Pioneira mundial em direito, ética e mudanças climáticas, Prue Taylor é também membro de longa data da Comissão de Direito Ambiental e do Grupo de Especialistas em Ética da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), e professora de direito ambiental na Escola de Arquitetura e Planeamento da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia. Desenvolve investigação em alterações climáticas, direitos humanos, governança ambiental comum, legislação e política oceânica, direitos de propriedade e ética ambiental. E é autora do livro “Uma Abordagem Ecológica do Direito Internacional: Responder aos Desafios das Alterações Climáticas”, que ganhou o Prémio NZ da Legal Research Foundation.
Desde 23 de setembro, a Casa Comum da Humanidade (CCH), organização global com sede em Portugal, na Universidade do Porto, está a realizar uma campanha de divulgação internacional da sua iniciativa “Um Sistema Terrestre, um Património Comum, um Pacto Global”, em parceria coma a agência de notícias The Planetary Press.
A campanha conta com uma série de entrevistas feitas por esta agência, gravadas em podcast e transcritas em inglês, português e espanhol – as “Conversas da Casa Comum ONU75” – a personalidades de projeção internacional. As primeiras 14 entrevistas são acompanhadas por vídeos com animações sobre as propostas da CCH.
O Expresso publica todas as quartas-feiras uma entrevista e um vídeo associado enquanto durar a campanha, que está também a decorrer nas redes sociais e através de newsletters.
Pode ver as oito primeiras entrevistas e vídeos em: Will Steffen, Maria Fernanda Espinosa, Izabella Teixeira, Paulo Magalhães, Karl Burkart, Janene Yazzie, Kim Sang-Hyup e Hindou Ibrahim. E pode ouvir a entrevista completa, em inglês, a Prue Taylor AQUI.
A CCH propõe o reconhecimento do Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade, para restaurar um clima estável, criar um novo modelo de governança para os recursos naturais comuns do planeta e promover um novo Pacto Global para o Ambiente junto da ONU, que acabe com o atual impasse nas negociações climáticas. Para concretizar este objetivo, a CCH está a organizar uma coligação global de conhecidos cientistas do Sistema Terrestre e da sustentabilidade, juristas, economistas, sociólogos, Estados soberanos, ONG, organizações internacionais, autoridades e comunidades locais, povos indígenas e universidades.
A Casa Comum da Humanidade tem como fundadores sete universidades portuguesas, a ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, o Ministério do Ambiente e Ação Climática, as Câmaras Municipais do Porto e de Gaia e especialistas de todo o Mundo. E tem também uma série de parceiros além da The Planetary Press, como o Instituto Internacional de Derecho y Medio Ambiente (IIDMA, Madrid), a rede The Planetary Accounting Network, a Global Voice ou a Earth Trusteeship Initiative.
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Quais são os efeitos adversos das alterações climáticas que vê na Nova Zelândia?
Acontecem diariamente e de formas cada vez mais dramáticas. E há uma aceitação crescente de que os impactos das alterações climáticas estão associados a mudanças nas temperaturas globais da atmosfera. Estamos a assistir a subidas de temperatura que têm provocado eventos de seca extrema mais longos, severos e frequentes, o que tem um grande impacto porque a Nova Zelândia ainda é uma nação essencialmente agrícola.
E nas áreas urbanas?
Bom, as grandes áreas urbanas estão também a começar a sofrer. A cidade de Auckland, que é a maior área urbana na Nova Zelândia, está no meio de uma grave crise de falta de água que tem imposto muitas restrições.
Já não ocorrem inundações?
Ocorrem. Aliás, estamos a observar muitos eventos de chuva extrema, o que está a exacerbar o risco de inundações, um fenómeno a que a Nova Zelândia é muito propensa. Também estamos a sentir muito mais prejuízos das tempestades. Somos um país longo e estreito no meio do vasto Oceano Pacífico e estamos a sofrer muitos danos nas zonas costeiras. Por outro lado, a temperatura do mar à volta da Nova Zelândia tem aumentado quatro a cinco graus acima do normal, o que é dramático. Mas provavelmente o impacto das alterações climáticas que realmente galvanizou os neozelandeses recentemente foi o provocado pelos incêndios florestais, que não eram muito comuns no passado, ao contrário da Austrália. Muito recentemente tivemos uma série de incêndios florestais com impacto não apenas no setor florestal, mas também nas áreas urbanas, o que começou a chamar a atenção dos neozelandeses para as alterações climáticas. O Oceano Pacífico era tradicionalmente visto como um elemento moderador que nos isolava em certa medida dos impactos da crescente subida da temperatura atmosférica. Mas parece que não somos tão protegidos pelo Oceano Pacífico como pensávamos.
Acha que precisamos de uma inovação jurídica para enfrentarmos as crises globais do clima e da biodiversidade?
Sim, se olharmos para a situação em que nos encontramos atualmente. Precisamos de mudanças fundamentais nas nossas leis e sistemas de governança. Estou a trabalhar nesta área há 30 anos e, honestamente, sinto que estamos a retroceder. É verdade que fizemos algumas melhorias incrementais em certas áreas. Mas francamente, quando olhamos para os impactos acumulados destas melhorias, ao seu ritmo e escala, concluímos que o que estivemos a fazer nos últimos 30 anos foi uma versão acelerada de uma abordagem de controlo da poluição iniciada nos anos de 1970, de business as usual, de mera mitigação e redução de danos. Só que o que realmente acabou por acontecer foi que esses danos se acumularam e aceleraram em combinação com outros danos, provocando a degradação dos sistemas ecológicos. Houve também uma falha do quadro legislativo e de governança global existente nos últimos 25 anos, onde os Estados-nação negociaram nas cimeiras do clima da ONU apenas a partir de uma perspetiva do interesse nacional. Não houve sentido de responsabilidade coletiva para o benefício de todos. Portanto, este tipo de negociação relutante, incremental e fragmentada das crises ecológicas, está a pôr em perigo a nossa existência e o Sistema Terrestre. Por isso temos mesmo de mudar.
E com a pandemia vemos como tudo está interligado.
Absolutamente, não há problemas isolados, a Covid-19 demonstra verdadeiramente a magnitude e o ritmo do que está a acontecer.
Sendo assim, como pode o conhecimento desenvolvido pelas ciências do Sistema Terrestre e a definição dos Limites do Planeta influenciar o conceito de bens comuns globais?
As ciências do Sistema Terrestre permitem ver o que intuitivamente sabíamos que existia antes, mas que não conseguíamos definir e compreender adequadamente. As ciências do Sistema Terrestre deram-nos uma base sólida para nos ajudar a compreender e definir que nós, como Humanidade, partilhamos um bem comum ecológico global muito complexo que opera à escala planetária. E o que as ciências do Sistema Terrestre nos ajudam a perceber é que o que fazemos em qualquer lugar do planeta tem um impacto nos bens comuns que sustentam e são a base de toda a vida na Terra. No entanto, as mesmas ciências também nos alertam que este bem comum global está sob séria ameaça das ações coletivas da Humanidade. E ajudam-nos a compreender que o Sistema Terrestre é uma parte fundamental da nossa casa comum, da casa de incrível beleza que partilhamos com toda a Humanidade e com todas as formas de vida. Na verdade, as ciências do Sistema Terrestre são parte do milagre da vida no planeta Terra. E esta é uma herança muito preciosa e, por isso, temos de desenvolver uma atitude de respeito e responsável em relação a ela. Por fim, as ciências do Sistema Terrestre mostram-nos que aquilo que nós fazemos ao Sistema Terrestre fazemos a nós próprios. E se o valorizarmos, nutrirmos e trabalharmos em seu benefício, estamos a agir de forma consistente e responsável para com a Terra. E para o benefício de todos.
Os oceanos, já reconhecidos como um bem comum global, podem tornar-se um modelo quando pensamos em direito internacional e governança?
Bem, em primeiro lugar, temos de reconhecer que, infelizmente, os atuais regimes jurídico e de governança para os oceanos têm falhas profundas e partilham muitos dos problemas do direito do ambiente a nível internacional. Mas se entendermos melhor o potencial do oceano como bem comum global e nos afastarmos do regime jurídico e de governança tradicionais e pensarmos seriamente sobre a forma de funcionamento do oceano como um ecossistema global interligado, ele tem realmente uma natureza muito fluida e liga todas as nações, toda a Humanidade. Em última análise, o oceano opera como um sistema, o que põe em causa os esforços dos Estados-nação para continuarem a reivindicar que os seus direitos territoriais e soberanos podem ser exercidos de uma forma que nega esta realidade.
Portanto temos de pensar num modelo diferente.
Precisamente, embora muitas pessoas estejam focadas na biodiversidade terrestre, o que as impede de entender a magnitude dos oceanos como um sistema global. Mas logo que o entendam, o oceano torna-se um modelo muito bom para os ajudar a entender a escala planetária do Sistema Terrestre. Quando nos concentramos no oceano, podemos também vê-lo como um sistema vivo que pode exibir sinais de boa saúde, isto é, um sistema a funcionar bem, ou sinais de degradação, com ecossistemas a morrer. Falar do Sistema Terrestre é falar numa escala que pode ser muito difícil de compreender, mas para nos ajudar, podemos começar por perceber como o oceano funciona como um sistema ecológico global massivo que nos liga a todos e, em seguida, usar essa abordagem para ampliar a escala do nosso pensamento. Além disso, o oceano é um elemento extremamente importante na forma como opera todo o Sistema Terrestre.
O conceito de Património Comum para o Sistema Terrestre permitiria gerir melhor as crises do clima, da biodiversidade e outras que enfrentamos?
Sim, por vários motivos. Em primeiro lugar, o Património Comum é um conceito jurídico muito poderoso no direito e na governança internacionais há muitas décadas. Foi originalmente desenvolvido exatamente para o tipo de questões que enfrentamos hoje como um conceito de bem comum ecológico global, tal como o oceano. E o Património Comum exigia que os Estados deveriam agir coletivamente, de acordo com um regime de gestão. E esse regime de gestão para o oceano exigia que os Estados agissem de forma ecologicamente responsável, não para seu próprio benefício, mas para o benefício de toda a Humanidade e de toda a vida do planeta. Agora isso não significa que os Estados não possam usar os sistemas ecológicos do oceano. Mas a prioridade de uso destes sistemas é assegurar o seu funcionamento ecológico continuado.
Disse que precisamos de uma nova governança global e legislação no direito internacional que leve a Humanidade a alcançar benefícios ecológicos. Como pode a abordagem do Sistema Terrestre ao novo Pacto Global para o Ambiente ser a evolução conceitual para dar sentido a toda esta visão holística?
As ciências do Sistema Terrestre permitem-nos perceber que precisamos de ter uma abordagem muito transformadora e radical para a legislação e a governança, de forma a colocarmos a função do Sistema Terrestre no centro das suas prioridades. E para que existam benefícios para os sistemas ecológicos e para o Sistema Terrestre. Em termos simples, temos de começar a perguntar o que podemos fazer pelo Sistema Terrestre e não apenas o que o Sistema Terrestre pode fazer por nós. E ao adotarmos esta abordagem e a aplicarmos ao novo Pacto Global para o Ambiente, podemos mudar a legislação internacional e a governança.
É possível transformar a legislação internacional de modo a superarmos as nossas obsessões territoriais, para que possamos adotar a nível internacional uma responsabilidade pelos nossos impactos no planeta?
Sim, podemos. A minha preocupação é que, se não desenvolvermos essa vontade coletiva para fazer essas mudanças, as oportunidades de sairmos de uma dessas terríveis situações de emergência diminuem consideravelmente. Portanto, temos uma janela de oportunidade. Podemos moldar um regime legislativo e de governança que beneficie todos. E temos de acreditar que os seres humanos podem agir coletivamente para o bem comum, que somos pensadores cooperativos.
Ou seja, não temos mais tempo a perder.
Exato. São fundamentalmente questões éticas e de justiça, e não apenas questões científicas ou económicas. Alguns movimentos da juventude estão a começar a agitar as coisas, particularmente no contexto das alterações climáticas, porque durante muito tempo a nossa capacidade de coaborarmos para desenvolver respostas às mudanças climáticas foi inibida.
Podemos usar o conceito de Património Comum para o Sistema Terrestre como um todo? E pode a evolução e redefinição do conceito de bens comuns globais ser a base para um novo enquadramento jurídico global?
Sem dúvida. Mas uma chave fundamental para utilizar o conceito de Património Comum é entender o seu alcance e intenção, tal como foi originalmente desenvolvido e planeado, e não sermos distraídos por algumas interpretações jurídicas estreitas e limitadas que surgiram nas décadas de 1970 e 1980. Voltando à sua intenção original, o Património Comum é sobre responsabilidades ecológicas coletivas para o benefício de todos, que se aplicam independentemente do local onde ocorrem as atividades humanas. Este conceito é muito desafiador para o direito internacional tradicional. O Património Comum diz-nos que a soberania territorial não pode mais ser usada como justificação para o não cumprimento dessas responsabilidades comuns. Isto não significa que um Estado não tenha soberania sobre o seu território, mas qualifica o exercício dessa soberania de uma forma que garanta, antes de mais, que o benefício coletivo é a prioridade.
O que houve com a proposta da Casa Comum da Humanidade para a Prue Taylor decidir juntar-se a esta iniciativa?
A Casa Comum da Humanidade (CCH) quer transformar o sistema existente indo além do business as usual, de modo a que nos concentremos em devolver benefícios a um Sistema Terrestre profundamente interligado, mas profundamente degradado. Portanto, a proposta da CCH tem o potencial de liderar uma mudança transformadora significativa, o que é muito emocionante. Estamos finalmente a chegar a um ponto em que a ciência se une com o direito internacional e a governança para colocar o bom funcionamento do Sistema Terrestre no centro de tudo. A mensagem principal é que, ao trabalharmos para o benefício de um Sistema Terrestre a funcionar bem, estamos a trabalhar no sentido de obtermos resultados positivos para todos. A forma como até agora temos abordado problemas globais como as alterações climáticas foi sempre baseada numa abordagem negativa, não numa abordagem positiva, transformadora, como propõe a CCH.
Entrevista feita por Kimberly White, jornalista e editora da agência norte-americana de notícias de ambiente e de desenvolvimento sustentável The Planetary Press