sobre as propostas da CCH.
O Expresso publica todas as quartas-feiras uma entrevista e um vídeo associado enquanto durar a campanha, que está também a decorrer nas redes sociais e através de newsletters. Pode ver as nove primeiras entrevistas e vídeos em: Will Steffen, Maria Fernanda Espinosa, Izabella Teixeira, Paulo Magalhães, Karl Burkart, Janene Yazzie, Kim Sang-Hyup, Hindou Ibrahim e Prue Taylor. E pode ouvir a entrevista completa, em inglês, a Richard Ponzio AQUI.
A CCH propõe o reconhecimento do Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade, para restaurar um clima estável, criar um novo modelo de governança para os recursos naturais comuns do planeta e promover um novo Pacto Global para o Ambiente junto da ONU, que acabe com o atual impasse nas negociações climáticas. Para concretizar este objetivo, a CCH está a organizar uma coligação global de conhecidos cientistas do Sistema Terrestre e da sustentabilidade, juristas, economistas, sociólogos, Estados soberanos, ONG, organizações internacionais, autoridades e comunidades locais, povos indígenas e universidades.
A Casa Comum da Humanidade tem como fundadores sete universidades portuguesas, a ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, o Ministério do Ambiente e Ação Climática, as Câmaras Municipais do Porto e de Gaia e especialistas de todo o Mundo. E tem também uma série de parceiros além da The Planetary Press, como a Global Pact Coalition/Club de Jurists (França), a organização One Earth da Rockefeller Philanthropy (EUA), a MAHB – Millennium Alliance for Humanity and the Biosphere da Universidade de Stanford (EUA), o IIDMA - Instituto Internacional de Derecho y Medio Ambiente (Espanha), a Rede CPLP Ambiente (Portugal), três universidades brasileiras, a The Planetary Accounting Network, a organização Global Voice (EUA), a Australian Earth Laws Alliance (Austrália) ou a Coalition for Our Common Future (Coreia do Sul).
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Como tem corrido o programa que dirige no Stimson Center?
O programa é focado na ONU e na governança global, na sua inovação e fortalecimento, de modo a tornar o sistema internacional mais inclusivo em relação aos representantes da sociedade civil, que trabalham com governos e organizações internacionais como as Nações Unidas para enfrentar os desafios do século XXI, que vão das alterações climáticas ao aumento da violência em várias regiões do Mundo e à pandemia, que está hoje na mente de todos.
Estamos a passar por crises de saúde global, do clima e da biodiversidade. Estas crises podem tornar-se a base para encontrar novas soluções multilaterais para os problemas comuns, como o Pacto Global para o Ambiente em discussão na ONU?
Não sei quais seriam os resultados de debate entre os 193 Estados-membros da ONU para repensarem o atual sistema multilateral. Mas estamos muito empenhados em procurar soluções, capacidades, ideias, mobilizar redes da sociedade civil global que possam trabalhar em conjunto, como movimentos sociais, ONG, instituições académicas, think tanks como o Stimson Center, o setor privado ou a comunidade de negócios – incrivelmente rica em talentos, especialistas e recursos financeiros. E que possam também trabalhar com governos e organizações internacionais. Nunca houve uma conjugação tão grande de desafios como agora, que forçou a comunidade internacional a repensar como está organizada para os enfrentar. Seja a ONU, o Banco Mundial ou agrupamentos informais de Estados como o G20.
Então, o Pacto Global para o Ambiente pode ser uma boa solução multilateral?
É fundamental. Temos uma série de acordos internacionais dispersos e por isso precisamos de discutir quais são os princípios fundacionais comuns entre as convenções sobre alterações climáticas, biodiversidade e centenas de outras que lidam com o ambiente. Se tivermos mais coerência, sentido de visão e um roteiro através do Pacto Global para o Ambiente, este vai emergir da solidariedade que estamos a ver em todo o Mundo em resultado da pandemia da Covid-19. E assim construiremos uma identidade comum, uma cidadania global, para trabalharmos na resolução de problemas comuns. Como vemos hoje, as questões da saúde estão intimamente relacionadas com as questões ambientais, o que significa que é decisivo ter uma abordagem interdisciplinar para as resolver em conjunto.
Portanto, a cooperação entre todos é decisiva.
Absolutamente. E é por isso que são importantes as cimeiras anuais da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas e todo o trabalho que levou à criação da Agenda 2030 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável que, através de consultas online mostrou como estes processos de formulação de políticas da ONU podem ser inclusivos. E a mesma coisa precisa de acontecer na discussão do Pacto Global para o Ambiente. As ideias não podem vir só do Secretariado da ONU ou do setor privado, mas de toda a Humanidade.
Como especialista em políticas, governança e relações internacionais, quais são os maiores desafios para estabelecer o Pacto Global para o Ambiente?
Entender e diagnosticar em conjunto os problemas relacionados com uma série de problemas ambientais. Não apenas o clima ou a biodiversidade, mas também a crise sanitária. Ao mesmo tempo está a crescer o nacionalismo, que funciona contra o espírito de cooperação global em qualquer área. A Organização Mundial de Saúde (OMS) foi paralisada e politizada, o que está muito relacionado com a aparecimento de uma combinação de países, mesmo os democráticos, que estão a construir, digamos assim, muros artificiais dentro do seu território para se protegerem da pandemia. Mas é ilusório acreditar que os problemas de segurança global possam ser isolados pelas fronteiras nacionais. Os líderes populistas estão a criar medo e confusão sobre o papel das instituições globais. E precisamos de entender que estas instituições precisam de ser reforçadas, modernizadas, mais inclusivas, adotando princípios centrais de sustentabilidade e de justiça de modo a poderem funcionar de forma eficaz e lidar com os problemas globais de que os países têm medo. Por isso, temos agora ideias em discussão relativamente ao Pacto Global para o Ambiente que podem levar a mudanças bastante ambiciosas nos próximos três a cinco anos, essenciais para enfrentar os maiores desafios atuais.
Um desses desafios são as alterações climáticas, que estão a criar efeitos negativos em cascata na sociedade, como desigualdade, migração, conflitos, problemas de saúde e de segurança, para não falar na economia. No entanto, estão a ser discutidas apenas como um problema isolado de emissões de dióxido de carbono. Como podemos superar esta abordagem?
Hoje há muitas discussões sobre a relação entre o ambiente e os problemas de segurança. Por isso, numa perspetiva interdisciplinar, precisamos de perceber que lidar com o maior desafio de nosso tempo, as alterações climáticas, é bastante mais complexo, perigoso e ameaçador do que lidar, por exemplo, com a pandemia da Covid-19, que vamos acabar por controlar mais cedo ou mais tarde.
Isto significa olhar também para as dimensões económicas, de saúde, segurança e até mesmo de migração e refugiados?
Sim, temos evidências esmagadoras que mostram que as alterações climáticas são a principal causa das migrações e dos movimentos de refugiados. É por isso que o Pacto Global para o Ambiente representa a necessidade de uma abordagem multidimensional que vai para além das emissões de CO2.
Sobre a recuperação verde da crise, acha que os governos estão a começar a reconhecer que todos esses problemas estão interligados?
Essa é a grande questão que está nas nossas mentes, e veremos o que irá acontecer nos próximos seis a doze meses, ou seja, que volume de investimento será realmente aplicado na recuperação verde. Antes da pandemia já tinha sido adotado o conceito de New Deal Verde nos EUA, UE, Coreia do Sul e muitos outros países. Agora combina-se esse conceito com outro: reconstruir melhor. Precisamos de reconstruir melhor, fazendo com que as economias funcionem e criem empregos através de uma recuperação mais verde da crise. Foi um conceito integrado na recente declaração do 75º aniversário das Nações Unidas, assinada pelos 193 Estados-membros na Assembleia-Geral da organização. Mas precisamos de questionar a abordagem voluntária que está no cerne do Acordo Climático de Paris.
Porque é diferente do Protocolo de Quioto, um instrumento jurídico internacional vinculativo?
Bem, todos dizem que este modelo revolucionário de governança global será o futuro, porque diz respeito a resultados. E eu concordo, se há resultados todos devemos estar 100% com o Acordo Climático de Paris. Mas a verdade é que os maiores países não estão a seguir os seus compromissos.
E a recuperação verde é uma oportunidade única?
É uma oportunidade fundamental para nos livrarmos dos combustíveis fósseis na economia e de investirmos em infraestruturas verdes, uma oportunidade de mudança das políticas governamentais no ambiente regulatório e nos incentivos, de modo a que o setor privado seja o motor das tecnologias verdes, que estarão no cerne de uma recuperação da crise. Mas esta mudança deve ser feita em conjunto por governos, setor privado e sociedade civil. E o momento de agir é agora.
Que expectativas tem em relação às comemorações em 2022 do 50º aniversário da histórica Conferência de Estocolmo sobre o Ambiente Humano, que levou ao lançamento do Programa das Nações Unidas para o Ambiente?
O evento de 2022 na capital sueca vai debater a próxima fase da agenda iniciada em 1972. Uma nova sequência de ações poderia seguir não apenas a atualização do Acordo Climático de Paris para um nível mais ambicioso, mas também cruzar este processo com o novo Pacto Global para o Ambiente, que toca noutras convenções importantes, como a Convenção sobre Biodiversidade, os planos de ação contra a desertificação, etc. Precisamos de olhar em termos holísticos para toda uma gama de preocupações ambientais e não apenas fixar-nos na crise climática, porque não podemos resolver umas sem as outras.
E ir para além dos desafios ambientais?
Sem dúvida, devemos lidar também com os problemas da governança global que a ONU e os seus Estados-membros enfrentam, bem como os desafios da segurança, a agenda dos direitos humanos ou a redução da pobreza extrema, especialmente tendo em conta a pandemia da Convid-19, que tem afetado em termos económicos milhares de milhões de pessoas em todo o Mundo. E iniciativas como o Pacto Global para o Ambiente podem contribuir significativamente para enfrentar todos esses problemas. Há muito tempo que precisamos de mudanças decisivas para criar um sistema mais inclusivo de governança global que produza resultados para todas as pessoas, especialmente as mais vulneráveis.
O quadro legal proposto pela Casa Comum da Humanidade pode ajudar a criar um sistema de avaliação que apoie acordos como o Acordo de Paris ou o Pacto Global para o Ambiente?
Sim. O Conselho de Segurança da ONU, dominado pelos seus cinco membros permanentes (China, EUA, França, Reino Unido e Rússia), é o único órgão que permite decisões juridicamente vinculativas no direito internacional e o uso do poder de veto. Este compromisso foi fundamental para criar as Nações Unidas em 1945. Hoje, para enfrentarmos a crise climática e ambiental, há inovações incríveis no Acordo de Paris de 2015, mas os mecanismos de controlo ainda estão muito longe de saber se os governos irão reforçar os seus compromissos como é esperado, e quais são os procedimentos de verificação. E por enquanto não há nada semelhante ao Conselho de Segurança da ONU, capaz de agir coletivamente para forçar leis internacionais vinculativas. Não queremos propor a criação de um Conselho de Segurança Climática do mesmo género. Mas podemos tirar lições de experiências mais recentes, como a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982 e o tribunal que foi instituído como mecanismo de resolução de litígios. Existem alguns argumentos fortes de que precisamos de inovações institucionais semelhantes para as questões do clima. Mas antes de mais, necessitamos de atualizar o conceito de bem comum global como o clima e de defender o seu reconhecimento como Património Comum da Humanidade no direito internacional. E é aqui que iniciativas como a Casa Comum da Humanidade podem dar um contributo significativo e oportuno.
Entrevista feita por Kimberly White, jornalista e editora da agência norte-americana de notícias de ambiente e de desenvolvimento sustentável The Planetary Press